Antes que o sol se ponha
“Sem lágrimas, por favor. É um desperdício de bom sofrimento”.
Hellraiser.
O carro rodava morosamente. No horizonte, que se avermelhava, tufos de poeira subiam das plantações. Um vento úmido dos primeiros respingos chispava na carenagem. O rapaz, olhando pelo espelho, diz:
-Onde vamos encontrar água?
-Onde tiver gente, tem água!
A ideia tinha sido do motorista. Eram jovens e estudantes. Iam escapar da cidade, era a fala de ambos. Trouxeram smartphones e bolachas. Esqueceram o básico e fundamental: água. Aquela dos rios estava poluída pelos agrotóxicos das grandes plantações. Os longos cinturões de soja e milho entrecortavam-se à distância por faixas de pastagens. A moça olhava para fora e arriscava um palpite:
-O homem transforma a paisagem...
-E transtorna os animais!
Continuariam rodando se uma nuvem de mariposas não invadisse o para-brisa. A moça de olhos verdes sugeriu que limpassem. O nerd disse que não ia lá fora. Sobrou para o motorista.
-Bando de preguiçosos!
-O carro é seu, mané!
Abriu a porta e o vento morno da tarde adentrou o veículo. Assim que passou o pano, sentiu os insetos subindo pelo dorso da mão. Chacoalhou-a para se livrar deles. Um ficou grudado. Então, forçou as costas da mão e sentiu a picada.
-Droga!
-Sai daí, cara!
Arrancou com o carro, as palhetas mal limpando. À frente, uma construção rústica, a alguns metros da pista. Um barracão de máquinas ou algo parecido. Tocou para lá. Estacionou sob a velha figueira. Entreolharam-se e decidiram que o nerd desceria. Desceu externando desagrado:
-Merda, por que eu?
-Toma, leva seus óculos.
Quando pisou o solo percebeu um clima estranho no ar. Nem calor, nem frio. Apenas mornidade. E um barulho conhecido. Zumbido. Milhares de zumbidos bem acima de sua cabeça. Olhou para os galhos da árvore e seu coração gelou: havia mais abelhas do que todas as moscas que zumbem em todos os becos do mundo. Sem fazer barulho, ficou fazendo sinais para que abrissem a porta.
-O que ele tá querendo?
-Não! Combinamos que era a vez dele descer.
Batia de leve no vidro do carro e apontava para cima. Nesse momento, a porta do velho barracão se entreabriu. Uma figura grande e corcunda acenava para que o nerd entrasse e depressa, demonstrava por gestos curtos e bruscos. Ele olhava de soslaio para os galhos vivos e inquietos da figueira. Olhava com medo para a porta entreaberta e olhava súplice para os amigos no carro.
-Ele tá com medo do Corcunda, vou lá então!
-Vai me deixar aqui, sozinha?
Assim que pisou no chão, ainda segurando a porta, uma onda de calor o engolfou. Sentiu o medo do amigo encostando-se a ele e vencendo sua ousadia. O outro, com os dedos nos lábios, apontava para cima. Fechou a porta para poder olhar direito. A amiga, lá dentro, desconfiou de que não estivesse bem fechada e bateu. A onda deslocou-se em bloco dos galhos sobre os dois amigos.
-Puta que pariu, abelhas!!!
-Corre, corre, o barracão!!
Dispararam para a porta. Estavam com as costas e os cabelos cheios e debatiam-se alucinados. Entraram os dois ao mesmo tempo, debatendo-se e rasgando as camisas para espantá-las. As ferroadas latejavam incontinenti. Principalmente as dos olhos. Não estavam enxergando bem. Mas, assim que passou o primeiro susto olharam ao redor. O que eles viram, fizeram-no se ajoelhar e procurar o abraço um do outro. Em toda a extensão da parede, com exceção da porta, havia caixas de abelhas afixadas espaçadamente. Encostado à porta, o corcunda de macacão e máscara.
-Santa mãe de Deus, cara!
-Não quero morrer!
De dentro do carro, a moça olhava com terror para o lado de fora. Estranhamente não havia mais barulho algum. Na porta do barracão o corcunda acenava. Suas roupas e sua figura pareciam um convite para a morte. Ela declinou o convite. Pulou para o banco do motorista e arrancou na direção da cidade. Olhava o tempo todo pelo retrovisor e não via nada. Uma massa amarelo-escura sacolejava na pista junto com o carro. Estava grudada no teto.