Ighonor
 
   Quando a noite deitou-se sobre o mundo, e as cidades de pedra e vidro se enegreceram, os homens começaram a enlouquecer em suas temerosas casas, enfeitadas e adornadas por grandes vitrais ilustrativos, e umbrais ornamentados em cromo, com um acabamento de um século atrás, como os das igrejas góticas da idade média. As nuvens retorcidas no céu sibilavam como cometas, cortando a paisagem em vórtices de machas cinza-azulado-escuro. Cogitei esconder-me pelo mato adjacente que florescia ao redor da cidade, além dos grandes paredões que homens levaram suas vidas construindo, impérios de vidro, fomentados por papeis e números indivisíveis. Até que a noite passasse, permaneci sentado numa poça de lama fedida, próximo de um sepulcro aberto, fugindo dos pestilentos demônios que impregnavam o horizonte e todas as terras ao redor do mundo, a pior praga que poderia existir, a humanidade.
   Certa vez, escondido entre as trepadeiras pungentes e venenosas, vi-me perseguido por uma chuva de tochas, cortinas de fogo que ascendiam a mata ao meu redor, perseguindo-me com veemência, tentando encontrar-me. Senti o cheiro da morte me perseguindo, uma de minhas mãos ascendeu ao meu rosto sujo e corpulento, insidiando uma desoladora feição de medo e pavor. Minha barba grisalha raspava por entre meus dedos ásperos, sentia-os fumegar pela minha pele, como uma espinha infeccionada. O vento incorporado pela neblina que descia dos altos morros próximos da beirada do horizonte, inundava a mata, blindando minha espectral silhueta ao qual os homens seguiam sem piedade.
   Horas depois, pela primeira vez desde que fugi da cidade, consegui hastear-me, entretanto, ainda hesitante, pensei em continuar abaixado, arrastando-me pelo solo insalubremente desgastado e corroído pela erosão que se intensificava conforme o tempo que consumira aquela região. A lua subira ao céu, triste, com uma luz fria e sombria, esmaecendo. Horríveis brilhos ensandecidos de dor e ódio, davam cor a mata, um escarlate vivo. Os pequenos brilhos se perdiam em torno da nevoa, dançando como um lírio em uma lagoa. A ideia de alivio me passara a mente tão rápido e por diversas vezes que nem quase conseguia identifica-la, estava resoluto, imaginando o fim, ou o começo, um novo recomeço, onde a morte e os gritos da desolação que contornavam minha antiga vida não pudessem me acometer novamente. Mas, talvez, pensar nisso seja mais eufórico do que discernir a realidade atual da fantasia escondida nas sombras da mata, da incólume frustação sem par, que invadia meus sonhos e minha alma, buscando conforto e paz. Porém, senti que dentro de mim não poderia residir mais que uma carcaça sem vida, putrefata, que apodrecia de dentro para fora, nauseada de emoções que homem nenhum poderia entender, ou jamais imaginar.
   Enlouqueço aqui, no frio da mata, perdido, descalço, trilhando caminhos sem volta, que me levavam a mais tenebrosa miragem da existência.  Dois quilômetros em duas horas, acerca disso, talvez, pergunto-me, se posso percorrer tal distancia em pouco tempo, não nesta mata de imensuráveis horizontes. Eles continuaram a me perseguir, mesmo sabendo que não conseguiram se aproximar suficiente para tal feio, não enquanto ainda existisse aquela formidável nevoa cobrindo meus rastros. Os insetos e vermes laceravam minha pele, intrépida, entre os sulcos que se formavam ao entorno das minhas coxas e do lado superior do meu braço. Por diversas vezes uma tempestade de mariposas assíduas pelo meu sangue, cobriram meu caminho. Eram mortais e horripilantes, seres com assas de prata reluzente e corpo esférico largo, com uma pequena calda que somava um ferrão, como a de um escorpião. Eles me ludibriavam, pensava que logo me destroçariam com aquelas presas pavorosas, mas não o fizeram, não estavam contentes em achar uma forma descarnada, ao qual o sangue se tornara areia e os ossos, ferro enferrujado. Porém, ansiavam mais os homens que se infiltravam na mata. Se comparado ao ser humano, pareciam babar de fome, lambendo os beiços, esperando que chegassem a elas.
