O dia 31 de outubro
Larital estava completamente enlouquecida com os últimos fatos ocorridos. Não obstantes terem perdido oito de seus membros em um estranho ritual no último dia 31 de outubro, passados tão somente nove meses, eis que as oito garotas achadas amarradas e seminuas junto aos corpos no estranho ritual também foram mortas, no mesmo dia, em suas casas, enquanto que seus filhos desapareceram.
A Polícia de Larital não tinha dúvidas: era a mesma pessoa que cometeu todos aqueles crimes. Exames nos corpos das garotas comprovaram que as mortes ocorreram de dentro para fora, como se os fetos houvessem rasgado os ventres de suas mães e saído por livre e espontânea vontade – e fugido posteriormente, eis que a Polícia não encontrou nenhum vestígio sequer da passagem deles. Foram investigar os exames pré-Natal das garotas mortas, quando tiveram uma surpresa: as ultrassonografias das oito garotas apontaram que seus filhos eram, na realidade, pequenos seres – pequenos mesmo, menores que um feto comum – humanoides, completamente formados – em todas as ultrassonografias, independentemente de qual período da gestação elas fizeram -, faltando apenas uma perna, em pé e carregando algo que parecia um gorro natalino na cabeça.
Quando tal notícia chegou aos ouvidos da população de Larital, a cidade virou um verdadeiro furor. A população da cidade, especialmente a mais idosa, passou a acreditar veementemente que o ataque e morte das garotas e o estranho ritual foram praticados pelo mito do Saci. E não acreditava a Polícia de Larital dizer constantemente que aquilo era bobagem, que o Saci não existia e que havia uma explicação racional: ninguém acreditava. Principalmente depois de alguns sobreviventes do contato com o Saci relatarem aos moradores da cidade ou nas redes sociais que viram o Saci naquela noite de 31 de outubro.
A população passou a exigir a demolição da Fazenda São Cristóvão, símbolo do poder escravocrata da cidade. Claramente, a Prefeitura da cidade foi contra, até mesmo o bem era tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Começaram a ter protestos pela cidade, exigindo a demolição da Fazenda. A Prefeitura fez ouvidos moucos, acreditando que logo aquele furor iria passar. Engano seu. No dia 17 de agosto daquele ano, a Fazenda São Cristóvão amanheceu em chamas. Suas ruínas haviam sido derrubadas e os escombros incendiados.
O Prefeito da cidade exigiu investigação imediata dos responsáveis pela demolição da Fazenda São Cristóvão. Membros do IPHAN compareceram à cidade para tentar auxiliar os trabalhos, mas todos sabiam que era praticamente impossível reconhecer os culpados. O único trabalho possível era a reconstrução da fazenda. Todavia, o Prefeito achou melhor esperar o caso do Saci abafar para reconstruir a fazenda, ou seria apenas dinheiro jogado no rio.
Meses se passaram e pouco a pouco a população foi se acalmando, principalmente por acreditarem que o Saci não iria voltar a aparecer com a demolição da Fazenda São Cristóvão. Entretanto, boa parte da cidade ainda estava temerosa com a aproximação do próximo dia 31 de outubro.
No dia em questão, 31 de outubro, grande parte dos pais havia proibido seus filhos de saírem às ruas, fechando portas e janelas e trancando as casas. Naquele ano, devido aos relatos dos anos anteriores, os mais jovens acharam prudente seguirem os conselhos dos mais velhos e ficarem trancados em casa naquela noite, com portas e janelas trancadas.
Em uma das residências, os jovens Natasha e Samuel se encontravam dentro de casa, com ela assistindo a um filme e ele sentado na escrivaninha do outro lado da sala mexendo no notebook. Natasha era amiga de duas meninas que engravidaram e morreram no incidente do ano passado e estava preocupada com sua própria segurança. Samuel também estava preocupado com a segurança de sua noiva – e com a própria -, tendo conferido quatro vezes se todas as portas e janelas estavam devidamente fechadas e trancadas.
Era pouco mais de 8 horas da noite e a cidade inteira estava um absoluto silêncio. O filme de Natasha havia acabado e esta, ao desligar a TV, fez a sala entrar no mesmo silêncio absoluto que assolava a cidade.
- Essa cidade está tão quieta hoje! – disse a garota, enquanto se levantava do sofá
- Também. – disse Samuel – Depois do que aconteceu ano passado, ninguém é doido de ficar fora de casa hoje.
- Verdade. – a garota caminhou até o seu noivo e o abraçou por trás – O que está fazendo?
- Mexendo em um relatório. – respondeu o rapaz.
