Spike
Foi tudo muito rápido. Muito rápido mesmo.
Fábio desviou o olhar por alguns instantes da filha e levantou, em nenhum momento passava pela sua cabeça que seu grande amigo, aquele a quem tantos dizem o melhor do homem, aquele quem ele tratou de maneira zelosa e carinhosa o admirando a cada dia... vendo como seu corpo tornava-se aos poucos como o de um gladiador a serviço daquele que o dedicava tanto amor pudesse... Fábio amou vários cães e amava Spike, um Rottweiler negro de 4 anos, gigante... a primeira companhia de Fábio após a cruel solidão... antes que conhecesse Sílvia, e em pouco tempo já fossem de dois para quatro aquela família. O cão e ele eram como um. Antes dela...
A quarta era Angélica.
Seu presente.
Seu tesouro.
Não mais ouro de tolo!
Ele aprendera a amar...
A filha renovou seus votos com a vida a tanto desiludida, e aos dois anos já parecia ter cumprido a missão de trazer a Fábio o pedaço que foi arrancado quando a mãe e o irmão morreram entre ferragens amoladas quando o ônibus da igreja rolou pela ribanceira. Iam pra o cemitério onde estava o pai. Todo ano era isso. Um compromisso que ao fim foi sacrifício. Dois mortos de quinze. Sua única família...
E então veio Spike.
Ele lembrava segurança... pelo negro de seu pelo ele via a força que um dia ele prometera a si possuir para vencer na vida... mas faltava alguma coisa... e então lhe foi dada essa coisa...
“Angélica...
Dos céus, descida à terra...
Angélica tu és bela...
Semente do eterno regada pelo poeta...”
A vida de Fábio havia retornado.
E brincando uma vez mais na sala de casa com a filha, seu cão e milhares de brinquedos espalhados num mar de bonecas, mamadeiras e ursos, Fábio refletia que preferiria ter em sua carne todos os ferimentos que pudessem atingir seu tesouro... ser pai o havia ensinado o valor da proteção... proteção que ele não teve... proteção que canalizou no amor aos animais, no amor a todos os cães que havia criado antes de Spike, e no amor especial que sentia por esse último, um cão leal... sim... um cão especial... havia confiança entre eles... liberdade... respeito... amor...
Um rosnado terrível.
A cabeça negra balançando freneticamente de um lado para o outro.
Uma criança gritando. Sangue. Urina. Sangue. Adrenalina.
Spike mirara o pescoço, mas num último momento decidiu que seria no rosto. A mandíbula forte se fechou sobre o rostinho de dois anos e ele sentiu os ossos se partindo sob seus dentes, Spike balançou rápido porque sabia que Fábio viraria imediatamente quando percebesse, ele esperou muito tempo até que o dono se distraísse e ele pudesse fazer a parte dele... o sangue escorre do rosto rasgado de Angélica, o reflexo de Fábio abismado foi socar Spike na cabeça, e ele largou Angélica... desfigurada como um anjo que tem suas asas arrancadas...
“Angélica não sobreviveu. Pescoço fraturado.
Fábio pagou para que matassem Spike.
Tiros de pistola e porrete pra todo o lado.
Sílvia o deixou.
Não havia família agora.
O mundo dele afundou.
Ele não usaria uma pistola”
Algumas semanas depois, Fábio engoliu uma mistura absurda que lhe fulminou as vísceras...
Com muita dor... ele foi rever sua menina...