Era apenas uma brisa suave daquele outono...

"Mas você estava lá chorando sem parar

Por favor não fique tão triste assim nesse lugar"

Vocaloid--Pierrot

*

Os alunos estavam dispersos. Era um lugar tão lindo, mas eles não pareciam interessados. Nem o lindo campo de rosas os interessava. Tudo culpa dos celulares. Os garotos viviam com os aparelhos na mão sem notar a natureza. Os aparelhos trouxeram uma certa lembrança. O professor teve uma certa ideia . Contaria uma história que talvez os ajudasse a entender a beleza e mistérios do local. Mas mais que isso o ajudaria também. Chamou os alunos para perto e começou:

-Vocês querem ouvir uma história? Dizem que ela ocorreu nesse local.- disse e notou que conseguiu a atenção deles. Crianças sempre amam histórias.

-Certa vez, dois diretores vieram filmar aqui. Nesse lugar mesmo que estamos agora.

-Era filme de super herói?-perguntou um garotinho de óculos de aro fino e voz baixinha. Em seu moletom tinha uma estampa de herói.

-Não sei, sinceramente não sei. -respondeu se sentindo mal por não lembrar o nome do filme ou do que tratava, mas havia ocorrido tanta coisa...- Mas isso não é relevante. Nossa história começa depois deles terem encerrado as filmagens. No caminho de volta na verdade.- um vento frio soprou. Era começo de primavera, mas ainda estava frio. O menino com o moletom de super herói não era o único que ainda usava as roupas da estação anterior.- Era o começo do inverno e a estrada era mais perigosa, os dois sofreram um acidente. Ambos estavam desacordados quando o socorro chegou e na batida...

Estava tão envolvido com a história que só então notou que talvez fosse melhor omitir alguns pequenos detalhes, seus alunos tinham entre onze e doze anos, não precisavam saber que um dos diretores estava usando o celular ao dirigir ou mais detalhes de quando o socorro chegou. Notou algumas carinhas tristes, queriam um final feliz. Não poderia dá para eles exatamente o que pediam, mas chegaria logo na parte principal e mais interessante.

- Não fiquem tristes, os dois receberam uma pequena ajudinha de uma menina que morava aqui e cuidava das flores, por isso elas são tão bonitas. Sabiam que essa menina guardava as flores para que ninguém mexesse nelas? Essa menina não podia ser vista, ela vinha de outro... reino e tinha algumas habilidades especiais. -pareceu um pouco nostálgico por algum motivo, tentou tocar em uma rosa, mas mudou de ideia rapidamente. Continuou meio distante- Ela doou um pouco da força especial que estava nela para eles e os manteve bem até o socorro chegar. Ela os considerava amigos.

-Essa menina era meio que uma super heroína?

-Não... Talvez. Afinal, ela tinha poderes e ajudava os outros não é? Sim, podemos a considerar uma heroína.

-Ela ainda está aqui?-perguntou uma garotinha com trancinhas. Procurava ao redor como se procurasse a garota da história.

-Não sei, sinceramente não sei. Talvez esteja.- falou o professor se preparando para encerrar a história e chegar no ponto que queria- Mas o importante é que essa menina guardiã se esforçou muito para manter os dois amigos seguros, da mesma forma que se esforçava para manter as suas rosas bonitas. O que acham de fazer um trabalho sobre ela? Afinal ela é uma heroína não é? Deixem o celular um pouco de lado e tentem aproveitar o lugar. Sentir a atmosfera. Admirar as rosas dela.

As crianças fizeram isso alegremente. Logo surgiriam vários desenhos de como seria a suposta heroína. Até uma garotinha de rabo de cavalo e de óculos com armação rosa perguntou:

-Eles se reencontraram? Como era o nome dela? Toda heroína precisa de um nome. E como era o nome dos dois?

