A VOLTA DA FALECIDA
CAP. 11
O sol saiu de detrás de uma nuvem e encheu a minha sala de luz. De repente me dei conta que ele faz isso todos os dias, mas nem todo dia tenho sol em minha sala porque há dias em que o céu está cheio de nuvens e não deixam passar a sua luz.
Sou um homem de quase sessenta anos sentado em frente á uma janela, olhando para o pequeno jardim da minha casa, nas últimas horas da tarde de um dia rigorosamente igual a todos os outros, mas também diferente de todos eles porque de repente me dei conta que cada dia é um novo dia e cada um tem a sua própria identidade porque somos nós que lhes damos nomes e um registro para provar que fizeram parte de um calendário. Dias são como pessoas. Precisam de registro de nascimento impresso em uma folhinha, ou uma agenda, como nós, que precisamos dos nossos nomes e filiação registrados nas atas de um cartório, para provar que um dia fizemos parte desse calendário chamado vida. Rosana, por exemplo, nasceu em 20 de agosto de 1960 e morreu em 30 de novembro de 2015. Tinha 55 anos quando morreu.
Não parece, mas todos os dias são diferentes. Todos têm impressões digitais personalíssimas, como as pessoas. Se você se sentar em frente á uma janela, ao cair da tarde e se dedicar a esquadrinhar suas memórias verá que os seus dias nunca foram sempre iguais. Sempre acontece algo que distingue uns dos outros, como conhecer uma pessoa diferente, torcer o pé num buraco da calçada, passar por um lugar onde nunca se foi antes, ler um livro novo ou ver um filme que acaba de ser lançado, ouvir uma música inédita, enterrar um parente, um conhecido, etc. Comece a recensear suas memórias, começando pelas mais antigas ou pelas mais recentes, não importa. Tente identificar o que de novo ocorreu em cada dia que você viveu. Nunca mais você dirá que sua vida foi rotineira, ou enfadonha.
Minhas memórias mais antigas, por exemplo, são de um barraco com paredes sustentadas por bambus, amarrados com cordas, revestidas com barro seco e coberto com folhas de zinco. O barraco ficava no fundo do quintal de uma professora aposentada.
Nós a chamávamos de “Dona Chiquita dos Cachorros.” O apelido tinha suas razões. Ela era uma velha senhora, sem filhos, que talvez por isso mesmo adotara como missão de vida recolher todos os vira-latas sujos e sarnentos que encontrava na rua. Nenhuma mulher consegue escapar desse vínculo com a maternidade, ainda que finja estar imune a isso. Minha mãe, com quatro filhos pequenos, sem um pai para criá-los (meu pai estava internado em um hospital para hansenianos), era sempre a justificativa que a Dona Chiquita dava aos vizinhos para o fato de não ter querido ter filhos: “ter esse monte de filhos para viver como essa aí?”, dizia ela, apontando o queixo para minha mãe. “Prefiro criar cachorros. São mais amorosos e agradecidos.”
Talvez pelo fato de essas primeiras recordações estarem associadas a cachorros de todos os tipos, latindo dia e noite nos meus ouvidos, tenho sonhos constantes com esses animais até hoje. Sonho com eles correndo atrás de mim, mordendo meus calcanhares, rasgando minha calça; de repente começo a distribuir pontapés para todos os lados. Marisa, minha mulher atual, sabe que quando eu começo a espernear e a dar coices dormindo, é por que estou sonhando com cachorros. E então ela me acorda, pois sabe do perigo que corre, e também eu próprio, que já levei oito pontos no lábio superior porque numa dessas noites, fugindo de um cachorro, pulei da cama com tanta força e bati a boca na quina do criado mudo. A Rosana, minha falecida, acostumou-se cedo com essas minhas trapalhadas inconscientes. Bastava eu começar a dar meus pinotes na cama que ela logo me abraçava, como se eu fosse uma criança nervosa, com medo de injeção. Cada uma com sua estratégia.
Minha mãe era empregada doméstica da Dona Chiquita. Cuidava dos cachorros e das tarefas de casa para a velha senhora. Tarefa ingrata aquela, de lavar o canil e alimentar aquela matilha furiosa que pulava em cima da gente com aquelas patas sujas de tudo quanto era coisa.
