O HOMEM DA CARTOLA
 
 
Arthur sentira que tudo parecia se repetir. Naquele dia chuvoso de agosto, as aulas eram de certa maneira enfadonhas. Sua cadeira mal posicionada na quinta fileira, pendia para o lado esquerdo e embora seu desanimo não fosse algo novidade, tentava manter-se distraído pensando na hora da saída, o relógio marcando meio dia e a sirene tocando, marcando mais um final de turno. Entretanto, aquilo não ocorrera no tempo que pesara. Um raio despencou a dois quarteirões da escola —, viu isso Arthur. Viu isso... — Cochichou Alex, no assento ao lado.
Arthur fingiu que não viu e deu de ombros. Alex amassou uma folha de papel e jogou no rosto de Arthur, atordoando-o por alguns instantes — Puta merda. — Gritou mais alto do que deveria.
— O que você disse Arthur? — Questionou a professora, enquanto explicava o conceito de uma equação de segundo grau.
Arthur se assustou, achou que talvez se ficasse calado, ninguém notaria.  Marilda, a professora de matemática, uma velha gorda, de óculos e cabelos ruivos cruzou o corredor em sua direção. Ele ao contrário, fingiu novamente que não era com ele e desviou o olhar.
— Está me ouvindo Arthur. Ou vai me chamar de puta de novo.
Marilda segurou sua mão. Arthur debateu o braço para se soltar e acabou caindo da cadeira. Todos riram dele. Seu amigo Alex observou quieto do assento ao lado, como se não tivesse culpa e Arthur não falou uma palavra sequer. A professora que não havia gostado, nenhum um pouco da maneira que ele havia falado, ou a tratado naquele momento, gritou, alto, enquanto um raio atravessou o horizonte.
— Já para a diretoria Arthur!
Enquanto estava caído sobre os próprios matérias, Arthur enxergou através da sombra do raio, algo que não conseguia admitir ter visto. O rosto de Marilda havia mudado abruptamente e de um segundo ao outro, pareceu cavo e escuro, sem expressão, mas no lugar uma face em boca e dois olhos vermelhos. Mas tudo fora tão rápido que não passou de uma mancha em suas memorias, um devaneio que poderia ser coisa de sua cabeça. Aliado, portanto, aquela imagem perturbadora, ele levantou-se, apanhou os materiais no chão e saiu da sala quieto.
Ao fundo, ouviam-se sussurros.
— Esse moleque é estranho...
— É só mais um otário.
Arthur não se sensibilizou pelas fofocas. Marilda, saiu da sala logo em seguida, com seu caderno na mão e sua bolsa. Não poderia deixar sua bolsa na sala, afinal, é zona leste de São Paulo, nenhuma professora deixa suas coisas na sala de aula. Não é confiável.
O corredor principal da escola levava a sala dos professores e mais um pouco a frente a diretoria. Havia um tapete vinho na porta da diretoria. Dizia — Josiel.
Ele pode notar logo quando entrou a careca ilustrada. Haviam três estantes em cada lado da sala, uma escrivaninha antiga e uma máquina de café. Josiel estava parado a frente da máquina de café quando chegamos, o cheiro confortável e aromatizante do café circulava a sala. Era relaxante sentir aquele cheiro — Olha Josiel, esse mocinho teima em me desobedecer e fica falando palavrões durante a aula. Senhor... ele me chamou de puta. Quer que peça para chamar seu pai. — Discursou Marilda abando o braço enquanto falava.
Josiel olhou para Marilda, depois para Arthur e em seguida novamente para Marilda. Terminou de bebericar um gole do café, fechou os olhos, respirou e disse — Deixe que eu cuido disso Marilda. Volte para sala por favor. — Pediu educadamente em um tom modesto e claro.
— Mas Josiel, este menino merece ser punido agora. Devemos chamar seus pais. Precisamos chamar agora. Este garoto me chamou de puta.
Josiel deu outra bebericada, assoprou a fumaça cintilante do café quente, em seguida olhou para Arthur, observou-o por alguns momentos e voltou a olhar para Marilda — Por favor senhora Marilda. Volte para a sala e continue sua aula. Eu cuido disso.
— Mas senhor...
— Por favor Marilda.
Marilda encarou Arthur com desconfiança e saiu da sala abalando o quadril, e os ombros, suspirara como um porco enquanto estava próximo da porta.
 
— Essa já é a terceira vez que sua professora de matemática lhe traz a diretoria. O que conversamos da última vez? — Perguntou, enquanto posicionara o café sobre a mesa.
— Eu não a chamei de puta. — Sibilou Arthur, um pouco inquieto e tremendo a mão esquerda.
Josiel respirou funda e virou-se para a janela a suas costas.