O professor suspirou. Talvez não tivesse sido uma boa ideia começar aquela história. Tinha a atenção deles totalmente após as perguntas. Sabia que eles sossegariam somente quando soubessem as respostas.

-O nome dela eu não sei, mas eles se reencontraram...-"Mas não como vocês imaginam, meus alunos. " pensou, mas não disse, as crianças ainda mereciam sonhar com um final feliz. Por isso não contou o que realmente ocorreu. Até porque após o suposto reencontro ninguém sabe o que exatamente ocorreu com os dois. Nem ele. Apenas lembra das buscas e de encontrarem apenas o carro de Mark abandonado e um casaco que devia ser de Caleb, perto havia sangue dele assim como no casaco que estava ensopado. Mas não contaria isso. Tentaria iludir a ele mesmo - Foi um encontro feliz. Eles sorriram ao ver a pequena heroína que os salvou.

As crianças pareceram satisfeitas, até que uma ainda insistiu em uma última pergunta, enquanto brincava com um lápis de cor:

-Como era o nome deles?

-O nome de um era Mark e o outro...- "Era o meu irmão Caleb". O remorso bateu forte. Teve que se afastar um pouco das crianças.

Mais tarde naquele mês voltou ao local sem os alunos. Sentia remorso pelas vezes que tratou mal o irmão. Agora o considerava irmão e não meio-irmão como sempre o chamou. Não imaginava que iria o perder provavelmente para sempre. Ele não falava algumas coisas realmente com maldade, no fundo amava o irmão, mas Caleb sensível por causa do acidente devia entender as coisas de outra forma. Sempre foi assim com ele. Brincadeiras cortantes que somente ele ria, que machucavam o irmão... Sempre ironizou com o fato do irmão ser tão próximo de Mark e de trabalhar em produções não tão importantes na opinião dele.

-Vocês brigaram?-lembra de ter perguntado logo que notou que Mark nunca mais havia vindo visitar o irmão. Ele lembra que seu irmão apenas concordou com a cabeça.

-Ele ficou com ciúmes da garota?-perguntou no seu tom cortante de sempre- Sabe, você me falou de uma menina de vermelho no banco de trás... Talvez ele não tenha ficado com ciúme da forma que você fala dela. Da vontade de a reencontra.

-Pare com isso... Sabe que não gosto dessas suas brincadeiras.- lembra que naquele dia, diferente dos outros, notou algo diferente nos olhos do irmão e parou com a brincadeira. Até sussurrou algo semelhante a desculpas. Aquela vez foi a vez em que os dois foram mais próximos em todos aqueles anos. Durante o resto da tarde ouviu o irmão. Mas esse foi um fato isolado.

Em outras ocasiões brincou até mesmo com o fato dele está usando o celular enquanto dirigia, coisa que nesse momento de rara confiança lhe confidenciou.

Faziam seis meses que não havia nenhum sinal dele ou do amigo. Poucas pistas no primeiro dia de buscas. Um casaco sujo de sangue, o carro de Mark que era a única coisa que provou que ele esteve lá e marcas de passos. O remorso começou como um mosquito que pousou nos ombros dele sem ser convidado na primeira semana sem o irmão. Acreditava que ele voltaria. Achava que ele e Mark deviam ter ido juntos para algum lugar. O desespero começou quando descobriram que o sangue no casaco era realmente do irmão. Todo aquele sangue! E quando buscas mais minuciosas encontram algo a mais. As pistas pintavam um quadro ruim, mas não esclareceram o que ocorreu.

Se passaram os dias, semanas e o mosquito foi se tornando mais pesado. Se passou o primeiro mês, o segundo, o terceiro e o remorso só aumentava. Mesmo com o remorso resolveu continuar dando aulas. Sem seus alunos tudo se tornaria pior ainda. Foi estranho, mas ao conta a história sentiu seu irmão perto. Talvez isso ocorresse devido ao caderno. Tirou o objeto da mochila e o encarou. Sempre andava com ele.