   Ouvi do alto do morro, quando uma chuva de tiros atordoou o silencio ominoso e execrável da mata. As arvores conversavam comigo, em meus nuances de sádica ilusão destemperada. As mariposas os comeram pensei, comeram todos, seus pedaços agora jazeriam em seus dentes, nacos de carne e gotas de sangue. Minhas ideias logo abandonaram a realidade, vi lá do alto, num rápido relance de horror, os brilhos ígneos das tochas dos homens. Eles haviam sobrevivido e agora, estavam mais próximos. Encalçados mais bravamente a minha procura, com mais raiva, desvirtuados pelo incompassível enxame da morte.
   Desci do morro, cambaleando, até os fossos mais profundos daquela mata. Parecia caminhar sobre o berço do mundo. O chão era envolvido por hortaliças de musgo e piche fervente que escorria das copas das arvores. Meu deus, pensei, aonde estou, quem poderia me encontrar ali, na imundice, na bosta que o mundo havia esquecido. Sentei-me em um toco de um carvalho apodrecido, descansei, suando, ofegante como nunca, sem conseguir segurar o ar em meus pulmões. Deixei meus olhos viajarem sem direção pelo vale tenebroso que se estendia ao meu redor. Aquela parte da mata nunca fora explorada, nem por homem, nem por criatura nenhuma que desse valor a vida. As arvores cresciam grotescas, parecendo ter vida própria, eram em sua maioria altas, tinham uma cor que nunca havia visto antes, um esbelto esverdeado-azul-purpura com tons marrons e cinzas. As arvores se erguiam a minha frente, arquejando-se como fantasmas na escuridão, guiando seus galhos até mim.
   Não encontrara mais esperança alguma, nada que pudera me salvar. Quisera morrer ali, sentado no toco, sem precisar me esforçar mais para fugir. Não escutara mais o grave rouco brando dos homens na mata, na verdade, por um bom tempo, não escutei mais nada. Então, algo curioso ocorreu, percebi que a frente de onde estava, havia um pequeno lago, de aguas escuras e implacavelmente amorfas. De repente, não pude segregar nada mais que um sopro, uma respiração inquieta que hora parecia tilintar como o sino de uma campainha. O lago me lembrara de 1897, quando ainda era jovem... vi refletir nas aguas sobrenaturais, uma faceta terrível do meu passado, um acontecimento imprevisível que culminou no estado ao qual me encontro hoje.
   Eram quase meio dia daquela quarta-feira ensolarada. Robert, digitava na velha máquina de escrever de seu pai, à frente da janela de vista para o oceano. Robert era incomum em vários aspectos, que variavam desde físicos à psicológicos, passeava seus pensamentos em mundos intangíveis que criara naquela máquina de escrever. Em uma de suas narrativas contara uma febril desventura de Nick, um corajoso aventureiro marítimo que cruzara os mares no inverno para alimentar a família. Em uma de suas Viagens, Nick se deparou com a maior de as tempestades que já cruzara. Após a tormenta irracional, seu barco surgira no fundo do oceano à mercê das diversas criaturas marinhas que habitavam as profundezas oceânicas. Nick se prendera a um pedaço do mastro que havia se partido durante a tempestade. Quando acordou, embora estivesse de certa forma um tanto desnorteado, ele não notou até o breve momento que seu braço havia sumido e no lugar havia uma lívida mancha de sangue. Seu sangue havia atraído uma serie de crustáceos e pequenos vertebrados que estavam mordiscando a carne morta ao redor da orbita ensanguentada. Nick gritou de dor, dir-te-ei que ele gritou por muito tempo, narrado por Robert, tempo que não pudera ser contado, ou lembrado por Nick. O cansaço e a morte se aproximavam do aventureiro, espreitando sob as ondas, seguindo a trilha de sangue que deixara no mar como as migalhas de pão. Durante dois dias e duas noites, Nike vagueou pelas aguas indiscretas daquele oceano estranho e malicioso.