— Olha garoto, eu sei os problemas que você tem em casa com aquele seu pai alcoólatra. Não que esteja dizendo que o que está fazendo é certo, mas existem limites. E acredito que já tenhamos passado do limite pela terceira vez.
— Eu não a chamei de puta. — Respondeu Arthur baixo e quase inaudível.
— Eu não vou chamar o seu pai Arthur, porque sei que ele não viria e acabaria voltando no outro dia com o olho inchado. Mas, queria lhe fazer uma pergunta.
Arthur arquejou os ouvidos, e inclinou-se meio centímetro para frente na direção da mesa.
— Somos uma escola de ensino médio, temos quinhentos alunos para administrar nesta escola para cada período e mais de cinquenta em cada sala de aula. Nossos professores estão sobrecarregados e são mal remunerados pelo trabalho que fazem. Nossa escola não recebe verbas do governo a quase seis meses e estão cogitando em parar de mandar a merenda escolar. Nossa escola tem o pior índice de aprendizagem da região e a média de nossos alunos não passa de 1. Isso arredondando. Agora, pense. Não temos como arcar com os custos da escola, com os custos dos professores, manutenção, aprendizagem, merenda e de todos os problemas que temos surge você Arthur. Um garoto, vamos dizer, especial. Não consigo explicar porque seus pais ainda não vieram a escola, ou porque as advertências não foram registradas. Devíamos chamar o concelho tutelar, mas temo pelo que possa acontecer. Agora me diga... o que eu faço com você?
Arthur estava distraído olhando pela janela uma partida de futebol que ocorrera na quadra, lá fora.
  — Você não ouviu nada que disse, não é mesmo.
Josiel se virou. Havia uma marca em sua mão. O desenho era estranho, mas visível. Uma clava. Um tipo de bastão pequeno com vários pregos na ponta — Tatuagem nova. — Perguntou Arthur.
Josiel arregaçou a manga da mão direita, cobrindo o desenho e fechou o punho.
— Muito esperto Arthur. Esperto demais.
Josiel se levantou da cadeira. Sua sombra cresceu sobre a parede.
— Não temos como mantê-lo nesta escola. Se não passar a se comportar, seremos forçados a transferi-lo. Sei que isso é errado. Mas você é teimoso Arthur e não tenho mais opções.
Arthur viu uma luz vermelha pulsando na mão de Josiel.
— Arthur... — Sussurrou uma voz em seus ouvidos.
Josiel estralou os dedos. Arthur levou um susto e se levantou. A sala estava tão diferente das últimas vezes. Josiel nunca tiraria seu troféu do concurso de xadrez de cima da estante, nem o de melhor goleiro de sua sala na oitava série em 1970. Arthur notou a nova decoração.
— Eu resolvi leva-los para casa. — Falou Arthur, quando viu que olhara para a estante.
— Filho, eu sei que tudo vai dar certo no final. — Disse Josiel, sacolejando seus ombros.
Arthur saiu da sala do diretor em seguida. O corredor até a sala de aula pareceu tão longo e sombra das janelas produziam-se sobre ele de forma estranha, como a segui-lo pela penumbra.
— Não é real. — Falou Arthur para si mesmo. Ausente do mundo.
Sua mão segurava a maçaneta da porta, petrificado. Estava lá naquela posição por uma hora e só se tocou do tempo quando sinal da saída soou. Então, uma multidão invadiu o corredor.
— Arthur... Arthur... — Chamou Alex, vendo-o na multidão.
Arthur só queria ir embora dali o mais rápido possível. Em menos de um minuto já o havia perdido na multidão.
Já fazia muito tempo que Alex tentara animar Arthur. Tudo tinha piorado do domingo passado até dois dias atrás, tudo mesmo. Alex havia visto uma mancha roxa no braço dele. Mas evitou questiona-lo.
A voz de Rafaela chegara até seus ouvidos. Alex fitou-a cantarolando junto a um grupo de garotos que mais a azaravam do que notavam sua voz. O chão estava sujo de salgadinhos e um rastro de refrigerante que ia até o banheiro feminino. Haviam colado um chiclete no boné de Bruno, um moleque emo cheio de piercings e de cabelo esverdeado do segundo ano. Alex viu na multidão de Arthur, mas não tinha certeza se era a dele, então empurrou Bruno que escorregou na escadaria, esbarrou num grupo de meninas e saltou sobre o corrimão — Arthur, cara... porque estava correndo.
Alex havia puxado a mochila de Douglas, um aluno encrenqueiro do terceiro ano e lhe dado um tapa na nunca. Douglas ficou furioso com aquilo e tentou dar um murro na sua cara, mas Alex desviou, e correu para a direita. Douglas o perseguiu com um grupo de valentões.