Foi perto do quarto mês que encontrou um caderno no quarto de Caleb com algumas anotações do irmão. Ele falava desse lugar e da menina de vermelho. Falava de um sonho que teve enquanto estava desmaiado após o acidente. Também falava de como achava que ela devia ter os ajudado de alguma forma, talvez transferindo a força das rosas para eles. Falava de um provável reencontro. Tudo em formato de roteiro. Ele segurava o caderno e lágrimas começaram a escorrer. Aquela foi a primeira vez que chorou em meses.

*

*

SEIS MESES ANTES...

Mark olhou no espelho e viu a cicatriz no seu rosto. Em sua bochecha direita até perto de seu queixo. Herança do acidente que sofreu com seu amigo no inverno passado... Outro inverno logo chegaria e tanta coisa havia mudado... Suspirou...

A cicatriz não incomodava mesmo, apesar de ser muito aparente. Não o deixava exatamente feio, pelo menos na mente dele, o deixava mais velho e maduro. O que incomodava era a ausência do amigo de longa data. Ele se incomodava, se culpava pela cicatriz mais do que ele. Suspirou. Pegou a chave do carro e decidiu ir atrás dele. Tinha uma ideia de onde ele estaria. Sentia em seu coração que ele estava em um lugar bem conhecido. Um lugar que comentou que voltaria.

Estava na hora de por um fim aquele longo inverno... Pensou enquanto dirigia para lá cuidadosamente. O outono estava quase no fim. Estava na hora de resolver aquela questão uma vez por todas. Quanto mais tempo ainda precisaria passar?

*

As rosas estavam mais lindas do que ele lembrava. Foram exatamente aquelas rosas que o atraíram para filmar naquele local quase um ano antes. Lembrou do último dia de filmagem e de como prometeram voltar na primavera, com sorrisos que o primeiro dia de inverno logo trataria de apagar. Lembrou do acidente e de seu amigo Mark e sentiu uma pontada de culpa o atingir. Eles nunca voltaram para filmar naquele lindo cenário da natureza.

Agora não tinha equipe, atores e nem câmeras. E Caleb não estava filmando nada. Era apenas ele e as flores que pareciam o encarar. Passar alguma mensagem. Summer o encarava curiosa. Estava faltando um. Onde estava seu outro amigo?

Summer ainda lembra de como os ajudou após o acidente doando uma parte de sua força vital. Estava ansiosa por esse reencontro, porém algo estava errado. Esperava ver os dois amigos e não apenas um. Se aproximou mesmo assim a passos lentos.Era outono. As folhas estavam todas caindo. Seus passos fizeram um suave barulho quando seus pés pisaram nas folhas secas. Caleb pareceu ouvir que alguém se aproximava.

Caleb ouviu os passos se aproximando. Quem estaria lá com ele? Seria ela? O acidente confundiu algumas lembranças, mas ele lembrava claramente de ver uma menina de vermelho pelo retrovisor segundos antes da batida. Sabia que ela havia os ajudado, não sabia como, mas sentia que recebeu ajuda dela. Também sentia que ela morava perto daquelas flores de beleza sobrenatural. Talvez ela estivesse por trás do mistério de porque essas flores nunca murchavam ou se danificavam.

Se virou lentamente e viu a menina de vermelho. A menina parecia ter uns dez anos, mas tamanho de seis. Porém seus olhos mostravam bem mais idade. Parecia até mais experiente e esperta que ele. E havia algo a mais também naqueles olhos misteriosos.

-Caleb, consegue me ver?-perguntou surpresa Summer ao notar que era vista aparentemente. Ele apenas concordou com a cabeça meio sem jeito ainda. O que se passaria pela mente dele? Summer não sabia dizer. Ele não aparecia exatamente surpreso. Parecia esperar que ela aparecesse. Depois de um longo tempo de silêncio, apenas com o vento ao fundo, a menina perguntou o que queria perguntar desde quando o viu novamente- Onde está seu amigo?