- Ah, beleza. – a garota desprendeu-se do noivo. – Vou fazer um lanche e já volto. Vai querer também?
- Vou sim. – disse o rapaz – Precisa de ajuda?
- Não, não. Pode continuar trabalhando. – disse a garota, enquanto saía do interior da sala
Samuel continuava mexendo no notebook. Alguns minutos depois, Natasha chega ao interior da sala, com dois pratos com pães de forma torrados dentro.
- Teria como você pegar o suco pra mim? – perguntou Natasha
- Claro, amor. – disse Samuel, levantando-se da mesa e caminhando em direção à cozinha.
- Vou olhar meu Facebook rapidinho aqui! – gritou Natasha, enquanto se sentava em frente ao computador e abria uma guia na internet
- OK! – gritou Samuel, pouco antes de voltar com dois copos de suco de uva nas mãos
Colocou os copos ao lado dos pratos e sentou em uma cadeira perpendicular à que estava assentado. Passou a devorar um dos pães de forma que se encontrava em seu prato. Percebeu que sua noiva comia bem vagarosamente seus pães, por aparentemente estar bem focada na tela do notebook.
- Algo de interesse no Facebook?
- A Michelle... falando que tem alguém no seu quintal...
- E por que a pessoa não chama a Polícia, ao invés de postar no Facebook?
Natasha olha torto, mas Samuel não mudou sua postura.
- Eu mandei mensagem para ela perguntando o que aconteceu. Ela respondeu apenas que tem uma pessoa que está rondando o seu quintal, como se estivesse tentando entrar. Ela ligou para a Polícia e eles ficaram de comparecer ao local. Faz poucos minutos e ela postou porque está desesperada.
- Entendi... – disse Samuel, emudecendo-se em seguida
O rapaz continuou a comer. Natasha leva o suco de uva à boca e, repentinamente, cospe todo o conteúdo de suco que se encontrava dentro de sua boca na tela e no teclado do notebook, devido a um susto que tomara.
- Eiiii! Meu notebook! – gritou um assustado Samuel. Em seguida, o rapaz se levanta, irritado e corre em direção à cozinha
- Me desculpa. – disse Natasha – Mas olha isso!
O rapaz volta da cozinha e pega um pano, secando a tela e o teclado do notebook.
- Tomara que não estrague!
- Desculpa mesmo, amor. Mas olha isso! A foto que a Michelle acabou de me enviar!
Samuel fita a tela do notebook. Ergue a sobrancelha, tamanha a surpresa. Era a foto da área externa de uma residência. Nela, havia um jardim com um rapaz jovem e negro lá, olhando fixamente para a câmera. Ele aparentemente não possuía parte de uma das pernas, só usava uma bermuda vermelha e um gorro vermelho na cabeça.
- Não... pode... ser! – disse um estupefato Samuel
Repentinamente, eis que o interfone da casa toca, alto o suficiente para assustar todo mundo no interior da residência.
- Puta merda. Parece que hoje é dia de eu tomar susto. – reclamou Samuel, enquanto caminhava em direção ao interfone.
- Alô? Quem é?
- É o Ricardo. Pelo amor de Deus. Abre essa porta.
Samuel aperta o botão para abrir a porta. Em seguida, correu até a mesma, a fim de receber o seu amigo. Ricardo era um rapaz de idade semelhante a Samuel e entrou desesperadamente no interior da residência. Avistou o seu amigo e o abraçou fortemente, causando estranheza ao mesmo e à sua noiva.
- O que aconteceu?
Ricardo afasta-se de Samuel. Debulhava-se em lágrimas.
- A-Aquele monstro... invadiu minha casa!
- Que monstro?! – Samuel sentiu o coração apertar no peito.
- O Saci. Ele invadiu minha casa!
- Quê?! – gritou um assustado casal, simultaneamente
- Mas como foi isso?
- Sei lá. Devo ter deixado uma porta aberta. Ele pegou a Ana...
- E você, o que aconteceu?
- Eu tentei ir atrás, mas fiquei tão desesperado que eu só me lembrei de pedir ajuda...
- Entendi. – em seguida, respirou fundo
- Há quanto tempo isso aconteceu? – perguntou Natasha
- Sei lá... uns 10 minutos, por quê?
- Não tem como ter sido o Saci... ele estava na casa da Michele 10 minutos atrás.
- Mas foi ele sim. Eu o vi. Com aquele olhar assustador.
