Olhos na Noite
A noite estava muito fria, não havia estrelas no céu, nem lua, talvez por isso aquela noite parecesse ainda mais escura do que todas as outras. O único som que ele ouvia era de seus próprios passos e, para não deixar sua mente vagar e se perder na densa escuridão que o envolvia, esforçava-se para se concentrara na nuvem branca de fumaça que sua respiração formava à sua frente.
As mãos dentro dos bolsos do jaquetão estavam envolvidas por luvas de lã, mesmo assim já não sentia as pontas dos dedos, pensou em tirar as mãos e soprar nelas o seu bafo quente antes que os dedos congelassem, mas não se animou.
Detestava trabalhar no turno da noite especialmente agora que o inverno tinha chegado. Todas as noites, depois de percorrer quarenta minutos num ônibus sacolejante, ele era deixado naquela estrada de terra sem qualquer iluminação para trilhar sozinho e guiado mais pelo instinto do que pela visão os cinco quilômetros até a casa onde vivia com seus pais.
Apesar de odiar aquilo, sabia que não havia escolha, o mundo havia mudado e já não era possível “viver da terra” como diziam os mais velhos, então, quando a situação financeira da família atingiu o limite, teve que aceitar aquele emprego na fábrica que havia se instalado há alguns meses na cidade com a promessa de trazer progresso e riqueza para aquele fim de mundo e ouvir todos os seus conhecidos dizerem que ele tinha muita sorte por ter um emprego de verdade.
Mas, todo mês, quando recebia aquele salário ridículo como pagamento por todos aqueles dias em que passava oito horas realizando um trabalho maçante e repetitivo dentro de galpão sem janelas, sem luz natural e tão iluminado artificialmente que fazia seus olhos arderem, não conseguia entender onde estava sua sorte e desejava poder voltar a trabalhar no sítio da família como fizera desde criança e como sempre imaginou que faria, ajudando seu pai a ordenhar o leite das vacas que ele conhecia pelo nome e que seria vendido na cidade.
Agora as pessoas da cidade preferiam aquele leite aguado que vinha em saquinhos de plástico e isso fez o número de clientes de seu pai diminuir tanto a ponto de terem que vender vários animais do sítio, para tristeza irremediável de sua mãe e ter que enfrentar seus pensamentos naquele caminho desagradável e escuro tornava seu humor ainda mais melancólico.
Ainda pensava nisso quando chegou ao bambuzal que se estendia pelos próximos três quilômetros e que era o trecho mais escuro da estrada, a pior parte do caminho onde a noite fria parecia ainda mais fria e o vazio intenso podia ser sentido como um gosto amargo em sua boca.
Todas as noites eram assim, quando chegava ali seu coração palpitava mais rápido e um medo irracional o invadia deixava-o ainda mais frustrado, por se achar um completo idiota.
Naquele momento, a sensação de fracasso pesava sobre suas costas e até andar parecia ficar mais difícil, então, como acontecera em todas as madrugadas durante os últimos meses, tinha a sensação horrível de estar sendo observado.
Naquela noite não foi diferente, caminhava dando rápidas olhadas para os lados e vendo somente os altos bambus que subiam até se perderem no céu negro.
De repente teve a impressão de que o barulho de seus passos não era mais aquele toc-toc duplo, pois havia um outro toc-toc, como se ridiculamente ele tivesse um segundo par de pernas. O barulho o incomodou tanto que parou de caminhar permanecendo inerte por alguns instantes. O som parou imediatamente até que, quando ele recomeçou a andar, o som voltou a segui-lo, mas agora, percebia ele ainda mais próximo.
Apurou o ouvido e, sem parar de caminhar, notou que o barulho vinha do bambuzal à sua direita. Olhou nervosamente naquela direção certo de que não veria ninguém e realmente não havia qualquer pessoa ali e mesmo que houvesse ele não conseguiria ver, estava escuro demais.
Continuou caminhando até que viu surgir, em meio ao negror que dominava tudo, dois pontos vermelhos em meio aos bambus, como dois olhos que o observava.