A expressão dele mudou de repente. Havia uma certa tristeza em sua fala quando disse:

-É uma longa história...

-Ele morreu?!- perguntou com medo da resposta- Mas ele estava melhor...Você pegou o pior do acidente. Ele está vivo não é?

Caleb não disse nada. Olhava para um certo ponto da floresta como se visse algo. Lembrou-se de uma das últimas vezes que falou com Mark. Ainda no hospital.

-Quero que saiba que não lhe culpo pelo acidente.- disse Mark da cama ao lado da sua, seu amigo bebia um suco que a enfermeira trouxe. Falou isso sem lhe olhar diretamente. Como consequência do acidente havia ficado com uma cicatriz meio feia no rosto. Brincava com o canudinho.Parecia incomodado pelo seu silêncio prolongado. Haviam se passado duas semanas do acidente.

-Mas eu me culpo.

-Ninguém morreu, Caleb. Relaxe.-disse. Se passou um bom tempo. Nada. Nenhuma palavra.

-Tinha uma menina de vermelho no banco de trás.-disse Caleb assustando o amigo muito tempo depois.

-Do que está falando, cara? Tinha só a gente.

-Ela estava lá...

-Você precisa descansar.

-Temos que voltar lá.

-Onde?

-Naquele campo de flores. Onde gravamos. Ela ainda deve está lá. Quero a ver novamente. Deve está esperando pela gente.

Depois dessa conversa eles ainda se falaram algumas vezes, poucas palavras. Mas nunca uma conversa com mais de três frases. Caleb sempre cortava qualquer começo de conversa. Se fechou muito dentro dele. Se culpava pela cicatriz do amigo. Então uma semana após o diálogo seu amigo recebeu alta e ele continuou internado. Mark até o visitou algumas vezes, mas após uma certa conversa, uma certa palavra que acabou machucando seu amigo mais que o acidente, ele nunca mais o viu. Isso foi no inverno ainda.

Ele passou uma boa parte do inverno se recuperando do acidente. Foi meio complicado. Depois veio a primavera,não sabia se Mark havia voltado a gravar. Torcia que sim. Seria doloroso saber que talvez o amigo estivesse parado de fazer o que gostava por culpa dele. Após a primavera com clima de inverno veio o verão e agora estavam no outono. Final do outono. Logo viria um novo inverno. Mais rigoroso.

-Me diga, logo Caleb. Não me deixe nesse suspense.- disse a menina o tirando de seus pensamentos tristes.

-Ele está bem, só que não somos mais amigos...

-Porque? O que aconteceu?

-O acidente aconteceu. Nada seria como antes depois daquilo... Quase mato nós dois. Por culpa do meu celular... - comentou triste, lembrou- se que no sonho que teve no momentos após o acidente, enquanto estava desmaiado, no sonho quem estava com o celular era Mark, mas apenas no sonho. Na realidade lembrava bem que era ele. A culpa sempre o lembrava. Ninguém morreu, foi verdade, mas poderia ter ocorrido o pior. Não entendia como o amigo poderia o perdoar sendo que ele quase havia o matado sem querer. E pior havia marcado seu rosto para sempre. A culpa o lembrou também de quando ele ofendeu o amigo mais do que gostaria... Apenas queria que ele entendesse que a culpa os separava... Mas sentia falta dele... Não poderia pensar nessas coisas... Olhou para a floresta com folhas marrons e completou- Não devia está o usando enquanto dirigia.

-Porque está aqui, Caleb?- perguntou Summer se aproximando. Ele eram feitos de matérias diferentes, mas ela conseguiu tocar nele. Ele estava tão frio. O outono logo daria lugar ao inverno. Outro inverno. Aquele reencontro não estava sendo como ela esperava.