E o fedor então. O canil ficava bem atrás do nosso barraco. Lembro-me que o telhado do barraco era feito de folhas de zinco, cheias de furos. Não havia nada de poético nisso, como dizia o Silvio Caldas na sua famosa canção, quando poetizava “a lua furando nosso zinco, salpicando de estrelas nosso chão”. Era, na verdade, triste e desesperador, pois quando chovia minha mãe tinha que abria a sombrinha dela em cima da cabeceira da nossa cama para proteger a mim e meus irmãos da água que fluía das goteiras, como se fossem chuveiros cravados no teto do barraco. Não havia sombrinha suficiente. A gente tomava banho sem querer, e esses eram os únicos banhos que tomávamos mesmo.
Comíamos as sobras da mesa da velha senhora e ás vezes só comíamos mesmo para não morrer de fome, pois a nós sempre parecia que aquela comida que ela nos dava era a sobra da comida que ela cozinhava para os cachorros. Tinha gosto de comida de cachorro e cheiro de comida de cachorro. Mas era a única que tínhamos e graças a ela a gente sobreviveu.
Ah! sim, lembro-me que eu adorava frutas. Para mim a visão mais bela do mundo era a feira semanal, onde eu e meus irmãos mais íamos para tentar ganhar algum troquinho carregando as bolsas para as senhoras. Aquelas pencas de bananas amarelinhas, a lindas laranjas baianas, peras carnudas e suculentas, pêssegos aveludados e macios, caquis-chocolate, melancias vermelhinhas, hummmm...
Toda vez que eu passava com minha mãe frente a uma quitanda, ou uma banca de frutas, eu queria que ela comprasse frutas para mim. Pedia primeiro com jeitinho, apontando as frutas que eu queria, depois com violência, puxando-a para perto da banca, e quando a minha vontade não era feita eu começava a chorar e a rolar na rua. Descobri cedo que ninguém suporta o espetáculo de uma criança chorando de fome, ou de vontade de comer alguma coisa. Quando minha mãe não tinha dinheiro para comprar uma mínima banana, (e isso era frequente) sempre aparecia alguma alma boa que acabava quebrando o meu galho. Minha mãe odiava aquelas cenas que eu fazia. E depois de algum tempo ela percebeu que já fazia aquilo de caso pensado. E quando via que eu ia começar o espetáculo, pegava a minha mão e saia me arrastando pela rua afora. Depois, quando eu já havia me acalmado e via que a minha estratégia já não funcionava mais, ela passava a mão na minha cabeça e dizia: “ sossega, filho. Um dia você poder comer todas as frutas que quiser e muito mais.”]
Meu irmão mais velho tinha doze anos e fez um carrinho com rodas de uma velha bicicleta que o dono de um depósito de ferro-velho deu para ele. Com esse carrinho a gente transportava as compras das senhoras na feira e ganhavamos uns bons trocos. Nós não sabíamos que já nessa época, éramos empresários do ramo de transportes. E que minha mãe, era empresária do ramo de serviços, pois além de trabalhar para a Dona Chiquita dos Cachorros, ela também pegava a roupa de algumas famílias para lavar e passar. Naquela época as pessoas a chamavam de lavadeira. Hoje posso dizer que ela era empresária do ramo de lavanderias. E nós éramos funcionários dela, pois íamos entregar as roupas lavadas e passadas com o nosso velho e desconjuntado carrinho de mão. E assim a gente ia crescendo e ganhando a vida.
Jimena, minha filha casada, deixou minha netinha Luísinha comigo para ir fazer alguma coisa. Nem perguntei o que era. Se perguntei esqueci o que ela disse que ia fazer. Não importa. Depois dos sessenta anos a gente aprende a não perguntar para os filhos o que eles andam fazendo na vida. E eu gosto de ter a menina comigo durante algum tempo. Não o dia inteiro, nem todo o dia. “Já criei os meus, agora criem os seus”, costumo dizer às minhas filhas. Só tenho um neto, por enquanto, mas já estou me prevenindo do fato de me tornar avô tempo integral. Não tenho o menor perfil para isso. Mas me agrada muito ter a Luisinha comigo ás vezes. Principalmente agora que ela já anda, fala e faz suas necessidades sozinha. Ela já tem quatro anos. Pega o seu Ipod e vai para a velha balança que eu fiz para a mãe dela há mais de vinte anos atrás. Só levanta os olhos do aparelhinho para fazer um carinho na cabeça do velho Ralf, meu cão pastor. É a modernidade fazendo uma concessão á antiguidade.
“Vô”, to cum fome.
“Tem frutas, iogurte e bolo de cenoura que a sua vó fez, na geladeira. Pegue o que quiser”.
“Tem banana?”
“Tem. Na fruteira.”
Ela pega uma banana e uma laranja e traz para eu descascar.
Eu pego a faca e começo a descascar uma laranja-bahia bem amarelinha e carnuda.
