I
Me lembro nitidamente quando vi Rajesh pela primeira vez. Eu estava em minha quinta internação. Desiludido, andando pela quadra de tênis vazia, cabulando mais uma reunião com o pessoal dos Alcoólicos Anônimos.
A clínica Sociedade era enorme, e tinha de tudo do melhor que o dinheiro podia pagar... com quartos individuais, uma quadra poliesportiva, gramados, jardins lindíssimos. Tudo pra não percebermos que na verdade estávamos num hospício chiquérrimo. Mas, ainda assim, um hospício.
É claro que na quinta internação não podia haver nada que me chamasse atenção naquele lugar. E também não acreditava mais em seus métodos. Eventualmente alguma merda iria acontecer... eventualmente alguém tiraria minha paz...
eventualmente eu precisaria beber de novo. Então, estava ali vivendo um dia de cada vez e tentando a todo modo tirar de minha cabeça a ideia de me enforcar com cobertores.
Eu andava em círculos tentando contar as horas com os dedos já que não se podia usar relógios. Não reparei que estava sendo observado. E também não sei por quanto tempo ele já estava ali. Senti aquele frio na barriga de quando percebemos que está errado. Acho que é um resquício do nosso lado animal... algo que antecipa o olhar dos predadores e nos dá tempo de fugir ou lutar. Algo como o sentido aranha, do Homem Aranha! Se vocês leram os gibis ou viram os filmes, sabem do que estou falando.
Ele estava ali, magro, alto, sua pele era preta..., mas não era o tipo de preto que vemos o tempo todo por aqui. Não era mulato, era realmente preto como asfalto, e tinha cabelos lisos e um grande bigode totalmente brancos, que contrastavam com toda aquela negritude. Era nitidamente indiano ou descendente direto.
- Os pensamentos voaram, hein, simpatia? – Ele disse sorrindo um riso largo e gentil.
Respirei fundo, dando um sorriso cansado. Mesmo sem estar realmente sentindo cansaço algum.
- he he he, ééé... aqui é lugar pra se pensar na vida... e acho que é só o que se tem pra fazer por aqui!
Ele deu uma boa gargalhada levando ligeiramente uma mão à barriga como se eu tivesse sido muito mais engraçado do que realmente fui. Acabou arrancando de mim um baita sorriso que há muitos dias não conseguia dar.
- O meu nome é Carlito e o seu?
- Rajesh – Respondeu prontamente e cheio de sotaque.
Antes que pudéssemos continuar a conversa um dos monitores (seguranças de shopping disfarçados de enfermeiros) chegou me olhando e dando um muxoxo de reprovação. Como quem diz... “tinha que ser você Carlito... porque não tem uma overdose e morre de uma vez? ”.
Os monitores, médicos e enfermeiros tentavam disfarçar o desprezo que tinham sobre nós. Principalmente os “realmente loucos”... os descontrolados... esquizofrênicos, altistas, maníacos, histéricos, comedores de fezes. Eles ficavam como cães esperando que os donos atirassem ossos. Esperavam o momento “certo”, os comportamentos “não-permitidos”. E assim distribuíam chaves de braços, e os amarravam na cama com doses cavalares de remédios para dormir, ansiolíticos e anti-psicóticos e sei lá o que mais.
Era uma violência permitida. A violência indicada e aprovada pelos médicos e pelas famílias cansadas. E nós, drogados e alcoólatras, afastados de nosso consumo e tomando remédios contra abstinência, éramos sãos e inofensivos. E ao mesmo tempo estávamos numa posição de manda chuvas.
Controlávamos tudo pois éramos a maioria e estávamos sãos e tudo víamos e eles sabiam que se nos tratassem mal, melhor que nos matássemos depois... pois sairíamos mais cedo ou mais tarde, loucos para contar às boas novas ao primeiro advogado que encontrássemos. Ou até quem sabe, um repórter.
II
Portanto eu estava ali “cabulando aula”, rodopiando pela quadra fumando um cigarro atrás do outro sem me importar com quantidade diária permitida. Já que terminaria os meus e sairia pedindo ou roubando retalhos dos meus amigos maluquinhos no turno da noite enquanto os monitores desviavam o olhar.
- Diga parceiro... só mais um cigarrinho, ok?
O monitor deu de ombros e resmungou algo que não entendi direito. Alguma coisa como “seeempre você...”.