Na mente de Summer ela veria os dois novamente logo na primavera. Bem recuperados do acidente. Eles sorririam para ela e talvez até acenassem. Poderiam a ver devido a força vital que transferiu para eles. Nunca imaginou um reencontro mais triste que aquele. Além de faltar Mark o Caleb estava totalmente arrasado.

-Vim ver você. Queria alguém para conversar e precisava saber se você era real.-após uma pausa completou- O que você é exatamente?

-Sou a Summer, tenho esse nome por causa das rosas. Elas gostam de verão. Não sei exatamente o que sou, mas sei que venho de um lugar diferente do seu. Um outro mundo. Do lugar que eu vim há mais rosas como essas. Há muitas flores na verdade e outras como eu, na verdade, mais ou menos como eu.

Caleb pensava que a história de Summer daria um bom roteiro de filme, se fosse outros tempos se sentaria com o amigo e eles dariam um jeito de transformar em um filme.

Ele e Mark sempre trabalharam juntos fazendo filmes do cinema independente como o que filmavam no local no dia do acidente. Lembrou daquele último dia de filmagem. Principalmente do momento em que ele entrou com o celular na mão no carro, porém também lembrava dos equipamentos sendo guardados e dos atores. Os atores estavam alegres por atuarem mesmo sabendo que se tratava de um filme de baixo orçamento e que provavelmente não faria tanto sucesso, como foi o caso. Mas a grande verdade era que muitos nem eram atores, eram apenas curiosos que queriam a chance de atuar.

Apesar de terem dirigido o filme eles não foram para a exibição no pequeno cinema local. Primeiro porque, por motivos óbvios, devido ao acidente a pós produção foi feita por outra pessoa. Mas eles não foram principalmente porque Mark devia está com vergonha do rosto e ele ficou em casa preso pela culpa. Mas pelas críticas que leu foi um filme de recepção morna e que logo seria esquecido. Ainda bem. Ele queria que sua mente esquecesse o acidente com a mesma facilidade.

Por falar em esquecimento lembrou que alguns atores o visitaram e outros mandaram cartões de melhoras. Nem suspeitavam que a culpa era dele... Mas após um tempo o deixaram de lado. Surgiram outros projetos, as estações mudaram...Estava se aproximando outro festival de cinema e todos que tinham uma câmera iriam se aventurar a dirigir, queria que Mark estivesse entre esses. Apenas ele ficou parado no tempo. Lembrou de seu irmão e de sua mãe. Da tristeza dela por causa do acidente e de como ele não se dava bem com seu irmão mesmo após o acidente. Ele sabia do detalhe do celular e as vezes era meio cruel e mandava indiretas. Se arrependeu de contar para ele.

Desejou que tudo fosse como antes. Caleb começou a chorar desesperadamente e abraçou a menina de repente. Ao fazer isso sentiu tudo se transformar ao redor deles. Não estavam mais naquele lugar. Estavam no mundo de Summer. Não sabia explicar, mas sabia disso.

-Onde estamos?-perguntou sabendo da resposta. Olhou ao redor e notou que todo o lugar parecia envolto por uma névoa suave. Haviam rosas, muitas e uma floresta com árvores em miniatura. De longe se viam castelos.

-Estamos no meu mundo. Tinha que ter vindo de algum lugar, não é? Temos que voltar o mais rápido possível.-disse desesperada- Aqui é perigoso para você.

Caleb se sentia tão leve, sem a culpa que carregava há tanto tempo. A culpa por ter deixado sua mãe tremendamente triste, pela frieza do irmão e a falta do amigo. Não sabia que lugar era aquele, mas gostou muito. Queria ficar.

-Quero ficar... Pelo menos mais um pouco...

-Não pode.-disse Summer olhando ao redor, Caleb não ouviu, mas ela ouviu passos se aproximarem. Tinham que sair de lá. O sentimento de culpa dele estava tomando a forma do monstro que sempre foi.- No meu mundo os sentimentos tomam forma.

