Naquela noite fiquei matutando, na cama, sobre o motivo da Mariana ter voltado. Eu não sou um sujeito religioso nem nunca fui de ir á igreja e coisas assim. Também não acreditava na possibilidade de que houvesse vida após á morte. Pelo menos nunca quis gastar algum fosfato pensando ou discutindo com outras pessoas temas como esse, pois sempre achei que religião não se discute. A gente tem ou não tem, Respeita-se as crenças alheias e evita-se esse terreno minado que costuma engolir boas pessoas que, no mais das vezes, só buscam um lugar para descansar suas mentes das incompreensíveis e paradoxais experiências que a vida nos submete, e acabam encontrando um vigarista qualquer, que mete em suas cabeças velhas concepções medievais, enchendo-as de culpa, ao mesmo tempo em que esvaziam seus bolsos.
Mariana, sim, era religiosa. À maneira dela. Não exatamente uma religiosa convicta, daquelas que andam com uma Bíblia embaixo do braço e vão de casa em casa, aos domingos, tentando fazer prosélitos, ou então como os pregadores de trem e praças públicas, que onde podem, juntam pessoas em torno de si e apregoam suas verdades, como se elas fossem a única coisa certa a fazer na vida. Eu via gente assim no trem que, às vezes, pegava para ir ao trabalho e também aos domingos, quando geralmente umas mocinhas de saia comprida e cabelos longos, às vezes acompanhadas por senhores de terno escuro e gravatas azuis, sempre com Bíblias embaixo do braço, batiam á minha porta. “Queríamos trazer ao senhor a palavra de Deus. O senhor tem um tempinho para nos ouvir?”
A postura simpática deles sempre me conquistava e eu ouvia, mais por educação do que por vontade. E também por um, digamos, até mórbido prazer em dizer, depois de ouvi-los por dez ou quinze minutos, que não acreditava em nada daquilo, que a Bíblia era apenas um livro, um bom livro, mas apenas e tão somente um livro, escrito por um bando de rabinos judeus contratados por um rei para escrever uma tese para provar ao resto do mundo que os judeus tinham direito sobre à Palestina porque eram o povo escolhido de Deus. Que Moisés era um mito, assim como Salomão, Davi e todos os heróis do Velho Testamento, assim como as histórias do Novo Testamento não eram mais que propaganda religiosa, urdidas por cronistas interessados em divulgar uma nova crença. E daí eles iam embora com aquelas caras de decepção, porque depois de dez ou quinze minutos de conversa esperavam que pelo menos eu comprasse algumas daquelas revistas “Sentinela”, que eles vendiam para financiar a atividade de sua seita.
 
Mariana era evangélica e ia ao culto aos domingos pela manhã e aos sábados. Tinha a sua Bíblia e a consultava de vez em quando. Não que ela soubesse muito do que dizia o livro. Aliás, acho que eu sabia mais do que ela. Eu sou um leitor contumaz. Leio por prazer e por profissão. Sou advogado. Li praticamente a Bíblia inteira, não com propósitos doutrinários, mas como um bom exercício literário somente. E se gostei de algumas histórias, de outras não. Não pude deixar de exercer meu juízo crítico e notar que um Deus tão austero e corporativista – capaz de exercer preferências por um filho, em detrimento do resto da própria família que ele criou – não seria exatamente uma divindade apropriada para pacificar um mundo onde há tantas disputas e conflitos.
Mariana nunca se propôs a discutir esses assuntos comigo e eu, como também não tinha muito interesse pelo tema, limitava-me, às vezes, a comentar uma ou outra passagem bíblica, que ela, prudentemente, evitava transformar em objeto de conversação, dizendo que era Deus quem devia orientá-la como pensar, e não ela que tinha que entender como Deus pensava.
Apesar disso, essas questões de crença religiosa nunca foi motivo de qualquer conflito entre nós. Eu até recebi, em nossa casa, várias vezes, os Irmãos da Igreja que ela frequentava, que era a Batista tradicional. Inclusive o pastor da igreja dela veio nos visitar algumas vezes e eu gostei de conversar com ele. Era um sujeito afável, inteligente (me parece que era professor de filosofia) e não ficava falando como quem quer fazer prosélitos. Várias vezes fui com ela aos cultos. Assistia-os sem me aborrecer e até gostava do repertório gospel que a igreja tinha. O pianinho que lembrava Simon e Garfunkel em “Bridge Over Troubled Water” ou a quase soprano cantando Peace Like a River, como as intérpretes americanas do soul music.   
 Mariana também nunca me cobrou nada a respeito. Gostava quando eu me propunha a ir com ela aos cultos, mas também não se aborrecia quando eu não ia. Nem sofreu quando as meninas, depois que pegaram idade de pensar com a própria cabeça e andar com as próprias pernas, deixarem de acompanhá-la aos cultos e às atividades da igreja. Nem sequer fez qualquer crítica ou demonstrou qualquer contrariedade quando eu entrei para a Maçonaria.
 