- Será que tem mais relatos da aparição do Saci na internet? – perguntou Natasha, para si mesma, voltando para a sala
- Sério que você vai olhar relatos do Saci? E a Ana? – perguntou Samuel, surpreso com a reação da noiva, caminhando junto de Ricardo atrás dela
- E você quer ir lá pra fora e virar a nova vítima? Ano passado oito pessoas foram mortas em um ritual bizarro e oito garotas foram estupradas e mortas. Você quer realmente fazer parte do clube desse ano?
- Mas nós precisamos fazer alguma coisa. – o argumento de Natasha era demasiadamente convincente, mas ele precisava tentar fazê-la mudar de opinião
- E a gente vai chegar lá e fazer o quê? Você sabe como bater em Saci, por algum acaso?
- E o que faremos então? Ficaremos aqui de braços cruzados esperando a Ana virar uma vítima do Saci?
- Faremos o que qualquer pessoa sensata faz na ocorrência de um crime. Ligamos para a Polícia.
- E a Polícia vai acreditar que a Ana foi sequestrada pelo Saci, por um acaso?
- Me deixa tentar, pelo menos. – Natasha pegou o celular de Samuel que estava ao lado do notebook. – Me empresta o seu celular que o meu está lá dentro. – discou 190 e aguardou atendimento.
Enquanto aguardava o atendimento, Natasha fitava a tela do notebook.
- Algum relato? – perguntou Samuel, caminhando até ficar atrás da cadeira ocupada pela noiva
- Tem. Vários. – Alô? – cortou o assunto, ao ser atendida
- Sargento Escarlate falando. Em quê eu posso ser útil?
- Oi. Meu nome é Natasha. A namorada de um amigo nosso apareceu aqui em casa desesperado, sem saber o que fazer, porque sua casa foi invadida agora a pouco por um rapaz que estava se fantasiando de Saci para cometer crimes e puser a culpa no mito e sair impune. E, ainda por cima, ameaçou meu amigo para que ele não ligasse para a Polícia. Por isso que ele nos procurou?
- Hum... – disse a policial, do outro lado da linha. Um silêncio perturbador ecoou pelo local. Samuel e Ricardo ficaram com seus corações apertados no peito, esperando a reação da policial atendente. – Entendi. Você pode me passar a descrição da moça? Mandaremos a Polícia realizar uma patrulha agora mesmo. – Natasha olhou sorridente para Samuel e Ricardo, que lhes devolveu um sorriso no rosto. O plano da garota deu certo!
Natasha passara à policial todas as características de Ana, tendo desligado o telefone em seguida. Estava angustiada: Ana era sua amiga, mas sabia dos riscos de colocar o pé para fora de casa.
- E o que faremos enquanto isso? – perguntou Samuel
- Não sei. Infelizmente aguardar. – disse Natasha – Parece que o Saci está aparecendo no quintal de várias pessoas!
- Mas como ele está aparecendo assim, para várias pessoas?
- Ano passado os relatos eram concomitantes. – respondeu Natasha – Não acredito que tenha mudado do ano passado para esse...
- Será que não tem nada a ver com a gravid... – dizia Ricardo, mas foi interrompido por um estrondo vindo do cômodo onde fica a porta de entrada
- Que som foi esse? – perguntou Samuel, enquanto Natasha se levantava da cadeira
- Não sei. – o estrondo logo se transformou em vidros quebrando no chão, seguidamente - Vamos. – disse a garota, caminhando rapidamente, junto do noivo e de seu amigo, em direção ao cômodo
Chegando lá, sobressaltaram-se. A porta da casa estava aberta e o Saci se encontrava defronte a uma estante, onde jogava os pratos no chão. Havia, ao seu lado, alguns objetos decorativos caídos ao chão.
- Put... – soltou Natasha, tamanho o susto. Samuel tampou sua boca.
Entretanto, o mínimo som foi o suficiente para fazer o Saci ouvir. Parou o que estava fazendo e virou o rosto contra o trio. Estes, novamente sobressaltados, gritaram e saíram correndo pela porta, sendo que Ricardo, o último a sair, bateu violentamente a porta.
Mesmo fora da residência, o trio postou-se a correr desenfreadamente pelas vazias ruas de Larital.
- Quem foi o idiota que deixou a merda da porta aberta? – perguntou Natasha, furiosa
- Desculpa. – disse Ricardo – Deve ter sido eu, sem querer...
- Filho da puta... não basta deixar o Saci invadir a sua casa, agora fez ele invadir a nossa? – perguntou, irritada
Ricardo ficou em silêncio, cabisbaixo.
- Desculpa. Eu não cabia...
Samuel percebeu que Natasha iria continuar a disparar falas agressivas contra o amigo e a cortou, com voz calma e paciente:
- Acalme-se, amor. Vamos ver o que possamos fazer.