Arthur estava indo para a outra direção. Ele estava indo para a velha casa de sua mãe, agora abandonada. Ficava em cortiço, próximo de uma viela. O proprietário não havia colocado nem ao menos uma grande de proteção. Ele achava que mesmo que houvesse, Arthur conseguiria entrar de algum modo.
O velho sofá ainda está na sala, e uma maioria de moveis velhos que haviam deixado na casa quando se mudou para a casa de seu pai. Arthur jogou-se sobre o sofá como sempre fazia e então uma cortina de poeira rugiu sobre o cômodo. Ele ficou deitado no sofá, lembrando-se do passado, lembrando-se de sua mãe. Até que adormeceu.
 
— Acorde garoto... — cintilou uma voz em seu ouvido.
Arthur abriu os olhos vagarosamente, enquanto notava uma brisa fria viajando pela sala. Em seguida ouviu dois estalos, o primeiro foi baixo e era como se algo de borracha tivesse caído no chão, o segundo estalo foi mais forte, como se derrubassem algo na cozinha. Arthur levantou-se com medo, pensara que poderia ser o proprietário e se fosse estaria numa enrascada.
Após os dois estalos, Arthur não ouviu mais nada, contudo sentia ainda a brisa gelada vinda da cozinha. Erguendo-se do sofá, ele caminhou com dificuldade até o interruptor e ascendeu a luz. Por sorte o proprietário fora burro o suficiente para deixar o registro de força ligado.
Tendo chegado na cozinha, ele encontrou o motivo da brisa gelada. A janela do alto da porta estava aberta.  Arthur tentava se lembrar se tinha mesmo deixando-a aberta, mas não conseguia. Já era por volta das sete e meia da noite quando e quando percebeu a hora ficou desesperado. Voltando para a sala ele notou que alguém estava segurando sua mochila. Sua silhueta era estranha, era esguio e usava uma cartola.
— Eu moro aqui, garoto.
Arthur congelou. Estava atônito de medo. A mão do sujeito era grande e seus dedos largos, com unhas deformadas. Estava escuro então era difícil enxerga-lo com precisão. O garoto tentou dar um passo para trás, mas aquilo o seguiu, movendo-se na mesma proporção.
— Eu matei ela, não se lembra... era nosso segredo.
Arthur não sabia ao certo do que estavam falando, mas naquele momento uma memória retornou a mente. Ele havia acordado a noite... estava tudo escuro, as luzes não ascendiam e havia um vulto dentro de casa, alguém com uma cartola. — Não pode, eu já lhe entreguei este ano...
— Eu estou com muita fome. — Gritou uma voz.
Arthur ouviu sua mãe se levantar e vir em sua direção, a coisa estava atrás dele, tinha duas vezes o seu tamanho e passou os dedos sobre seu ombro pálido.
— Eu sinto o cheiro dela.
— O que é isso? — Perguntou-se, lembrando.
— Você me deixou com fome todos estes anos.
Arthur colocou a mão na cabeça, as memorias eram incontroláveis e abomináveis ao mesmo tempo. O homem da cartola se aproximou de sua mãe, ela não estava vendo nada.
— Filho, a luz caiu. Eu vou ascender uma vela.
Arthur tentou gritar para que ela não o fizesse, mas ele cerrou sua boca com a mão ossuda.
Quando a vela ascendeu, ela deu de cara com a sombra escura daquela coisa alta e esquelética que assoprou a vela.
— Hora de comer...
Arthur lembra-se do som de sua mãe gritando. O som da carne sendo dilacerada e o débil barulho de ossos estralando.
— Não, por favor. Não...
Uma mão tocou seu rosto. Era suave e macia.
— Mãe? — Perguntou, sem enxergar.
— Mamãe não está aqui.
— Foi você, foi você... — Gritou.
— Você quebrou nosso pacto garoto.
— E você matou a minha mãe.
— Eu estava com fome.
— Vá se foder você e essa sua fome do caralho...
— Atrevido.
Um som veio a porta.
— Arthur, você está bem. — Falou Alex do lado de fora da casa.
— Alex não en...
A coisa agarrou-lhe. Alex ouviu um som áspero e ruidoso, algo estava errado. Um cheiro de sangue ultrapassou a porta. — Que droga está acontecendo ai.
— Entre Alex, vamos brincar.
— Arthur é você mesmo.
Alex colocou a mão na maçaneta e abriu a porta. Estava tudo escuro.
— Eu estou aqui. Pode entrar. — Sorriu a voz de Arthur.
 
 
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 18/01/2018
Reeditado em 18/01/2018
Código do texto: T6229148
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