“ Que foi vô? Ce tá chorando?”
“ Não querida. Foi o sumo da laranja que espirrou no meu olho”, respondo, tentando secar a lágrima com a manga da camisa.
Na verdade a lágrima veio por conta de uma lembrança antiga que o descascar da laranja me despertou.
Eu e meus irmãos. Éramos oito. Sete deles não existem mais. Nós brincávamos trabalhando, com aquele carrinho de mão, cheio de roupa lavada, que entregávamos em várias casas. Ruas velhas, estreitas, labirínticas, algumas calçadas com paralelepípidos, outras de terra batida. Asfalto só havia na avenida principal.Não sei se foram saudades do que se foram ou a constatação de que eu também já estou sendo esperado lá do outro lado...
Será por isso que a Rosana voltou? Terá ela vindo me buscar? Não deve ser. Se fosse seria mais lógico ela me esperar do outro lado da porta, ou do túnel, que dizem, todo mundo atravessa quando morre. E daí me conduzir pelos caminhos desse limbo, nevoento e assustador, que também figuram existir algures.
Minha neta come as frutas e depois, como se fosse a única coisa que vale a pena fazer no mundo, e depois volta para a sua balança e para o seu joguinho eletrônico, tentando descobrir, dentro de um labirinto virtual que faz um barulgo parecido com pirulim, pirulim, toda vez que o hominho dentro da caixinha pula para um segmento de caminho que o leva até uma arca de tesouro. Parece aquelas antigas brincadeiras de amarelinha que a gente pulava nas ruas.
Pela janela ainda entra uma réstia da luz. Mas á medida que o sol vai sumindo no horizonte, como um navio que desaparece na superfície curva do oceano, as sombras vão engolindo a lâmina dourada que ele estendeu no chão da sala. Daqui a pouco será noite e a roda da vida terá dado mais um giro. E tudo o que já foi não mais será. Um dia também os meus netos se cansarão dessas brincadeiras e se sentarão em uma poltrona, como eu estou agora, em frente á janela para apreciar o fim de tarde. E recordar para continuar vivendo.
Faz três dias que Rosana não aparece. O que será que houve com ela? Será que a licença que ela tinha para cruzar essa fronteira que existe entre os vivos e os mortos expirou e ela não conseguiu renová-la?
(continua)
CAP. 11
O sol saiu de detrás de uma nuvem e encheu a minha sala de luz. De repente me dei conta que ele faz isso todos os dias, mas nem todo dia tenho sol em minha sala porque há dias em que o céu está cheio de nuvens e não deixam passar a sua luz.
Sou um homem de quase sessenta anos sentado em frente á uma janela, olhando para o pequeno jardim da minha casa, nas últimas horas da tarde de um dia rigorosamente igual a todos os outros, mas também diferente de todos eles porque de repente me dei conta que cada dia é um novo dia e cada um tem a sua própria identidade porque somos nós que lhes damos nomes e um registro para provar que fizeram parte de um calendário. Dias são como pessoas. Precisam de registro de nascimento impresso em uma folhinha, ou uma agenda, como nós, que precisamos dos nossos nomes e filiação registrados nas atas de um cartório, para provar que um dia fizemos parte desse calendário chamado vida. Rosana, por exemplo, nasceu em 20 de agosto de 1960 e morreu em 30 de novembro de 2015. Tinha 55 anos quando morreu.
Não parece, mas todos os dias são diferentes. Todos têm impressões digitais personalíssimas, como as pessoas. Se você se sentar em frente á uma janela, ao cair da tarde e se dedicar a esquadrinhar suas memórias verá que os seus dias nunca foram sempre iguais. Sempre acontece algo que distingue uns dos outros, como conhecer uma pessoa diferente, torcer o pé num buraco da calçada, passar por um lugar onde nunca se foi antes, ler um livro novo ou ver um filme que acaba de ser lançado, ouvir uma música inédita, enterrar um parente, um conhecido, etc. Comece a recensear suas memórias, começando pelas mais antigas ou pelas mais recentes, não importa. Tente identificar o que de novo ocorreu em cada dia que você viveu. Nunca mais você dirá que sua vida foi rotineira, ou enfadonha.
Minhas memórias mais antigas, por exemplo, são de um barraco com paredes sustentadas por bambus, amarrados com cordas, revestidas com barro seco e coberto com folhas de zinco. O barraco ficava no fundo do quintal de uma professora aposentada.