O som acolhedor das palavras do noivo fez Natasha se acalmar.
- E o que faremos agora? – perguntou Ricardo
- Nos dar abrigo na sua casa é uma boa ideia, não acha? – perguntou Natasha, ainda furiosa com o amigo do noivo
- Verdade. – disse Samuel – Melhor do que ficarmos aqui fora ao relento.
- Certo. Vamos para minha casa então.
Ricardo residia a duas quadras da casa de Samuel e Natasha. O trio atravessou o caminho o mais rápido que pôde. As ruas estavam escuras e vazias, o que dava um ar sinistro ao local.
Pouco mais de seis minutos depois, o trio chegou à residência de Ricardo. Este abriu a porta o mais rápido que pôde e todos adentraram no local. Após, chegou e trancou a porta.
- Vamos ver se não tem nenhuma porta ou janela aberta. – disse Samuel, adentrando pela casa
- Aparentemente, passou um furacão aqui! – disse Natasha, se referindo ao fato de a casa de Ricardo estar revirada
- Deve ter sido o Saci. – disse o anfitrião
- Provavelmente, porque não tem ninguém na rua para dizer que foram ladrões.
- Pronto. – disse Samuel, voltando do interior do cômodo – Tudo fechado.
- Certo. – disse Natasha, relaxando os músculos. Pegou uma cadeira que se encontrava no chão e a levantou, sentando-se em seguida.
- E o que faremos agora? – perguntou Samuel
- Darmos um tempo e voltarmos para nossa casa, nem que seja para trancarmos a porta e evitarmos um saque...
- Faz sentido.
- Mas... e enquanto isso, o que faremos? – perguntou Ricardo
Natasha deu de ombros. Ricardo olhou para Samuel. Este imitou os gestos de sua noiva. Ricardo puxou uma cadeira para frente e sentou-se.
- Também não sei a resposta... – concluiu
Natasha aproveitava o tempo para mexer no notebook de Ricardo e olhar as notícias do Saci ao redor da cidade. Eram uma verdadeira enxurrada de comentários a respeito do mito do Saci, que inundavam as redes sociais. Eram relatos, fotos, vídeos, pedidos de socorro, narrativa de desaparecimentos, dentre outros. A própria Polícia Militar colocou um vídeo explicando para as pessoas ficarem dentro de casa, trancarem portas e janelas e evitarem comer carne de porco; a Polícia explicou também sobre a necessidade de se informar o desaparecimento de parentes ou amigos e que a corporação está trabalhando afinco para encontrar o paradeiro dos desaparecidos.
- Coitada da Polícia de Larital. – disse Samuel – Há um ano ela está de cabelos em pé, tentando resolver este caso.
- Mas agora, eles estão realmente levando a sério o mito do Saci... – disse Ricardo
- Provavelmente para tranquilizar a população. Eles ainda devem estar procurando uma solução razoável para o caso. – explicou Natasha
- O que é até razoável de se entender. – disse Samuel – Imagina a Polícia Civil concluindo inquérito dizendo que as mortes foram causadas pelo Saci? É demissão na certa...
- Ou internação no Manicômio... – disse Natasha, rindo em seguida. Samuel também riu.
- Só não entendi uma coisa... – disse Ricardo, sério
- O quê? – perguntou o casal
- O que carne de porco tem a ver com isso?
- Diz a lenda que o Saci tem preferência em atacar pessoas que comeram carne de porco. – disse Natasha
Ricardo ficou em silêncio.
- Olha esse vídeo... – disse Samuel, apontando para a tela do notebook. Natasha focou o olhar em direção ao local apontado pelo noivo e fitou um vídeo postado no Facebook. Era um vídeo de um senhor, bem senhor mesmo e com um escrito dizendo:
“Senhor explica sobre o mito do Saci”.
Natasha não perdeu tempo. Logo clicou no vídeo e o deixou rodando. Um rapaz, de pouco mais de trinta anos, estava de costas para a câmera e frontalmente a um senhor, de mais de oitenta anos de idade. O vídeo começava com o rapaz narrando o que iria acontecer para os espectadores:
“Pessoal, bom dia.
Meu nome é Carlos e estou com meu avô, o senhor Ângelo, um dos moradores mais antigos de Larital. Seu Ângelo estará completando 90 anos na próxima semana e ele é um relato vivo da época em que o Saci atormentou Larital pela primeira vez, quando ele era jovem.
Tudo bem, vô?”, perguntou o rapaz, virando-se para o avô.
“Tudo bom, meu filho”.