No mesmo momento me virei pra contar uma piada ao meu novo amigo, mas Rajesh não estava mais ali.
- Nem vi ele saindo! – Gritei para o monitor.
- Ele quem? – O homem perguntou impaciente e virou a cara não se importando em ouvir resposta.
No dia seguinte, após o almoço, me escondi na academia que estava vazia e escura. Ninguém gostava de ficar lá. As pessoas iam forçadas às seis da manhã por um treinador tirano. Ele praticamente arrancava as pessoas da cama não se importando com qual medicamento estavam tomando e muito menos a dosagem. Senhoras gordas, bipolares, deprimidas, se arrastavam pelos corredores... era revoltante. Ele puxando-as pelo braço.
Sempre me acordava gritando na porta do quarto “VAMO CARLITO! ”. Eu dizia “já vou! ”, mas nunca ia. Como já disse antes... nós, viciados, tínhamos moral ali dentro. Fazíamos o que bem entendêssemos, enquanto os retardados eram arrancados da cama e obrigados a fazer uma hora e meia de exercícios.
Somente de tarde, quando a academia parecia um mausoléu é que eu ia lá. Eu, meu fone de ouvido tocando uma miscelânea de rocks antigos que eu apelidei de “Playlist para ouvir no Hospício. ” E alguns cigarros. Nunca entendi o fato de os cigarros serem limitados... minha única teoria era de que eles faziam isso para nos manter ansiosos e irritados e justificar o uso de mais medicação.
Deitei numa almofada gigante e rosa e fechei os olhos. Não dormi. Estava agitado... Little Richard cantava aos berros “Good Golly, Miss Molly” numa versão ao vivo endiabrada. E eu balançava a cabeça para um lado e para o outro como se estivesse chapado.
Não sei por quanto tempo fiquei ali naquele estado de quase transe enquanto minha coleção tocava nas alturas, mas fui interrompido por um toque gelado no centro de minha testa. Abri os olhos arregalados num susto e senti meu coração disparar instantaneamente. O susto durou pouco, era apenas o bom Rajesh. Abri um sorriso largo e sincero quando o vi.
- Que mãos geladas meu amigo! – Eu disse sorrindo e me recompondo.
- De onde eu venho todos são assim... – Ele disse com um riso terno. Que se encerrou imediatamente.
Ele fechou a cara e me encarou com olhos severos bem diretos nos meus olhos. Senti meus braços tremerem e meu corpo ficar fraco como se tivesse tido uma queda brusca de pressão.
Segurou então meus ombros com as duas mãos geladas apertando, não com muita força pra causar dor, mas o suficiente pra me deixar num estado entre o desejo de empurrá-lo ou de chamar alguém. E apesar do medo que brotava em mim, desde a primeira vez que o vi sentia uma enorme confiança por aquele homem do rosto preto. Ele então sussurrou:
- Eu posso tirar de você o desejo... a fissura... se você assim quiser.
Neste momento seus olhos que eram extremamente pretos, por alguns milésimos de segundos, ficou totalmente branco. Eu tive certeza de que ele estava ali, mas não estava ali. Ao menos... só estava ali para quem ele quisesse que o visse.
III
Se era o Diabo? Se era a Morte em pessoa? Se era um espírito maligno? Nunca ousei perguntar! A única coisa que me arrebatava depois daquele toque gelado que me deixou num estado de total fadiga e terror era aquela frase... aquela oferta... que ele repetiu ainda duas vezes pra ter certeza de que eu tinha realmente escutado.
- ... posso tirar de você o desejo... a fissura... seu desejo de beber se transformará numa total indiferença.
- E porque você faria isso?
Ele removeu os braços dos meus ombros e se pôs ereto em minha frente, sorrindo de uma forma que parecia até tímida. Mas eu não sou fácil de enganar... não mesmo!
- ...em troca de que!? – Conclui, tentando parecer sagaz.
Ele se aproximou e tirou de mim um cigarro que eu mantinha na orelha. Estalou os dedos e uma chama se acendeu em seu polegar.
Senti novamente meu coração disparar com força, estava à beira de um ataque de pânico. A chama brotava de seu dedo! Não era possível!
Acendeu o cigarro e pôs em minha boca. Sempre com aquele sorriso que parecia pura bondade.
- Acalme-se Carlito. – Ele disse. E eu realmente me acalmei. - Não posso extinguir o desejo... mas posso fazer sua fissura mudar foco. Para algo que não o prejudique. O que você acha?