   Robert escreveu; [...] quando, abriu os olhos, sua retina esbranquiçada e quase sem vida elevou-se sobre um monólito de granizo e rocha esverdeada como esmeraldas, coberta por um pó radiante que pareceu ser ouro. O monólito tinha uma forma estranha, como uma serpente, parecia ter sido esculpida a milhares de anos. Haviam escritos ilegíveis nas rochas, figuras rupestres da época de quando o mundo vivia em caos e fogo. Os desenhos em sua maioria simbolizavam uma imensa criatura, por vezes uma serpente, por vezes algo sem forma, como uma sombra e ao seu lado haviam fileiras de homens idolatrando aquela horrenda criatura. [...] Nick, sentiu o pedaço de pau afundar, precisava decidir agora se queria viver, ou morrer, então, atirou-se na agua e nadou o quanto pode, com apenas um braço, quis parar, mas sabia que se o fizesse, nunca mais voltaria a fazê-lo de novo, então continuou, até chegar na costa, aonde aquele monólito se reservara e enquanto tentava se colocar de pé, tateando a areia, abrupto de quaisquer forças que lhe restasse, ele lançou um olhar vazio para a praia, um olhar sinuosamente caído, de semblante desolado e aturdido e não pode acreditar no que vira...
   Robert não terminou de escrever aquele conto, pelo menos não naquela tarde. Por motivos clínicos, só voltou a escrever anos depois, cerca de seis anos após saber que tivera uma doença terminal, mas que por um milagre, havia sido curada. A doença evadira sobre seu corpo como um câncer, mas ninguém sabia identifica-la ao certo, indícios levaram os médicos a crer que se tratava da peste bubônica, mas, logo descartaram tal ideia obsoleta, desprestigiada. Uma semana depois de ser internado, uma hemorragia consumiu seu pulmão. Os médicos ficaram estupefatos com aquilo. O sangue havia feito tanta pressão dentro do corpo do pobre homem, que seu tórax parecia uma bolha roxa de inchaço.
   No decorrer da semana, Robert sobreviveu a primeira de muitas cirurgias emergenciais. Os médicos haviam aberto um buraco em seu tórax para o sangue sair e logo em seguida, passaram horas dentro do buraco, tentando conter o sangramento violento que se estendia e que o levaria a morte em pouco tempo se não o salvassem. No quarto dia daquela semana de outono, quando já haviam colocado um vaso de flores brancas ao lado de sua cama e rezado uma Ave Maria ao lado de seu leito, ele começou a dar sinais de melhora, até que no sábado de noite cessou por definitivo. Robert contara mais tarde a pessoas desconhecidas que os enfermeiros tiveram que ata-lo a uma montanha de panos para estancar o sangramento e quando já não havia mais panos limpos, usaram suas próprias roupas.
   Mesmo tento vencido a hemorragia, Robert ainda estava doente, e nos primeiros dois anos, ficou numa cama de hospital, sozinho, por vezes no frio insensível, rodeado por olhares de condoimento. Ninguém sabia o que fazer, até que Oliver O´Bryan surgiu, viera em viagem dos Estados Unidos para Marbella, no sul da Espanha e encontrara-o numa cinzenta manhã de domingo, jogado no corredor para sucumbir a doença e ser enterrado em seguida por uma meia dúzia de familiares longínquos, pois, os médicos que já haviam desistido dele, não aguentavam mais dar esperanças ilusórias, intrínsecas de frustação, a um jovem desesperado pela vida, e mesmo que quisessem, o hospital não estava preparado o suficiente para arcar com as despesas de sua enfermidade. Todos o observavam perecer de longe, corroídos pelo desprezo inominável da natureza humana.
   Oliver ao contrário dos médicos, enxergou naquele pobre enfermo, uma oportunidade de sucesso, e entre olhos ansiosos e leigos de um pobre rapaz espanhol, ele enxergou montanhas de ouro e fama. Poderia ele curar o homem que não poderia ser curado, pensou pela primeira vez e aquela fagulha que se ascendeu em seu coração obstinado, cresceu durante os próximos quatro anos, espalhando-se por sua alma, como um tumor. Contudo, mal sabia, que o êxito desta maestria, criaria uma das coisas mais abomináveis do mundo.