-Como assim? Espere, você é um sentimento?

Summer concordou com a cabeça apenas. Aquele era um assunto delicado para ela ainda, mesmo após tanto tempo.

-Qual?

-Não sei. Esse foi o problema. Como disse não sei exatamente o que sou.- respondeu Summer, poderia explicar melhor, mas isso era assunto para outra história. No momento tinha problemas maiores.- Temos que sair daqui. A sua culpa está vindo. Além do mais o tempo aqui passa de forma diferente... Bem mais rápido... Não temos tempo literalmente.

-Espere, eu não sinto a culpa porque ela está materializada em outra forma?-respondeu Caleb aquela era sua chance de encarar a culpa de frente. Somente se pode vencer uma coisa que se encara cara a cara. Respirou fundo e se preparou para o combate. Mas ao ver o rosto da culpa mudou de ideia.

O monstro que estava a sua frente tinha o rosto com cicatrizes e longas garras que pareciam prontas para perfurar qualquer coisa. Sua voz era a própria voz de Caleb. O que fazia sentido já que ela era uma parte dele. Recuou alguns passos.

-Você não precisa o encarar, vamos embora. Deixe a culpa nesse mundo.-disse Summer lhe estendendo a mão rapidamente. Queria o tirar daquele lugar. Ele estava lá com seu corpo físico podia se machucar de verdade. A culpa podia o ferir literalmente.

-Não. Se eu não a derrotar, ela pode voltar para me assombrar.-disse reunindo o pouco de coragem que restava.

A culpa lhe encarou calmamente. Levantou um dos dedos e a unha já grande ficou maior ainda e afiada. Era uma navalha altamente cortante. Quando Caleb entendeu o que ia ocorrer sentiu medo, mas não recuou dessa vez. Fechou os olhos. Achou merecido. Summer custou a entender o que estava para ocorrer. Quando entendeu teve tempo apenas de ouvir o grito de Caleb quando a unha afiada cortou seu rosto. Um corte certeiro na sua bochecha. Fazendo uma cicatriz meio parecida com a de Mark. Mas naquele momento não notou a semelhança, apenas notou o sangue que saia abundante e a dor que veio. Outro golpe se seguiu, cortante como a tristeza nos olhos de sua mãe e mais um outro cortante como as palavras do irmão.

Os golpes foram tão rápidos, tiveram a precisão de um cirurgião que já usa o bisturi há muito anos, que Summer não teve tempo de agir. O monstro da culpa recolheu suas garras e se dissolveu como areia levada pelo vento. Restaram apenas cinzas. Summer se recuperou do choque inicial e o tirou daquele lugar. Quando voltaram ao mundo real o rosto dele e os braços ainda sangravam muito. Mesmo fraco Caleb conseguiu ver Mark que o olhava assustado.

-Mark, agora estamos iguais.-disse com a voz fraca para seu amigo.

-O que você fez com o seu rosto? E esses cortes em seus braços?- perguntou Mark desesperado colocando o casaco que tinha acabado de tirar no rosto do amigo para parar o sangramento, era onde sangrava mais- Temos que lhe levar para um hospital rápido!

-Não precisa. Vou ficar bem... Agora acho que podemos ser amigos novamente.- disse com a voz meio arrastada e um sorriso fraco. Havia caído de joelhos e era sustentado pelo amigo.- A culpa virou cinzas. Você devia ter visto.

-Eu nunca lhe culpei, cara. Essa cicatriz não me incomoda e não ligue para as brincadeiras do seu irmão . Nada daquilo foi sua culpa- Mark falava enquanto segurava o casaco no rosto do amigo. Lembrava de como o irmão dele, ou melhor meio-irmão, tinha uma certa parcela de culpa na culpa que o amigo sentia. Ele ainda falava quando notou Summer- Quem é você? Você fez isso com ele? Responda!