Nós a chamávamos de “Dona Chiquita dos Cachorros.” O apelido tinha suas razões. Ela era uma velha senhora, sem filhos, que talvez por isso mesmo adotara como missão de vida recolher todos os vira-latas sujos e sarnentos que encontrava na rua. Nenhuma mulher consegue escapar desse vínculo com a maternidade, ainda que finja estar imune a isso. Minha mãe, com quatro filhos pequenos, sem um pai para criá-los (meu pai estava internado em um hospital para hansenianos), era sempre a justificativa que a Dona Chiquita dava aos vizinhos para o fato de não ter querido ter filhos: “ter esse monte de filhos para viver como essa aí?”, dizia ela, apontando o queixo para minha mãe. “Prefiro criar cachorros. São mais amorosos e agradecidos.”
Talvez pelo fato de essas primeiras recordações estarem associadas a cachorros de todos os tipos, latindo dia e noite nos meus ouvidos, tenho sonhos constantes com esses animais até hoje. Sonho com eles correndo atrás de mim, mordendo meus calcanhares, rasgando minha calça; de repente começo a distribuir pontapés para todos os lados. Marisa, minha mulher atual, sabe que quando eu começo a espernear e a dar coices dormindo, é por que estou sonhando com cachorros. E então ela me acorda, pois sabe do perigo que corre, e também eu próprio, que já levei oito pontos no lábio superior porque numa dessas noites, fugindo de um cachorro, pulei da cama com tanta força e bati a boca na quina do criado mudo. A Rosana, minha falecida, acostumou-se cedo com essas minhas trapalhadas inconscientes. Bastava eu começar a dar meus pinotes na cama que ela logo me abraçava, como se eu fosse uma criança nervosa, com medo de injeção. Cada uma com sua estratégia.
Minha mãe era empregada doméstica da Dona Chiquita. Cuidava dos cachorros e das tarefas de casa para a velha senhora. Tarefa ingrata aquela, de lavar o canil e alimentar aquela matilha furiosa que pulava em cima da gente com aquelas patas sujas de tudo quanto era coisa.
E o fedor então. O canil ficava bem atrás do nosso barraco. Lembro-me que o telhado do barraco era feito de folhas de zinco, cheias de furos. Não havia nada de poético nisso, como dizia o Silvio Caldas na sua famosa canção, quando poetizava “a lua furando nosso zinco, salpicando de estrelas nosso chão”. Era, na verdade, triste e desesperador, pois quando chovia minha mãe tinha que abria a sombrinha dela em cima da cabeceira da nossa cama para proteger a mim e meus irmãos da água que fluía das goteiras, como se fossem chuveiros cravados no teto do barraco. Não havia sombrinha suficiente. A gente tomava banho sem querer, e esses eram os únicos banhos que tomávamos mesmo.
Comíamos as sobras da mesa da velha senhora e ás vezes só comíamos mesmo para não morrer de fome, pois a nós sempre parecia que aquela comida que ela nos dava era a sobra da comida que ela cozinhava para os cachorros. Tinha gosto de comida de cachorro e cheiro de comida de cachorro. Mas era a única que tínhamos e graças a ela a gente sobreviveu.
Ah! sim, lembro-me que eu adorava frutas. Para mim a visão mais bela do mundo era a feira semanal, onde eu e meus irmãos mais íamos para tentar ganhar algum troquinho carregando as bolsas para as senhoras. Aquelas pencas de bananas amarelinhas, a lindas laranjas baianas, peras carnudas e suculentas, pêssegos aveludados e macios, caquis-chocolate, melancias vermelhinhas, hummmm...
Toda vez que eu passava com minha mãe frente a uma quitanda, ou uma banca de frutas, eu queria que ela comprasse frutas para mim. Pedia primeiro com jeitinho, apontando as frutas que eu queria, depois com violência, puxando-a para perto da banca, e quando a minha vontade não era feita eu começava a chorar e a rolar na rua. Descobri cedo que ninguém suporta o espetáculo de uma criança chorando de fome, ou de vontade de comer alguma coisa. Quando minha mãe não tinha dinheiro para comprar uma mínima banana, (e isso era frequente) sempre aparecia alguma alma boa que acabava quebrando o meu galho. Minha mãe odiava aquelas cenas que eu fazia. E depois de algum tempo ela percebeu que já fazia aquilo de caso pensado. E quando via que eu ia começar o espetáculo, pegava a minha mão e saia me arrastando pela rua afora. Depois, quando eu já havia me acalmado e via que a minha estratégia já não funcionava mais, ela passava a mão na minha cabeça e dizia: “ sossega, filho. Um dia você poder comer todas as frutas que quiser e muito mais.”]
