A MORTE E O CURINGA

   Certa vez, um homem muito velho e pobre encontrava-se em seu leito de morte, aguardando sua hora chegar. Estava em sua casa no interior de São Paulo, próximo de uma ponte, sua casa era feita de madeira e barro e nunca teve uma oportunidade de vencer na vida. No ano em que homens já se esqueceram por seu leviano ego pretensioso, este senhor que se chamava José Silva encontrou-se com o mau mais antigo da humanidade, a própria morte, que se apresentou a ele como um homem alto e de barba escura, vestido de um terno negro e uma bengala que parecia ser feita de ossos humanos. A morte encontrou em sua casa pouco ortodoxa e sentou-se ao lado da cabeceira da cama, então ele perguntou a José algo inconveniente — porque nunca teve nenhum feito na vida José. Vim lhe buscar, mas não posso acreditar nisso. O velho respondeu melancólico — poucas chances tive, poucas... A morte encostou sua bengala no criado mudo, respirou funda e disse — Sabe José, a muito tempo não vejo alguém tão marcado por desespero, foram milênios que passei nesse mundo buscando uma alma como sua. O velho tentou se levantar da cama, mas sua coluna estava atrofiada e quase nem conseguia se mover, então falou ruidoso — porque não me levas, não tenho mais o porquê caminhar neste mundo, não tenho família, filhos, e tudo que essa vida me trouxe foi dor, então leva-me e deixa-me descansar, para finalmente ter um momento de paz. A morte abriu um sorriso no rosto. O velho queixou-se daquela expressão — José, sou a morte e muito sei sobre o mundo, sobre a dor dos homens. Vim aqui hoje, porque sua morte está marcada para às 18h00 deste dia, morrerá sozinho nesta cama por ataque cardíaco e só encontraram seu corpo dois dias depois. A morte riu de novo — venho hoje lhe dizer que tens uma chance de mudar isso, quando acordar amanhã, será um novo homem, mais jovem e cheio de vida, a única coisa que tens de fazer é a cada ano procurar uma alma jovem, só precisa apertar-lhe a mão, e então todos os seus anos de vida serão tirados, pode escolher quem for, mas terá de ser feito, tendo apertado sua mão a pessoa morrera até o final do dia... até que o crepúsculo ceda. José ficou mudo com aquela proposta e mesmo sabendo que não deveria, aceitou o trato com a morte. A criatura então levantou-se, colocou a mão sobre sua testa e foi embora.

 
   José acordou no dia seguinte, jovem e saudável. Tendo admirado seu presente, ele agradeceu a morte. José usou a chance que a morte tinha lhe dado, formou-se em medicina e abriu uma clínica particular no centro de São Paulo. Tendo chegado o dia de pagar sua dívida, ele se lembrou do que a morte lhe pedira em troca, uma alma... O nome dela era Helena, uma mulher bela, de no mínimo vinte dois anos, e conhecera numa boate noturna. José o apresentou seu consultório e toda as suas posses, e no final da noite, após ter-se divertido o suficiente, ele a levou até a porta e com um pesar desconcertante no peito, apertou-lhe a mão. Viu a mulher bonita e jovem esmaecer como uma uva Passa, seu corpo se contraiu para dentro e enrijecendo até que só sobrassem apenas uma fina cama de pele sobre ossos esguios. José se arrependeu daquilo na hora que o fez e não seria tão fácil, teve de se livrar do corpo, escondendo-o no escritório.
 
    Quarenta e três anos se passaram daquele dia, quarenta e três pessoas mortas e José permaneceu com a mesma aparência jovem. Não podia continuar com aquilo, a vida tinha vazado de suas mãos tão quanto quando era um velho e tudo parecia sem sentido, mas entrar em depressão não apagaria o que havia feito então decidiu não oferecer mais almas a morte e quando chegou o dia do quadragésimo quinto sacrifício, a morte apareceu para lhe cobrar a alma que lhe era de direito. José não queria morrer, mas também não podia mais fazer aquilo — Olha quem chega, meu amigo, a morte. Como está? A morte irritada gritou — Aonde está. José a entreolhou com calma e respondeu — Aonde está o que? A morte nervosa bateu com sua bengala no chão e José ganhou vinte anos de vida, parecia agora um homem de quarenta anos, não tinha mais um corpo definido como antes, e sua saúde definhara, fazendo-lhe tossir — Não brinque comigo José. Já lhe disse, sou a morte e muito sei. Fizemos um trato, me daria uma alma a cada ano em troca de sua juventude.
 
   José nem se espantou com sua nova aparecia, ele foi até a geladeira, somou um copo de vinho e bebericou um gole — Sabe morte, o que o homem rico, o homem pobre, o homem leproso e o homem saudável tem em comum, sabe me responder — É óbvio. Respondeu a morte — Sou eu. José balançou a cabeça fazendo que sim, e tragou mais um gole de vinho — A morte... mesmo que lhe traga essas almas, eu já estou morto, afinal o destino de todo homem é a morte. A morte o encarou novamente — Não existe mal em mim você sabe, eu sou o destino e o fim para tudo, o que lhe dei foi a chance de fugir eventualmente de mim em troca de outros, mas se não deseja mais... José deixou o copo de vinho cair no chão, a morte despretensiosa se aproximou — Não es mais o mesmo que encontrei a quarenta e cinco anos, porque? José abriu um sorriso no rosto, levantou-se e segurou a mão da morte — Desgraçado, o que você fez. José não aguentou apertar aquela mão necrófaga por mais que dois segundos e desmaiou, acordou tempos depois ao lado da morte — Amaldiçoais a si mesmo. Sussurrou a morte inquieta. José abriu os olhos e a princípio não sentiu nada de diferente.
 
    Não se pode contar quantos anos se passaram, ou quantos se passariam, mas quando a morte partiu naquele dia, nunca mais voltou a José Silva, que conheceu o real sentido do desespero.   

   
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 25/01/2018
Reeditado em 25/01/2018
Código do texto: T6236228
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