Agora eu estava com esse problema. O semi-ateu que eu era vivendo uma experiência que jamais passaria pela minha cabeça fosse possível de acontecer. Porque Mariana tinha voltado? O que ela pretendia com essa volta? Será que as outras pessoas também a estavam vendo? Ou era apenas aos meus olhos que ela se mostrava? Não seria uma alucinação da minha mente que acumulara sentimento de culpa nos neurônios, pelo fato de eu a ter substituído assim, tão rapidamente em minha vida, depois de vinte e cinco anos de uma convivência de terna cumplicidade e tolerância recíproca?
De fato era uma experiência interessante aquela que eu estava vivendo. Nos primeiros dias do meu casamento com Marisa tive sonhos recorrentes com Mariana. Sonhei várias vezes que ela não tinha morrido de verdade, mas sim que tinha se ausentado por um tempo e depois voltado para casa. E eu ficava todo atrapalhado por que não sabia o que fazer com duas mulheres em casa e como iria administrar os conflitos que certamente aconteceriam. Em um desses sonhos me vi até me aconselhando com o sheik de uma mesquita, sobre a estratégia usada pelos muçulmanos para conviver com várias esposas, como é usual entre eles. “Você têm que ser justo com todas, meu filho”, disse ele.”Não pode privilegiar nenhuma em detrimento das outras; se der uma jóia para uma tem que dar para as outras também. Não pode dormir com uma mais vezes do que com as outras e assim por diante.” 
“Mas então é preciso ser rico para ser polígamo na religião do Islã” disse eu e “mais que isso, é preciso ser um super-macho para encarar tanta atividade sexual assim. Surpreende-me o fato de que haja poucos casos de infidelidade conjugal feminina entre os muçulmanos” disse eu, e ele respondeu que “pelo menos não há casos tão expostos e quando os há, o castigo é severo” razão pela qual não se contam muitos acontecimentos desse tipo nas famílias muçulmanas.”
 
No entanto, desses sonhos eu sempre acordava com alívio, ao ver que eram apenas sonhos. Pelo menos no começo. Na prática é claro que eu gostaria que fosse verdade o fato de que Mariana não morreu, e fora apenas uma viagem que ela fez, fosse qual fosse o destino, e que agora ela voltava para ocupar o lugar que era dela. Mas eu também sabia que ela havia morrido de verdade, e que não havia nenhuma dúvida a respeito disso. E que a realidade agora era Marisa e eu, que não sou rico o suficiente para sustentar duas esposas no mesmo nível, nem tenho libido com potência suficiente para dar às duas satisfação sexual na mesma proporção, estava com um baita problema. Por isso os dois níveis de consciência que eu vivia, no sonho e na realidade se compensavam, um pela mitigação da saudade que eu sentia da Mariana, recuperando-a no sonho, outro pelo alívio que me vinha depois quando acordava e via que tudo era apenas uma ilusão criada pelo meu subconsciente.
No entanto, como eram reais aqueles sonhos! Tão reais que eu sentia como se efetivamente os tivesse vivido. E quando acordava costumava levar alguns minutos para recuperar a consciência e repor na tela da minha mente o mundo real, no lugar daquele filme que o inconsciente havia me passado.
(continua)