   Anos se passaram, desde que Robert fora encontrado por Oliver. E no tempo que se sucedeu, coisas de demasiado incrivelmente horríveis ocorreram com o pobre rapaz espanhol. Oliver levara-o para sua clínica particular nos Estados Unidos, chamava-o de a casa do demônio tempos depois. Oliver avaliara que o a doença havia se impregnado nos órgãos de Robert, mas seria possível cura-lo se houvesse um modo de tirar esses órgãos, mas sem comprometer sua vida. O estadunidense de pele lívida, magro e de idade consideravelmente avançada, já havia perdido seu monótono diploma de medicina a mais de dez anos por motivos dos quais não consigo nem ao menos descrever. Contudo, posso lhes afirmar que Oliver detinha da Ciência um vasto conhecimento médico, mas acima de tudo, gostara de brincar com vida e os mistérios que acercavam, mistérios dos quais homem algum devia descobrir.
   Doutor Louco, o haviam apelidado na rua em que morara, passara tempos fugindo dos malditos fotógrafos que gostavam de infernizar sua vida, publicando histórias sem embasamento concreto, sobre suas experiências excêntricas. Durante um tempo, Robert foi dado como morto na Espanha, tinha até um tumulo próprio, mas vazio, lapidado em granizo, mas do mais baixo custo que sua família pudera pagar.
   Robert tivera naquela sala de cirurgia improvisada num escritório, vários de seus órgãos removidos, como o pulmão, o pâncreas, partes do fígado, um rim, e um pequeno pedaço do coração. Mas, como poderia alguém viver sem estes órgãos, como, pensou Robert, durante as cirurgias mal feitas, em que não tivera ao mínimo uma anestesia local. Ele via Oliver arrancando-lhe seus órgãos, ainda pulsantes, cobertos de uma fina camada de muco negro. O cheiro pungente de ácido e amônia perpetuavam o escritório, que permaneceu sem um mínimo de higiene. Robert lembrara-se durante as cirurgias ou pelo menos enquanto conseguia permanecer acordado, quando Oliver colocara coisas estranhas dentro dele, pedaços de órgãos de outros animais, produtos tóxicos e se me atrevo dizer, até radioativos. Mas, Robert não se sentia mal, pele contrário, sentia um leve desconforto que por vezes não passava de uma flacidez passageira.
   Dois anos se passaram e quando pensou que estava curado, uma Isquemia cerebral somou-lhe o ultimo sopro de vida. Oliver que automaticamente pensara na pena mais equivalente a seus atos, agora fizera algo surpreendente e louco, algo nunca tentando antes, algo de assombrosa obstinação cientifica. Ele trocaria o cérebro de Robert, por um de um cadáver recente, que jazia no cemiterio, próximo de sua casa. O cérebro ainda estava fresco, uma camada de gosma mucosa expandia-se dos sulcos pulsantes que latejavam. Quando terminou a maior operação de sua vida, Robert abriu os olhos, levantou-se da cama desordenado e se sentou, ficou parado ali observando Oliver por um tempo e depois levantou-se, gritou algo em uma língua estranha e oculta ao qual a humanidade nunca mais havia ouvido e depois matou Oliver, estrangulando-o com as mãos.
   Robert acordara no dia seguinte. Ele não sabia ao certo o que estava acontecendo, ou o que tinha acontecido. Havia somente uma escuridão em seus pensamentos, algo estava ali, dentro dele, algo que não era ele, mas que denotava sua personalidade, tentando assumir seu corpo.
   Quando voltara para seu país meses depois num navio de pescadores, uma série de assassinatos e desaparecimentos ocorreram em sua cidade, os corpos, principalmente de crianças e idosos eram encontrados sem algumas partes de seus corpos, alguns principalmente seu o coração. Chegando em seu apartamento, encontrou seu velho quarto intacto e empoeirado. Descobrira um tempo depois que a proprietária, Dona Maria, havia morrido de um ataque fulminante que lhe acometera a alguns anos e como não tinha nenhum familiar o móvel havia sido passado para o estado, porém ninguém veio requisitar a propriedade naquele meio tempo. Enquanto revirava o quarto procurando algum vestígio de sua antiga vida, Robert encontrou em sua antiga escrivaninha uma estória que criara a alguns anos.