Comecei a chorar. Me livrar do álcool era tudo o que eu mais queria. Já tinha perdido tudo na vida. As pessoas ainda estavam lá..., mas quando se cai em descrédito, é como se estivesse morto.
- Eu não vou mais precisar beber? Você pode mesmo fazer isso!?
- Posso sim, Carlito... e eu escolhi VOCÊ.
- E qual será meu novo vicio?
Rajesh se agachou em minha frente tocando meu rosto. Seu rosto então se tornou sombrio e mais uma vez seus olhos mudaram para um branco total. Sua voz se tornou gutural e parecia ecoar por todos os lados.
- VOCÊ SERÁ VICIADO EM ÁGUA. HÁ HÁ HÁ!
Senti meus olhos fecharem e o sono me dominando.
IV
Não tive a menor dúvida, em momento algum, que aquilo tudo tinha sido real. Rajesh ERA REAL.
Levantei correndo chamando atenção dos monitores e alguns pacientes que me cercaram perguntando o que eu tinha. Eu sempre fui um paciente modelo. Tirando as minhas
escapadinhas pra fumar e a falta de paciência com reuniões e terapias. Não dava trabalho, estava sempre calmo, não criava problemas... todos me conheciam das outras quatro internações. Quatro épocas diferentes... alguns monitores e enfermeiros novos, outros demitidos, algumas reformas na casa, e eu ali de ano em ano, presente como uma entidade.
Parei em frente ao bebedouro e inclinei a cabeça embaixo do jato d’água. Todos pararam para me observar, atônitos... alguns riam.
Fiquei ali por mais de um minuto e só parei quando percebi que meu ar tinha acabado e eu não conseguia mais respirar pelo nariz. Estava vomitando e me afogando num maldito bebedouro. É até engraçado.
Finalmente e – para minha surpresa – de forma gentil, fui amparado por dois monitores que me puseram sentado numa cadeira. Todos os meus amigos loucos que chamavam tanta atenção todos os dias, não conseguiram ficar mais famosos do que eu naquele dia.
Olhei em volta e lá no fundo, ao lado da piscina e próximo à uma jardineira estava Rajesh. Ele sorria e acenava. Tentei gritar mas acabei vomitando água no chão. “Ficou doido... demorou! ”. Ouvi um monitor dizer com uma leve satisfação na voz.
Assim que vomitei tentei me levantar, mas os monitores me seguraram pelos ombros me mantendo sentado na cadeira. O meu reinado acabou ali. Eu era apenas um maluco como os outros. Um doido que tentou beber toda a água do filtro e quase se afoga no próprio vomito.
- Eu estou com sede... – Supliquei.
- Impossível, meu jovem! IMPOSSÍVEL! – Disse uns dos monitores.
Era um cara muito gordo. Nós o chamávamos de Faustão. Parecia ser um grande cara. Ao contrário dos outros não tinha aquele aspecto de leão de chácara. Estava sempre sorrindo e tinha um sorriso bonito. Falava com todas as pessoas usando sempre o mesmo tom de voz. Ninguém parecia merecer menos a gentileza dele. Me senti amparado ao vê-lo por perto.
- Agora... a gente acha melhor te levar pro quarto... e você tomar um remedinho na veia pra dormir, ok? O médico já autorizou. Você vai ficar bem... vai acordar amanhã se sentindo bem melhor, ok?
- Eu realmente estou precisando de água... – Resmunguei chorando.
De repente comecei a tentar lamber minha própria face, atraído pelo gosto de lágrima que caiu em minha língua e inundava meu rosto. Estava desesperado e com toda certeza parecia ter surtado.
Foi quando um outro monitor perdeu a paciência e Faustão apenas suspirou tristemente. Com um aceno concordou com o que quer que o outro brutamontes queria fazer comigo.
Sem aviso senti seu braço forte travar em meu pescoço. Parecia uma tora de madeira apertando minha traqueia. Eu era apenas mais louco... e aquele era o procedimento padrão para mentes inquietas, que causavam alvoroço. O meu breve show agitou a moçada. O dia seria estressante para os monitores e alguém tinha que ser punido por isso. Senti toda a minha força – que já não era muita – se esvair do meu corpo. Desmaiei.
