O TRUQUE DO FAZENDEIRO

"Aqui neste Mato Grosso, já vi coisas que até Deus duvida...". Era o refrão do Raimundo, um caboclo meio letrado, mas ingênuo, criado na roça, que a Funai designou para meu auxiliar num trabalho de campo em antropologia, que realizei em Barra do Garças.

Um dia, numa tarde de sábado muito quente, convidei-o para uma cerveja. Entramos no bar, sentamo-nos, pedimos uma cerveja e dois copos, e ele tascou mais uma vez: "Aqui neste Mato Grosso, já vi coisas que até Deus duvida...". Pedi um exemplo. Ele disse: "Deixa pra lá! É só um modo de dizer". "Um modo de desabafar. Você solta essa frase como quem solta um suspiro profundo" - provoquei. Silêncio.

Pedimos outra cerveja. E mais outra. Aí ele soltou a língua e o verbo: Aquela fazenda de onde acabamos de voltar, por exemplo, pertenceu ao meu tio Adão. Sou filho de um irmão dele com uma criada da fazenda que eles tomaram lá no Paraná, onde meu pai morreu numa disputa de terra com posseiros. Isso aconteceu há quarenta e cinco anos, quando eu tinha catorze.

Depois do acontecido, meu tio veio para cá, onde conseguiu essa fazenda. Na época, a área era só mata virgem. Não havia nada lá. Inicialmente, moramos numa cabana feita de paus e coberta de folhas, amarradas com cipós. Para iniciar qualquer empreendimento no local, era necessário um empréstimo de banco. Mas ele só seria concedido se houvesse uma área bosqueada e cercada da mata, explicou tio Adão. Mas como contratar os peões para esse serviço? Passados uns dias, ele me disse que tivera uma ideia e que em breve teríamos o financiamento do banco.

No dia seguinte, ele foi à cidade no seu velho jipe. Quando voltou, anunciou que chegariam doze peões do Nordeste, em pouco mais de uma semana. Fiquei sem entender, mas pensei que sua intenção era obter as condições necessárias ao empréstimo e, uma vez obtido este, remunerar os peões. Estes chegaram no prazo previsto e trabalharam por mais de um mês, bosqueando e cercando vários hectares de floresta. Desconfiado, passei a observar todos os movimentos. Notei que dois dos peões contratados estavam desviados do trabalho na mata e acompanhavam meu tio para todo lado.

Dias depois, os peões acabaram o serviço e meu tio deu-lhes uma tarefa na área já limpa da mata, onde o material resultante do bosqueamento estava seco. Em seguida, vi seus dois capangas irem em direção ao local carregando uns galões de plástico. De início, aquilo me pareceu normal. Mas, pensando melhor, ocorreu-me que alguma coisa estava errada ali. Olhei para a mata e ela já estava em chamas! No caminho, os dois capangas corriam em direção à casa e meu tio ia ao encontro deles. Ao aproximar-se, sacou o revólver e os abateu a tiros. Deixou-os ali, agonizantes, e foi até a floresta em chamas, em cuja orla um dos peões, fugindo do incêndio, se arrastava, ferido. Tio Adão sacou de novo o revólver e o matou.

Fiquei petrificado de horror - disse Raimundo. Aí tio Adão pegou um trator que tomara emprestado de um vizinho, abriu uma grande vala, colocou dentro todos os corpos, mais o que sobrou dos peões carbonizados, e os enterrou.

Eu tinha por tio Adão um sentimento dúbio. Medo, por saber que ele era homem de extrema violência, coisa que eu sabia desde o Paraná; e um misto de gratidão e dependência, por ele ter cuidado de mim desde que meu pai morreu. Como ele me havia mandado a cavalo a uma fazenda vizinha, para devolver uma ferramenta (coisa que eu fizera cedo e depressa), decidi fingir que estava chegando agora. Saí por trás da casa, onde estava o cavalo, montei, andei umas centenas de metros em direção à fazenda da qual acabara de voltar, dei meia volta e fiz questão de chegar de maneira meio espalhafatosa, para chamar a atenção dele. Ele me viu e saudou com a maior naturalidade e frieza, perguntando como estavam os vizinhos.

Quando perguntei se ninguém tinha procurado ou perguntado pelos peões, Raimundo disse que parentes de uns dois deles estiveram na fazenda, anos depois, querendo notícias dos desaparecidos. E que Adão os tratara muito cordialmente, oferecera comida, bebida e pouso, e lhes dissera que os peões haviam partido tão logo concluído o serviço, pelo qual os remunerara muito bem.

Raimundo concluiu dizendo que seu tio morrera havia dois anos. E que a fazenda, que deveria ser sua por herança, só agora soubera que era parte de uma reserva indígena. Que Adão utilizara todos os expedientes e trapaças para explorá-la até o fim da vida, ganhando e gastando rios de

dinheiro, obtido com essa exploração. Só agora, moço, não sei nem por quê, estou contando a alguém essa história. É como se tirasse de mim uma enorme bola, que me enchia o peito, causando-me uma dor quase mortal.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 06/01/2018
Reeditado em 08/01/2018
Código do texto: T6218177
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