   Os dias caminhavam de forma fugaz, desacompanhados, sua percepção de tempo tornara-se obsoleta e logo não conseguia mais acompanhar o calendário dos homens.
   Robert sentia seu corpo apodrecendo, seus órgãos parando de funcionar e o pior, algo tentava assumir seu corpo. Ele sabia que não poderia deixar aquilo lhe possuir, mas com o tempo descobriu que não poderia resistir o suficiente. Por diversas ocasiões, ele caíra num sono profundo, mas nunca sonhara com nada, apenas uma escuridão assídua que coordenava sua mente. Sempre que acordava, sempre, havia sangue, muito sangue, e uma nova sutura em seu corpo.
   Enquanto não estava desacordado, ou se revirando de dor naquele apartamento, Robert escrevia. Ele voltara do ponto onde Nick, o náufrago, encontrara a ilha. Nick arrastara-se pela areia vagarosamente, tentando afastar-se da mare e da água salgada que fazia seus ferimentos arderem. O sol projetava-se pela ilha de forma estranha, a luz era opaca e um tanto avermelhada, como um crepúsculo de final de tarde. Ele não conseguia ficar de pé, sentira que sua costela direita estava quebrada, havia uma mancha roxa em seu tórax, Nick sentia a costela rasgando seus órgãos internos, conforme se movia. Havia muita areia sobre seu rosto, mas, quando ergueu-o na direção do monólito, viu algo sobre o obelisco, uma figura desumana, com cerca de cinco metros, tinha asas, uma cabeça achatada de onde erguia-se um tentáculo vermelho-vivo como sangue e braços abomináveis dois quais seus olhos registraram como saliências cheias de bocas, cada um com centenas de dentes. Talvez fosse uma alucinação por conta de seu estado crítico, mas ele não teve tempo para comprovar o que seus olhos visualizavam, desmaiou segundos depois.
   Robert pouco saia de seu apartamento, mas certo dia, encontrou no portão um jornal. Não sabia quem poderia tê-lo deixado lá, mas, agradeceu, fazia muito tempo que não sabia o que ocorrera no mundo. Seus olhos frustraram-se ao ver a data, 19 de dezembro de 1910. “Como pode, como pode ter passado tão rápido” enquanto revirava bruscamente as páginas do jornal, descobrira uma notícia perturbadora “Buscas continuam ao assassino canibal. A chacina da última terça-feira completa um ciclo de sete outros massacres neste ano. A carnificina é a marca do Canibal, ele captura suas vítimas e ainda vivas retira alguns de seus órgãos e os descarta para morrer em becos desertos na cidade. Sobreviventes não conseguem descreve-lo, pois, cada vítima relata características divergentes das anteriores...” Enquanto lia aquele jornal, pela primeira vez desde que chegou em casa, olhou-se no espelho, e o que viu foi um rosto deformado, marcado por cortes e lacerações profundas, e acima de tudo, suturas continuas em toda a face. Robert não sabia quem era naquele espelho, não conhecia aquele homem. Mas, algo dentro de si, a mesma força sombria que sentira desde que voltou dos Estados Unidos, começara a se manifestar em seus pensamentos, inundando-os com cenas macabras, cenas das quais queria não ter concebido. Robert percebera naquele momento que era o assassino Canibal e desde este momento, aquela força que emanava de dentro de seu amago, tomava cada vez mais poder sobre seu corpo e logo, ele se tornara um escravo, submisso a sua vontade. Preso por um hospedeiro macabro que cotidianamente ansiava a morte, ele sentia-se engaiolado, como um pássaro, toda a noite era levado a ladrar uma pobre alma que saciasse o hospedeiro inconveniente. E durante o tempo que conseguia fugir daquela coisa, escrevia, escrevia, escrevia e continuava escrevendo, nem que fosse uma palavra.