"Algum animal noturno” pensou tentando se tranquilizar e mesmo sendo terrivelmente inquietante caminhar na companhia daqueles dois pontos vermelhos não se deteve, porém, sentiu que seu coração começara a palpitar de uma forma desagradavelmente descompassada e, apesar do frio intenso que podia ser sentido até em seus ossos, estava suando.
Apertou o passo pensando em sua cama quente e desejando chegar logo à sua casa. “Não há nada com o que me preocupar... mais um pouco e estarei em casa... é engraçado como a cabeça da gente imagina coisas...” refletiu.
Continuou caminhando constatar que agora, além do som daqueles passos que não eram os seus, podia-se ouvir uma respiração ofegante. Aquilo tudo era realmente assustador, mas talvez fosse apenas o cansaço fazendo sua mente ampliar o sinistro daquela situação, pois não conseguia imaginar qual animal faria um som tão alto com aquele.
Deu alguns passos rápidos tentando se livrar daquela companhia sinistra, mas quando ele aumentava sua velocidade aquilo que o acompanhava também se movia com mais rapidez e quando ele diminuía a velocidade aquilo também diminuía.
Um odor pungente dominou o ar fazendo-o pensar na urina de um cão demarcando território, no instante seguinte o animal avançou parecendo correr para a frente, levando-o a acreditar que devia se tratar de um cão ou talvez um pequeno lobo que agora tinha sido atraído por alguma presa, como um coelho, deixando-o para trás.
Seguiu por algum tempo aliviado até que identificou há alguns metros uma maça negra saindo do bambuzal e se colocando em seu caminho exatamente no meio da estrada à sua frente.
A imagem terrível e assustadora daquela fera desconhecida fez seu coração gelar, sentiu as pernas tremerem e estancou sem saber o que fazer. Os enormes olhos vermelhos o observando, a boca de dentes pontiagudos estava aberta, o focinho comprido farejando o ar, o pelo grosso e emaranhado, as pernas tão longas, as patas dianteiras com longas garras afiadas. Aquelas pernas eram terríveis, aquele animal, ou o que quer que fosse, se equilibrava em suas duas pernas traseiras enquanto as dianteiras pareciam dois braços incompreensivelmente longos, e mesmo àquela distância ele pôde verificar que a fera era muito mais alta que ele, passando de dois metros.
Os dois se encararam por alguns segundos, o ar que saia da narina do animal formava nuvens de fumaça branca, seus olhos eram maldosos e vermelhos como bolas de fogo, bem devagar ele flexionou os joelhos assumindo uma posição de ataque, jogou a cabeça medonha para trás e rugiu para o céu, um som que fez o sangue em suas veias gelar e seu coração parar por um instante.
Quando compreendeu que corria perigo virou-se e começou a correr na direção oposta, voltando pelo caminho que tinha seguido até ali, não demorou nada para sentir as forças se esvaindo, os vários meses de trabalho sedentário na fábrica tinham acabado com sua resistência física e agora cobrava seu preço, mas o instinto de sobrevivência obrigava-o a continuar mesmo que seus pulmões já doessem pela falta de ar e ele começasse a sentir uma forte tontura.
Enquanto corria feito louco tropeçou e caiu algumas vezes ferindo a mão e os joelhos no cascalho da estrada e se tornando mais lento a cada vez que se levantava. Não ousou olhar para trás, pois ouvia animal se aproximando num trote regular como se estivesse se divertindo com aquela caçada, enchendo o ar por vezes com aquele rugido demoníaco.
O desespero era tão grande que sua mente não conseguia pensar com clareza, e derramou lágrimas quando avistou há uma centena de metros de onde estava a casa do vizinho mais próximo, atravessou a cerca de arame farpado rasgando roupa e pele e o cheiro do seu sangue atiçou ainda mais a fera que agora, como ele podia ouvir, corria com mais velocidade até que ele sentiu a estocada em suas pernas e a dor alucinante.
No mesmo instante ele tombou e como se o mundo estivesse girando mais lentamente, olhou ao redor sem conseguir enxergar qualquer coisa no breu que se fazia à sua volta, por um pequeno momento sentiu que estava a salvo, até que os olhos de fogo ressurgiram como vindos diretamente do inferno bem à sua frente, viu as presas pontiagudas e amareladas se aproximarem lentamente de seu rosto e sentiu o cheiro de podridão que emanava daquela boca violenta.