Meu irmão mais velho tinha doze anos e fez um carrinho com rodas de uma velha bicicleta que o dono de um depósito de ferro-velho deu para ele. Com esse carrinho a gente transportava as compras das senhoras na feira e ganhavamos uns bons trocos. Nós não sabíamos que já nessa época, éramos empresários do ramo de transportes. E que minha mãe, era empresária do ramo de serviços, pois além de trabalhar para a Dona Chiquita dos Cachorros, ela também pegava a roupa de algumas famílias para lavar e passar. Naquela época as pessoas a chamavam de lavadeira. Hoje posso dizer que ela era empresária do ramo de lavanderias. E nós éramos funcionários dela, pois íamos entregar as roupas lavadas e passadas com o nosso velho e desconjuntado carrinho de mão. E assim a gente ia crescendo e ganhando a vida.
Jimena, minha filha casada, deixou minha netinha Luísinha comigo para ir fazer alguma coisa. Nem perguntei o que era. Se perguntei esqueci o que ela disse que ia fazer. Não importa. Depois dos sessenta anos a gente aprende a não perguntar para os filhos o que eles andam fazendo na vida. E eu gosto de ter a menina comigo durante algum tempo. Não o dia inteiro, nem todo o dia. “Já criei os meus, agora criem os seus”, costumo dizer às minhas filhas. Só tenho um neto, por enquanto, mas já estou me prevenindo do fato de me tornar avô tempo integral. Não tenho o menor perfil para isso. Mas me agrada muito ter a Luisinha comigo ás vezes. Principalmente agora que ela já anda, fala e faz suas necessidades sozinha. Ela já tem quatro anos. Pega o seu Ipod e vai para a velha balança que eu fiz para a mãe dela há mais de vinte anos atrás. Só levanta os olhos do aparelhinho para fazer um carinho na cabeça do velho Ralf, meu cão pastor. É a modernidade fazendo uma concessão á antiguidade.
“Vô”, to cum fome.
“Tem frutas, iogurte e bolo de cenoura que a sua vó fez, na geladeira. Pegue o que quiser”.
“Tem banana?”
“Tem. Na fruteira.”
Ela pega uma banana e uma laranja e traz para eu descascar.
Eu pego a faca e começo a descascar uma laranja-bahia bem amarelinha e carnuda.
“ Que foi vô? Ce tá chorando?”
“ Não querida. Foi o sumo da laranja que espirrou no meu olho”, respondo, tentando secar a lágrima com a manga da camisa.
Na verdade a lágrima veio por conta de uma lembrança antiga que o descascar da laranja me despertou.
Eu e meus irmãos. Éramos oito. Sete deles não existem mais. Nós brincávamos trabalhando, com aquele carrinho de mão, cheio de roupa lavada, que entregávamos em várias casas. Ruas velhas, estreitas, labirínticas, algumas calçadas com paralelepípidos, outras de terra batida. Asfalto só havia na avenida principal.Não sei se foram saudades do que se foram ou a constatação de que eu também já estou sendo esperado lá do outro lado...
Será por isso que a Rosana voltou? Terá ela vindo me buscar? Não deve ser. Se fosse seria mais lógico ela me esperar do outro lado da porta, ou do túnel, que dizem, todo mundo atravessa quando morre. E daí me conduzir pelos caminhos desse limbo, nevoento e assustador, que também figuram existir algures.
Minha neta come as frutas e depois, como se fosse a única coisa que vale a pena fazer no mundo, e depois volta para a sua balança e para o seu joguinho eletrônico, tentando descobrir, dentro de um labirinto virtual que faz um barulgo parecido com pirulim, pirulim, toda vez que o hominho dentro da caixinha pula para um segmento de caminho que o leva até uma arca de tesouro. Parece aquelas antigas brincadeiras de amarelinha que a gente pulava nas ruas.
Pela janela ainda entra uma réstia da luz. Mas á medida que o sol vai sumindo no horizonte, como um navio que desaparece na superfície curva do oceano, as sombras vão engolindo a lâmina dourada que ele estendeu no chão da sala. Daqui a pouco será noite e a roda da vida terá dado mais um giro. E tudo o que já foi não mais será. Um dia também os meus netos se cansarão dessas brincadeiras e se sentarão em uma poltrona, como eu estou agora, em frente á janela para apreciar o fim de tarde. E recordar para continuar vivendo.
Faz três dias que Rosana não aparece. O que será que houve com ela? Será que a licença que ela tinha para cruzar essa fronteira que existe entre os vivos e os mortos expirou e ela não conseguiu renová-la?
(continua)