“Vô, estamos aqui hoje porque Larital voltou a ser palco dos ataques do Saci na noite do dia 31 de outubro. Esses ataques eram muito frequentes quando você era jovem?”
“Sim”, respondeu o avô. “Toda noite de 31 de outubro era um tormento. O Saci destruía janelas e portas, invadia casas, raptava garotas, as engravidava, sequestrava rapazes e adultos e os matava perto da Fazenda São Cristóvão... era terrível”
“E por que, repentinamente, os ataques pararam? Você tem uma ideia?”
“Não. Provavelmente o Saci foi infernizar outra cidade. Ou simplesmente esteve conosco durante todos esses anos e não ficamos sabendo. O Saci, acima de tudo, é um ser pentelho. Ele não é só maldoso. Ele faz arte. Às vezes, ele apenas fez arte e achávamos que eram as crianças. Às vezes, ele sempre esteve entre nós e nunca soubemos. Devemos nos lembrar que dez, vinte anos atrás a população não era tão informatizada quanto hoje. Então, poderia acontecer as coisas e não ficávamos sabendo...”. O senhor fez uma pausa. Logo depois continuou. “Também devemos lembrar que muitas pessoas poderiam esconder os crimes do Saci com medo dos vizinhos. Certamente ninguém iria contar para o vizinho que a filha solteira engravidou do Saci, pois sabia que ninguém iria acreditar. Então, o Saci poderia estar encoberto todos esses anos, aqui em Larital ou em outra cidade e devido à religiosidade e falta de comunicação em massa, ninguém ter ficado sabendo.”
Samuel e Natasha ficaram em completo silêncio. A garota parou o vídeo em seguida. Samuel quebrou o silêncio.
- Será mesmo?
- Se a gente parar para pensar, faz sentido. – disse Natasha – A gente não ficava sabendo do que acontecia na casa dos outros. O Saci realmente não aparecia para a gente, mas poderia aparecer em outras cidades. Da mesma forma que o caso de Larital não tomou o noticiário ano passado, pode ser que a aparição do Saci em outras cidades em anos anteriores igualmente não tomou os noticiários, o que fez com que a gente não tome conhecimento ou fique apenas como “homicídios bizarros sem solução”.
- Verdade. – disse o Saci – Seria muito estranho ter aparecido somente ano passado...
- Ou seja... viveremos esse inferno todo dia 31 de outubro? – perguntou Ricardo, surpreso
- Provavelmente. – disse Natasha
- Não, não. Eu não aguento mais... – disse Ricardo, desesperado. Samuel caminhou até ele e o amparou. – A Ana... A Ana... imagina todo ano?
Natasha se levantou.
- Para fugir do Saci, é só seguir algumas regras básicas. Basicamente, não deixar as janelas e portas abertas, porque o Saci só entra se tiver alguma porta ou janela aberta e não comer carne de porco, porque isso atrai a fúria do monstro. Se você fizer isso, a probabilidade de fugir dos ataques do Saci aumenta.
- Ou seja... o Saci ainda pode atacar mesmo que você siga estas regras, é isso?
Natasha e Samuel se entreolharam.
- Ou seja... nada garante que não vamos morrer, não é mesmo?
- Acalme-se, cara. É só uma noite por ano. É apreensivo, é. Mas vivemos esses anos todos sem problemas. Passamos por ano passado sem riscos. – disse Samuel
- Sim. O que ele falou é verdade. Ano passado teve toda essa confusão e passamos de boa. Agora que sabemos como agir, então, ficará tudo mais fácil. – disse Natasha
Ricardo se jogou sobre a cadeira. Parecia exausto. Natasha voltou a se sentar de frente ao notebook e deu play novamente ao vídeo.
“E quanto ao fato de oito garotas terem morrido por, supostamente, terem gerado filhos do Saci, o que você acredita?”
“Esse é um mito que vem desde nossa era. O Saci realmente engravida as garotas impuras, ou seja, que se perderam na sua pureza”.
“Basicamente, por terem engravidado sem serem casadas?”, perguntou o neto.
“Não. Simplesmente por terem se deitado com um homem. Independente de ter engravidado ou não. O Saci nunca ataca crianças do sexo feminino ou mulheres que nunca se deitaram com um homem, porque acredita que elas são puras. Mas ele tem ódio mortal de mulheres que já se perderam e de crianças masculinas, já que foram elas que, em vida, o deduraram ao seu senhor. Então, às mulheres que já se perderam, aos homens brancos e às crianças, o Saci dá uma punição maior do que meramente ser atormentado.”, explicou o avô
“E quanto aos filhos do Saci? Segundo relatos na internet dos familiares das oito garotas, aparentemente elas geraram filhos do Saci, que as mataram para saírem de seus ventres e fugiram em seguida, nunca sendo encontrados. Esse ano, portanto, teremos mais Saci do que ano passado, e assim por diante?”