Então, seu grito ecoou na noite, sem ser ouvido por ninguém.
As mãos dentro dos bolsos do jaquetão estavam envolvidas por luvas de lã, mesmo assim já não sentia as pontas dos dedos, pensou em tirar as mãos e soprar nelas o seu bafo quente antes que os dedos congelassem, mas não se animou.
Detestava trabalhar no turno da noite especialmente agora que o inverno tinha chegado. Todas as noites, depois de percorrer quarenta minutos num ônibus sacolejante, ele era deixado naquela estrada de terra sem qualquer iluminação para trilhar sozinho e guiado mais pelo instinto do que pela visão os cinco quilômetros até a casa onde vivia com seus pais.
Apesar de odiar aquilo, sabia que não havia escolha, o mundo havia mudado e já não era possível “viver da terra” como diziam os mais velhos, então, quando a situação financeira da família atingiu o limite, teve que aceitar aquele emprego na fábrica que havia se instalado há alguns meses na cidade com a promessa de trazer progresso e riqueza para aquele fim de mundo e ouvir todos os seus conhecidos dizerem que ele tinha muita sorte por ter um emprego de verdade.
Mas, todo mês, quando recebia aquele salário ridículo como pagamento por todos aqueles dias em que passava oito horas realizando um trabalho maçante e repetitivo dentro de galpão sem janelas, sem luz natural e tão iluminado artificialmente que fazia seus olhos arderem, não conseguia entender onde estava sua sorte e desejava poder voltar a trabalhar no sítio da família como fizera desde criança e como sempre imaginou que faria, ajudando seu pai a ordenhar o leite das vacas que ele conhecia pelo nome e que seria vendido na cidade.
Agora as pessoas da cidade preferiam aquele leite aguado que vinha em saquinhos de plástico e isso fez o número de clientes de seu pai diminuir tanto a ponto de terem que vender vários animais do sítio, para tristeza irremediável de sua mãe e ter que enfrentar seus pensamentos naquele caminho desagradável e escuro tornava seu humor ainda mais melancólico.
Ainda pensava nisso quando chegou ao bambuzal que se estendia pelos próximos três quilômetros e que era o trecho mais escuro da estrada, a pior parte do caminho onde a noite fria parecia ainda mais fria e o vazio intenso podia ser sentido como um gosto amargo em sua boca.
Todas as noites eram assim, quando chegava ali seu coração palpitava mais rápido e um medo irracional o invadia deixava-o ainda mais frustrado, por se achar um completo idiota.
Naquele momento, a sensação de fracasso pesava sobre suas costas e até andar parecia ficar mais difícil, então, como acontecera em todas as madrugadas durante os últimos meses, tinha a sensação horrível de estar sendo observado.
Naquela noite não foi diferente, caminhava dando rápidas olhadas para os lados e vendo somente os altos bambus que subiam até se perderem no céu negro.
De repente teve a impressão de que o barulho de seus passos não era mais aquele toc-toc duplo, pois havia um outro toc-toc, como se ridiculamente ele tivesse um segundo par de pernas. O barulho o incomodou tanto que parou de caminhar permanecendo inerte por alguns instantes. O som parou imediatamente até que, quando ele recomeçou a andar, o som voltou a segui-lo, mas agora, percebia ele ainda mais próximo.
Apurou o ouvido e, sem parar de caminhar, notou que o barulho vinha do bambuzal à sua direita. Olhou nervosamente naquela direção certo de que não veria ninguém e realmente não havia qualquer pessoa ali e mesmo que houvesse ele não conseguiria ver, estava escuro demais.
Continuou caminhando até que viu surgir, em meio ao negror que dominava tudo, dois pontos vermelhos em meio aos bambus, como dois olhos que o observava.
"Algum animal noturno” pensou tentando se tranquilizar e mesmo sendo terrivelmente inquietante caminhar na companhia daqueles dois pontos vermelhos não se deteve, porém, sentiu que seu coração começara a palpitar de uma forma desagradavelmente descompassada e, apesar do frio intenso que podia ser sentido até em seus ossos, estava suando.