Quando acordei estava deitado, amarrado na cama. Me urinei imediatamente. Faustão me olhava, parado na porta. Tinha um rosto triste, preocupado.
- Você é um bom menino. Todo mundo tem um dia difícil as vezes. – Ele disse sorrindo com ternura.
- Tenho sede... – balbuciei.
Tentei fechar os olhos para dormir. Me concentrei. Eu sabia lidar com o vício. É que tudo era novidade pra mim e me arrebatou sem muito aviso prévio. Passei a me concentrar com exercícios de relaxamento – dos tantos que aprendi em minha luta contra a bebida – tentando pensar em outras coisas. Me concentrei na água que brotava em minha língua e em minha boca e que descia pra garganta. Eu tinha que parar de implorar. Era assim que funcionava a clínica... quanto mais eu implorasse menos eu teria.
No meio da madrugada senti um leve toque em minha perna. Pensei que pudesse ser o Rajesh e fiquei com tanto medo que me recusei a abrir os olhos. Mas com a insistência do toque e percebendo que se tratava de uma mão quente e viva, abri os olhos ainda meio desconfiado. Era o Faustão. Segurava uma jarra de dois litros de água. Geladinha. Podia ver os pingos nos vidros. Era lindo!
Ele encheu um copo e pôs em cima da mesa ao lado de minha cama.
- Vou te desamarrar... mas se você agir como agiu lá embaixo, estaremos encrencados, você e eu, ok?
- Sim... tudo bem... – Eu podia sentir minha língua tremendo dentro da boca.
Eu estiquei as duas mãos como um bebê faminto ao encarar os seios da mãe. Mas, fiz de tudo para manter a compostura e beber o mais devagar que eu pude. Enquanto bebia vagarosamente o meu terceiro copo olhei em volta e lá estava Rajesh no canto do quarto me olhando. Fazendo um gesto levando a mão fechada a boca como quem diz alguma coisa como: “beba! Beba tudo! ”.
Foram longos quinze dias que passei internado, bebendo água escondido. Escondendo copos de água embaixo da cama para bebê-los durante a noite e recebendo visitas do meu amigo Faustão.
Quando cheguei em casa já se via a diferença. Em todas as outras vezes que eu retornava, já chegava inventando desculpas para sair e voltava fedendo e com um olhar sonso, tentando me fingir de sóbrio. Não fiz nada disso e muitos dias se passaram. Tinha tudo o que queria pertinho de mim. Rios d’água em meu apartamento! Uma torneira no banheiro do meu quarto, um chuveiro, e um bebedouro na cozinha jorrando litros e mais litros de água gelada. Fiquei feliz por um tempo. Mas não durou muito.
V
Assim como qualquer outro vício, a necessidade foi aumentando e não conseguia ficar satisfeito. Eu queria mais, muito mais, e queria tipos diferentes de água. Quente, fria, gelada, doce, salgada... com sal, com açúcar. E de repente comecei a me sentir vazio. Insatisfeito. Triste. A água que me serviam não me dava mais tanto prazer. E foi por isso que cheguei aqui, hoje.
Estou filmando tudo e contei aqui minha breve história para que todos saibam que NÃO FOI SUICÍDIO. E sim uma necessidade terrível de saciedade.
Quero dizer também que NÃO SOU LOUCO. Rajesh é real. Não sei se é uma entidade, um anjo ou um demônio. Mas ele EXISTE e posso vê-lo nesse exato momento aqui na praia... lá no mar... andando sob as águas como um Cristo indiano, com aquele sorriso lindo, com seus dentes extremamente brancos, e a sua NEGRA FACE, que será a última face que verei. Ele está lá à minha espera.
E em sua defesa... Rajesh cumpriu com sua palavra. Ele me livrou do vício do álcool. Mas me viciou em água e eu estou cansado... exausto. Não aguento mais viver esta fissura. Estou indo mergulhar na água salgada – a mais saborosa e mais ardente! – E vou engolir e engolir e engolir até afundar no maior êxtase de minha vida!
... meus amigos... lá vou eu!
E não esqueçam! Livrem-se sozinhos de suas mazelas. Se encontrarem um simpático e sorridente negro alto... deixem-no falando sozinho!
Obs.: O personagem deste conto é homenagem à um homem simpático que conheci. Velho, alto, com cabelos grisalhos e pele negra como a noite. Dono de um sorriso gentil e inesquecível. Que eu tive o enorme prazer em torna-lo vilão.