“Não. Se fosse assim, estaríamos diante de um ‘Apocalipse Saci’, no estilo ‘A Noite dos Mortos-Vivos’, do mestre Romero. Meu pai me dizia, quando eu era criança, que o filho do Saci era apenas um castigo cruel à moça ‘perdida’, mas que depois o Saci o matava, pois ele sempre anda sozinho. Alguns diziam que já viram os filhos do Saci o ajudarem nas traquinagens, mas aí varia igual a lenda do Saci varia de local para local.”
- Imagina... – disse Samuel. Natasha paralisou o vídeo novamente – Um Apocalipse Saci?
Ricardo tremeu na cadeira, tamanho o seu medo.
- Deus me livre. – disse Natasha, enquanto se benzeu
- Mas agora, pelo menos, já entendemos como lidar com este monstro. – disse Samuel
- Verdade. Vou até compartilhar aqui para ajudar a divulgar.
Ricardo continuava tremendo na cadeira.
- Vamos morrer. Vamos morrer. Vamos morrer. – dizia, continuadamente
- Acalme-se. – disse Samuel.
- Não dá! – gritou o rapaz, levantando-se da cadeira. – Não dá. Vamos morrer!
- Acalme-se. – disse Natasha, também se levantando da cadeira. – Por que está tão nervoso?
- Eu comi carne de porco. Eu amo carne de porco e nunca liguei para isso.
Samuel e Natasha se surpreenderam.
- Você realmente não levou a sério o mito do Saci, né? – perguntou Samuel, furioso – E você coloca a gente em risco por sua negligência...
- Eu não pude fazer nada. Eu não acreditava nisso. Não tenho culpa. Não tenho culpa.
Samuel deixou se sentar na cadeira ocupada anteriormente pela noiva.
- Cara, você só complica...
- Desculpa. Desculpa. Eu sou um tormento para vocês. Desculpa. – disse o rapaz, antes de sair correndo em direção à porta. Samuel e Natasha se surpreenderam. O primeiro se levantou rapidamente da cadeira e ambos correram em direção ao rapaz. Entretanto, este foi mais rápido. Destrancou e abriu a porta, saindo correndo em seguida. Natasha chegou primeiro à porta e já iria sair, mas foi impedida pelo noivo.
- Fica aí. – disse Samuel. – Tranca a porta e só abre se for a gente.
Natasha concordou. Era arriscado demais colocar os pés lá fora. Fechou a porta e a trancou. Samuel postou-se a correr atrás de Ricardo, que corria desenfreadamente aos berros cidade afora.
- Me perdoa. Me perdoa. Me perdoa. – gritava o rapaz. Seus gritos ensandecidos, aliados ao completo silêncio da cidade, aumentavam o medo da população trancafiada dentro de casa.
- Para com isso, Ricardo. Vamos voltar logo. – gritava Samuel. Por mais que tentasse correr atrás do amigo, este era mais rápido e a distância entre ambos só aumentava.
Este virou uma rua. Alguns segundos depois, Samuel virou no mesmo ponto de Ricardo. O rapaz corria bem à frente de Samuel, que já demonstrava sinais de cansaço.
- Realmente estou precisando fazer academia. – pensou. Parou alguns segundos para diminuir as fisgadas nas costelas e melhorar o fôlego.
Poucos segundos depois, o rapaz voltou a correr. Ricardo já havia entrado em outra rua e, após algum tempo, Samuel chegou na segunda esquina. Naquele instante, sobressaltou-se. O Saci se encontrava no meio da rua, com seu já característico olhar maligno. Caído no chão, ao seu lado, estava Ricardo, desacordado. Suas pernas estavam seguradas pelo monstro.
Samuel se esconde, batendo com as costas na parede da casa de esquina. O Saci adentrou na rua que o mesmo se encontrava saltitando; entretanto, uma pequena fresta na parede o tampou da visão do monstro. Este virou de costas para o local onde Samuel se encontrava e postou-se a andar na direção que fitava.
O rapaz, percebendo que os barulhos dos saltos do Saci se distanciavam, postou-se a olhar com extrema cautelar. Fitou o monstro carregando Ricardo pelas ruas de paralelepípedo de Larital.
- Então, o Saci realmente anda sozinho... – disse, para si mesmo, o rapaz. – Eu acho...
