O RITUAL DE SANGUE


1657

 
e
  
   Faz dois dias que Issac me matem presa. Ouço os outros gritando lá fora e as vezes, vejo escorrer das tabuas no teto, pequenos filetes de sangue que se infiltram na madeira e respingam no chão. Eles estão prontos para a caça, para o morticínio. Da última vez capturaram uma prostituta, eu sei o que eles gostam de ouvi-las gritar antes daquilo... antes que as mutile. Lembro quando completei quinze anos, Sara aprontou todo o ritual. Eles arrancaram um dos meus olhos. Davi o carrega no pescoço agora, Sara diz que é um troféu, não que significasse algo para ela, mas o ritual precisava ser completado.
   Tiago vem me trazer comida quase todo dia. Mas sinto que tudo que ele traz esta estragado. Os portugueses ainda não invadiram nossas terras e desde que os últimos colonos findaram uma colônia depois do lago é fácil conseguir mais sacrifícios, os deuses do sangue se alegram. Samuel sussurrou da porta dos fundos que hoje a noite iriam me soltar. Não tenho certeza se vão realmente. E também, não quero que me vejam deste jeito. Sarah tentou costurar a orbita do meu olho para não ficar tão feio, mas só piorou as coisas. Tiago me deu um pano para colocar sobre o rosto, acho que desse modo conseguem me olhar sem vomitar.
   Isaac amolava a foice enquanto Sara preparava mais um sacrifício no outro cômodo. Aqui debaixo no escuro é possível bisbilhotar por entre as fendas na madeira e eles nunca souberam disso. O sol começara a eclipsar, sei disso porque a luz lá em cima tornou-se sangrenta. Tiago invocou as palavras do manuscrito de sangue, então é possível que eles venham esta noite. Tenho medo de sair. Eu sei que são meus irmãos. Mas tenho medo de sair. Aquelas coisas não ligam para laços de sangue. Para eles é tudo mais um sacrifico e Sara sempre diz — Devemos ser gratos a terra, aos deuses do sangue que por gerações tens nos fartado de vida. O sangue dos inocentes é apenas uma oferenda, não somos culpados por suas perversões, nós somos apenas um canal, afinal o sangue está nas mãos deles e eles gostam do gosto.
   Tento me convencer de suas palavras. A oito anos Jonas tentou fugir, quando os colonos chegaram, mas Isaac o trouxe de volta e o levou para o escuro e nunca mais vi meu irmão, ele era o único que cuidava de mim da forma que eu precisava. Não me deixaram nem queimar seu corpo para que sua alma embarcasse no rio das sombras até o paraíso perdido de Ergnas para que se juntasse a nossos ancestrais. Devem tê-lo enterrado, Sara não é misericordiosa e temo que como única mulher tenha que me tornar ela. Sara não esconde a cicatriz, a marca do ritual em seu olho direito, não como eu. Ela anda com mais destreza e orgulho de seu trabalho. Não posso me tornar ela.
   Eu precisava acreditar que não me levariam ao púlpito, não eu, a única mulher. Isaac apareceu a noite para me buscar ao lado de Tiago, mas como já tinha imaginado, não fariam nada comigo, fizeram-me assistir ao sacrifício de um homem. Sara carregou seu corpo desacordado até o altar de sangue e o pendurou numa madeira. O homem me pareceu ser um dos colonos, mas desta vez haviam capturado um descendente da floresta, o inimigo de Jarnak, um índio. Devia ter no mínimo vinte e poucos anos. Tiago me segurava próximo do púlpito, ele tirou uma adaga da cintura, supliquei que não me matasse, mas novamente estava sendo precipitada demais, ele apenas fez um corte na minha mão e deixou o sangue cair sobre o altar do sacrifício. O eclipse havia congelado no céu, os deuses do sangue nos observavam, sedentos de fome. Quando índio acordou, ficou mais atordoado do que eu, começou a se debater e gritar, urrando de dor. Sara tirou o pano de sua boca e ele gritou ainda mais alto, queria que soltássemos, queria voltar para sua família. Quando percebeu aonde estava, provavelmente lembrou-se das lendas, da lenda dos caçadores do sangue que muito espalhamos por suas terras.
   O coitado se urinou no momento que teve ideia do que estava acontecendo. Em seguida, ele olhou para a lua de sangue e clamou por seus deuses, para que tivessem misericórdia dele e para que o salvassem, mas seus deuses não eram tão poderosos, os deuses do sangue não os deixaram entrar no ritual. Sara aproximou-se do púlpito. Haviam pedaços de pele e ossos humanos ao redor e o amuleto de Jarnak sobre a cabeça do jovem índio. O amuleto brilhava a luz da lua. Sara carregava uma foice em sua mão, a que Isaac amolara, ela subiu até o púlpito e fez um corte na mão do índio, um corte profundo dilacerando sua mão até os ossos. O sangue escorreu pelas escadas e esguichou em sua roupa branca. O brilho da lua então se intensificou, vi os olhos de Sara tornarem-se vermelhos como sangue, ele finalmente havia a possuído. Jarnak, conhecido como o sétimo deus da colheita sangrenta começou a rir e pronunciou palavras que nenhum ser vivo conseguia entender.
   Ele tomou a foice pela mão de Sara e arrancou uma das mãos do índio e em seguida começou a beber de seu sangue. O jovem que não conseguia mais nem gritar de tanta dor invocou as estrelas de Satarosh e o brilho delas fizeram com que as nuvens cobrissem a lua. Jarnak foi expulso do corpo de Sara e vimos um grupo de tochas se aproximando, rondando o púlpito. Sara gritou de ódio por não ter completado o ritual. Havia começado a chover. Ela então enfiou a foice na cabeça dele e a rasgou no meio. Enquanto degustava sua frustação no crânio do índio morto, os portugueses saltaram sobre ela. Isaac tentou ajuda-la, mas outros três soldados o fulminaram numa chuva de balas. Tiago puxou-me na direção da cova, mas foi acertado no pescoço por um projetil. Não sei o que aconteceu com Davi ou Samuel, por mim que tenha sido pegos pelos portugueses. Amanhã com certeza amanhecerei morta, portanto espero que saibam que eles nunca mais vão derramar sangue nestas terras, nunca mais, meu perdão não vai lavar meus pecados e nem tão pouco o deles, ainda assim peço que destruam o púlpito e tudo que puder dar referência a Jarnak. Encontraram os corpos de todos os sacríficos no fundo do lago, desculpem-me se vou ser direta demais, porém não houveram sobreviventes. Eles desmembraram os corpos, disseram que era mais fácil para os peixes fazerem o trabalho deles.

 
Outubro de 1657, a partir de hoje não haverá mais sacrifícios.
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 17/01/2018
Reeditado em 17/01/2018
Código do texto: T6228215
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.