Apertou o passo pensando em sua cama quente e desejando chegar logo à sua casa. “Não há nada com o que me preocupar... mais um pouco e estarei em casa... é engraçado como a cabeça da gente imagina coisas...” refletiu.
Continuou caminhando constatar que agora, além do som daqueles passos que não eram os seus, podia-se ouvir uma respiração ofegante. Aquilo tudo era realmente assustador, mas talvez fosse apenas o cansaço fazendo sua mente ampliar o sinistro daquela situação, pois não conseguia imaginar qual animal faria um som tão alto com aquele.
Deu alguns passos rápidos tentando se livrar daquela companhia sinistra, mas quando ele aumentava sua velocidade aquilo que o acompanhava também se movia com mais rapidez e quando ele diminuía a velocidade aquilo também diminuía.
Um odor pungente dominou o ar fazendo-o pensar na urina de um cão demarcando território, no instante seguinte o animal avançou parecendo correr para a frente, levando-o a acreditar que devia se tratar de um cão ou talvez um pequeno lobo que agora tinha sido atraído por alguma presa, como um coelho, deixando-o para trás.
Seguiu por algum tempo aliviado até que identificou há alguns metros uma maça negra saindo do bambuzal e se colocando em seu caminho exatamente no meio da estrada à sua frente.
A imagem terrível e assustadora daquela fera desconhecida fez seu coração gelar, sentiu as pernas tremerem e estancou sem saber o que fazer. Os enormes olhos vermelhos o observando, a boca de dentes pontiagudos estava aberta, o focinho comprido farejando o ar, o pelo grosso e emaranhado, as pernas tão longas, as patas dianteiras com longas garras afiadas. Aquelas pernas eram terríveis, aquele animal, ou o que quer que fosse, se equilibrava em suas duas pernas traseiras enquanto as dianteiras pareciam dois braços incompreensivelmente longos, e mesmo àquela distância ele pôde verificar que a fera era muito mais alta que ele, passando de dois metros.
Os dois se encararam por alguns segundos, o ar que saia da narina do animal formava nuvens de fumaça branca, seus olhos eram maldosos e vermelhos como bolas de fogo, bem devagar ele flexionou os joelhos assumindo uma posição de ataque, jogou a cabeça medonha para trás e rugiu para o céu, um som que fez o sangue em suas veias gelar e seu coração parar por um instante.
Quando compreendeu que corria perigo virou-se e começou a correr na direção oposta, voltando pelo caminho que tinha seguido até ali, não demorou nada para sentir as forças se esvaindo, os vários meses de trabalho sedentário na fábrica tinham acabado com sua resistência física e agora cobrava seu preço, mas o instinto de sobrevivência obrigava-o a continuar mesmo que seus pulmões já doessem pela falta de ar e ele começasse a sentir uma forte tontura.
Enquanto corria feito louco tropeçou e caiu algumas vezes ferindo a mão e os joelhos no cascalho da estrada e se tornando mais lento a cada vez que se levantava. Não ousou olhar para trás, pois ouvia animal se aproximando num trote regular como se estivesse se divertindo com aquela caçada, enchendo o ar por vezes com aquele rugido demoníaco.
O desespero era tão grande que sua mente não conseguia pensar com clareza, e derramou lágrimas quando avistou há uma centena de metros de onde estava a casa do vizinho mais próximo, atravessou a cerca de arame farpado rasgando roupa e pele e o cheiro do seu sangue atiçou ainda mais a fera que agora, como ele podia ouvir, corria com mais velocidade até que ele sentiu a estocada em suas pernas e a dor alucinante.
No mesmo instante ele tombou e como se o mundo estivesse girando mais lentamente, olhou ao redor sem conseguir enxergar qualquer coisa no breu que se fazia à sua volta, por um pequeno momento sentiu que estava a salvo, até que os olhos de fogo ressurgiram como vindos diretamente do inferno bem à sua frente, viu as presas pontiagudas e amareladas se aproximarem lentamente de seu rosto e sentiu o cheiro de podridão que emanava daquela boca violenta.
Então, seu grito ecoou na noite, sem ser ouvido por ninguém.