Samuel é acordado de seus pensamentos com o barulho de uma vidraça quebrando. Olha assustado em direção ao estrondo e fitou o Saci do lado de fora de uma residência, fitando o vidro espatifado de uma janela.
- Puta merda... – falou, para si mesmo, assustado, mas em tom baixo – O Saci não pode entrar na casa das pessoas com as janelas quebradas, mas nada indica que não possa quebrá-las para entrar. – naquele instante, veio à sua mente um flash de Natasha, que se encontrava sozinha em casa. – Puta que pariu. – gritou, desesperado, enquanto saía correndo em direção contrária ao monstro. – Natasha.
Samuel não percebeu, mas chamou atenção do Saci para si.
Cerca de um minuto depois, Samuel chegou à porta da casa de Ricardo. Sobressalta-se, ao perceber que uma das janelas estava quebrada.
- Natasha! – gritou. Correu em direção à porta. Estava trancada.
“Como essa merda entrou na casa?”, se perguntou. Pulou na porta, a fim de arrombá-la. Não conseguiu. Pulou uma segunda vez. Conseguiu arrombar um trinco. Destruiu o outro no chute. Adentrou na residência. Estava revirada.
- Natasha! – gritou Samuel, correndo pelos cômodos
- Não tem ninguém! – disse alguém, logo atrás do rapaz. A voz, medonha, fez as costas de Samuel arrepiarem e tremerem. Com dificuldade – e muito, mas muito medo -, Samuel virou-se de costas. Fitou o Saci na entrada do cômodo. Arregalou os olhos. “Essa merda ainda fala”. Passado o susto, pensou, ainda amedrontado: “E como ele está aqui? Se teletransporta por um acaso?”
O monstro sorriu, mostrando um assustador sorriso entre os lábios. Retirou o gorro da cabeça – demonstrando ser completamente careca – e enfiou a mão no local. Samuel ficou em modo defensivo. Retirou algo, fechado entre a mão cerrada e jogou no rapaz, que tentou se proteger. Era um pó brilhoso. Samuel começou a sentir a cabeça pesar, cada vez com mais intensidade. Levou a mão à cabeça, na tentativa de segurá-la: em vão. De repente, começou a perder a consciência até ir ao chão.
Samuel acorda, abrindo seus olhos com extrema dificuldade. Pouco a pouco, começa a reparar que se encontrava preso em uma estaca de madeira há alguns metros de altura. Ao redor dele, em um círculo, havia mais sete estacas de madeira, sendo que cinco já estavam preenchidas – uma delas com Ricardo – com rapazes e crianças do sexo masculino, todos desacordados. Ao chão, entre as estacas, havia uma pilha de madeira que, aparentemente, fará uma futura fogueira. Próximo à fogueira, fora do círculo de estacas, havia seis garotas desacordadas no local, incluindo Natasha e Ana. Após, Samuel percebeu que se encontrava próximo às cinzas das ruínas da Fazenda São Cristóvão, que ainda possuíam alguns escombros vivos.
- Merda. Só me faltava essa... – disse Samuel. Tentava se desenrolar das cordas, mas não conseguia êxito.
Depois de muito tentar, finalmente Samuel se desenrolou das cordas que prendiam suas mãos. Dali, desenrolou as pernas – com dificuldade, já que deveria se segurar para não cair. Saltou ao chão, quase quebrando as pernas.
- Definitivamente, preciso fazer academia. – disse, para si mesmo.
Postou-se a correr em direção a Ricardo. Sentiu, contudo, uma fisgada no tornozelo direito – fruto da queda. Mesmo mancando, continuou a correr. Chegou abaixo da pilastra e começou a chamá-lo, o mais baixo que pôde.
- Ricardo, Ricardo, Ricardo...
Ricardo acordou, no susto.
- Shhhhh! – disse Samuel. – Fala baixo, que o Saci pode voltar.
O rapaz percebeu onde se encontrava e assustou-se; entretanto, falou baixo, devido à ordem anterior do amigo.
- O que aconteceu? Onde estamos?
- Estamos na Fazenda São Cristóvão. O Saci nos pegou. Precisamos fugir o mais rápido que pudermos. – disse Samuel, igualmente baixo.
Ricardo postou-se a tentar se desamarrar. Samuel correu em direção a Natasha. Encontrou-se com a garota e passou a tentar acordá-la.
- Hum....- murmurou a garota
- Acorda, amor. Precisamos sair daqui o quanto antes... – disse. Em seguida, virou-se para Ana, na tentativa de acordá-la.
- Acorda, Ana.