   Nick tinha acordado a noite, depois do sol ter sido manchado pela lua. Seus olhos abriram-se com dificuldade, ele ainda estava deitado na areia da praia e quando lembrou-se daquela coisa no alto do monólito, Nick se levantou, juntando o restante de suas forças. Sua boca seca e rachada por sulcos, implorava por água, seus olhos gritavam como grandes faróis abertos, avermelhados e pulsantes. A ilha tinha pouca mata e o pouco que tinha rodeava o monólito. A mata era envolta por um nevoeiro. Nick viu uma luz, vinda de dentro da mata, parecia ser um tipo de fogueira. Enquanto cambaleava se arrastando na direção da luz, sentira seus pês queimando. Ele não acreditava que poderia sobreviver, de certa forma já havia aceitado a morte, entretanto, quando chegou na fogueira, sob uma gruta coberta por trepadeiras e plantas abstratas com aspecto estranho, viu ao redor do fogo, sombras dançando, mas não conseguira notar de onde vinham e nem o que eram. As sombras gritavam, ululando, Nick não entendera o que diziam, mesmo porque falavam em uma língua inominável, uma língua repulsiva, da qual seu tom homem nenhum jamais ouviu. Mesmo não entendo aquela língua e embora não conseguisse fugir naquelas condições, havia uma palavra, entre outras tantas das quais não entendera que parecia se repetir, Ighonor. A mata vibrava, mesmo não havendo vento, tudo parecia tomar vida naquela fogueira. Quando a lua atingiu seu apogeu, acima do monólito, a fogueira se apagou, e a mata escurecera-se rapidamente e de dentro da gruta, Nick vira algo se aproximando, algo alto, com um tentáculo vermelho espreitando em sua direção. “Saia da minha ilha” Fora isso que Nick ouvira, num tom decrepito e ecoante. Ighonor repetiu. Então a coisa se afastou e o monólito estremeceu, como se algo tentasse sair de dentro dele, como se algo estivesse aprisionado lá dentro, dentro do obelisco. “Não o desperte, meu mestre dorme desde que nasci, e desde que nasci eu lhe guardo, fuja humano, volte para seus domínios, até que ele desperte para tragar novamente suas terras”
   Robert finalizou aquela narrativa dizendo [...] Nick desmaiou sobre o timbre daquele demônio. Fora encontrado boiando no oceano pacifico por um cargueiro, companhia Louis Dinner´s de Santa Maria. Ninguém, acreditou em sua estória. Os restos de seu navio naufragado foram encontrados quilômetros depois por uma equipe de busca. Os investigadores e a equipe clínica que o avaliaram, constataram que seu relato se tratava de um devaneio provocado pela falta de comida e água que o induziram a alucinações continuas, pelo que sabiam, provavelmente nunca chegara em ilha nenhuma, ele passara quatro dias à deriva. Com o tempo Nick aceitara que seu relato poderia realmente ser fruto de sua imaginação, ou como os médicos disseram, “Um delírio causado pelo mar”. Contudo, ele ainda se lembrara... Ighonor. Ele ainda se lembrara do monólito e de seu guardião. Descobrira anos depois em inscritos hebraicos escondidos num sepulcro antigo em Israel, que na época em que a mare consumia o mundo, antes do tempo dos homens, uma criatura dominava o mar. Seu nome era Ighonor, o leviatã, fadado a dormir eternamente, ou até que chegue o tempo [...] Robert terminara enfim sua estória, contudo, talvez, aquele nome, Ighonor, não fosse apenas uma criação de suas tenebrosas fantasias. Algo latejava em seus pensamentos, lembranças de uma ilha, de um monólito e de uma fogueira.
   Naquele dia, em que Robert terminou sua estória, o hospedeiro macabro voltou a dominar seu corpo e voltou-se as sombras do mundo, porém, já o estavam esperando, os homens o encontraram, Robert fugiu para fora da cidade até a mata e é aonde estou agora.
   Não posso mais nomear-me, Robert se foi a muito tempo. Enquanto observo a escuridão, ele me chama, hesito em juntar-me a ele, mas sei que não pertenço mais a este mundo. Talvez seja melhor. Os homens não entenderiam. E no véu daquelas águas escuras, o silencio chamara-me para dentro do lago, para ele, para Ighonor.
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 25/12/2017
Reeditado em 25/12/2017
Código do texto: T6208114
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