Com as palavras de Samuel ecoando no ouvido, Natasha acordou de inopino.
- O que aconteceu? – perguntou, ao fitar onde se encontrava
- Fala mais baixo. O Saci pode nos escutar. – disse Samuel
- O que aconteceu? – perguntou Ana
- Ei, Ana... vamos sair daqui. – disse Samuel, se levantando. Logo após, auxiliou Natasha a se levantar.
- Onde estamos? – perguntou Ana, surpresa, ainda sonolenta, enquanto Samuel e Natasha a auxiliavam a se levantar. Naquele instante, Ricardo saltou ao chão e o seu baque pôde ser ouvido.
- Fala mais baixo. Ele pode nos escutar.
- Ele quem? – perguntou Ana, seguindo a ordem do amigo
Repentinamente, para surpresa de todos, eis que uma das crianças presas acorda e, ao perceber o cenário onde se encontrava, começou a gritar aos quatro ventos um pedido de socorro, além de chorar.
- Merda. Vamos, vamos, vamos. – disse Samuel, puxando Natasha e Ana
Ricardo postou-se a correr atrás do trio. Contudo, o grupo escutou um barulho forte das folhas ao redor mexendo nos ventos.
- Esconde, esconde, esconde... – disse Samuel, desesperado, empurrando Natasha e Ana para trás de uma árvore próxima à clareira. Ricardo, por sua vez, se escondeu atrás de uma das pilastras.
Encoberto por um pequeno redemoinho que surgiu no local, o Saci aparece entre as pilastras, carregando um menino e um rapaz consigo. Olhou em direção ao grito da criança, que passara a ser de pavor.
- O que aconteceu aqui? – reclamou o Saci, furioso, com sua típica voz medonha – Por que os berros? – naquele instante, percebeu que duas pilastras estavam vazias - Cadê os outros?
- Estão ali. – entregou a criança, tomada pelo medo, apontando com a cabeça – E duas moças também fugiram.
O Saci olhou no mesmo instante em direção às garotas desacordadas e percebeu a ausência de duas delas.
- Puta que pariu! – disse Samuel, desesperado. Saiu correndo mato adentro puxando Ana e Natasha consigo.
- E o Ricardo? – perguntou Ana, desesperada – Não vamos esperar o Ricardo?
- Não dá. Mas ele saberá se virar.
Ricardo, por sua vez, ao perceber a fala da criança, se abaixou o máximo que pôde, apertando-se contra o chão e contra a pilastra. O Saci percebeu o barulho do mato, mas saltitou em direção à pilastra. O estrondo dos pulos do monstro fazia com que o coração de Ricardo se apertava cada vez mais. Repentinamente, o som parou. O rapaz ficou algum tempo completamente paralisado, temendo olhar ao seu redor. Algum tempo depois, tomou coragem de olhar o que estava acontecendo. Abriu um olho. Assustou-se. O Saci estava ao seu lado, parado, fitando-o furiosamente.
Samuel, Ana e Natasha corriam floresta adentro quando, repentinamente, um assustador grito masculino ecoou pelos quatro cantos. Ana se desespera, queria voltar de toda forma para ver como estava Ricardo, mas Samuel lhe impediu – era arriscado demais.
O trio conseguiu horas depois chegar novamente em Larital. A cidade estava estranhamente silenciosa, o que chamou a atenção de todos – afinal, algumas pessoas haviam desaparecido, era para a cidade estar a polvorosa. Encontraram a sede da Polícia Militar e adentraram no local. Estavam todos os policiais dormindo. Entenderam, naquele momento, que o Saci fez os policiais – e provavelmente o pessoal da cidade – desmaiarem, o que facilitava seu trabalho.
Esconderam-se na residência de Samuel e Natasha, que não havia tido suas janelas e portas destruídas, e aguardaram a chegada do amanhecer. Na manhã seguinte, veio a notícia: mais oito meninas encontradas na Fazenda São Cristóvão desacordadas, além de mais oito cadáveres amarrados. Ademais, havia um nono cadáver completamente esquartejado e queimado dentre as cinzas da fogueira.
O caso ficou nacionalmente conhecido como “O Caso do Saci”, motivando auxílio da Polícia Federal e de doze instituições da Polícia Civil treinadas em solucionar mistérios aparentemente sem solução – entretanto, nem mesmo eles conseguiram resolver este caso e descobrir quem era o culpado. Só sabiam que era necessário vigiar as oito garotas – mais Ana e Natasha, embora ninguém soubesse da presença destas no local dos fatos – e que Larital estava contando os dias para o próximo 31 de outubro.