-Não. Nunca o machucaria. Você não lembra de mim? Isso não importa agora! Tem que o ajudar. - disse a menina desesperada ao ver que Caleb perdia a consciência e que os lábios dele ficavam pálidos. Mark no desespero havia largado o casaco de lã já muito sujo de sangue no chão, ao lado do amigo, o sangramento no rosto havia parado, mas os problemas não. Tentava apoiar o amigo até o carro. Summer o ajudou nessa tarefa, esquecendo no desespero do momento o que acontecia se ficasse muito tempo em contato com eles. Quando Caleb voltou a sangrar pelo corte e desmaiou, no movimento para o aparar, foram parar os três rapidamente no mundo de onde veio Summer.

Mark olhou ao redor muito confuso. Que lugar era aquele? Seu relógio no pulso havia parado. Marcava quatro horas. Devia ser tudo culpa daquela menina de vermelho! Olhou ao redor e não a viu. Olhou para Caleb e viu um senhor idoso tocando no rosto do amigo ainda desmaiado. Tocando bem em cima do corte profundo. Caleb pareceu recuperar a cor dos lábios. Despertou.

-Quem é você?-perguntou Mark sem medo. Sentia que conhecia aquele homem.

-Sou o perdão. Posso curar o seu amigo. Sou a sua vontade de o perdoar que ganhou forma nesse mundo. Seu amigo ainda precisa de um tempinho para se recuperar.- o perdão olhou longamente para ele e completou- E você também. Porque não ficam nesse mundo até estarem melhor? O que me dizem?

Mark olhou para o amigo e viu pelos olhos de Caleb que seria bom passar um tempo lá se recuperando mesmo. Havia muito coisa não dita e questões a resolver. Aquele lugar parecia ótimo para resolver as coisas. Além do mais aquilo daria um ótimo roteiro de filme. E melhor quando voltassem poderiam estarem melhor do que antes. Uma idéia veio a mente de Mark:

-O senhor pode tirar essa cicatriz do meu rosto?

-Não, mas sei quem pode. Não sou o único por aqui. Podem me acompanhar se quiserem. Não tem mais perigo- disse o senhor os levando.

-Não podemos ficar muito. Vamos apenas tirar essa cicatriz e depois vamos embora. Se eu demorar muito minha mãe vai ficar preocupada.- disse Caleb ainda meio zonzo, mas com mais cor nos lábios. Ele havia avisado a mãe que viria a esse lugar, que talvez demorasse, mas que procurava chegar a tempo de jantar com ela. Mas ainda devia faltar muito para a noite. Olhou ao redor, ainda confuso, procurando Summer- Onde está a Summer? Precisamos dela para voltar ao nosso mundo!

-Quem é Summer? A garota de vermelho?-perguntou Mark

-Não se preocupem com ela. Esse é o mundo dela, ela encontrará vocês uma hora ou outra e além disso tem outras saídas, posso lhes mostrar quando chegar a hora de vocês irem embora.-disse um rapaz se aproximando- Mas se fosse vocês não teriam tanta pressa. Sou a curiosidade. Vocês não querem descobrir mais desse mundo? Além disso tem a oportunidade de colocar a conversa em dia. Ficaram tanto tempo sem se falar. Esse mundo daria um bom filme não acham?

-Ele tem razão, amigo.-disse Mark- Temos muito o que conversar e descobrir por aqui. Vamos ficar mais um pouco. Você pode começar me falando da Summer. Tudo que sabe sobre ela.

-É claro que tenho. Sou parte de você. E quanto a saída não se preocupem a curiosidade sempre descobre onde a saída se esconde.

-E quanto aos perigos? Tem algum perigo por perto? -Caleb olhou preocupado ao redor e depois se virando para Mark e apontando para o corte quase cicatrizado. Aparentemente não tinha nenhum. Estava tudo silencioso. Apenas eles envolvidos por aquela névoa amigável que dava um ar mágico juntamente com as rosas daquele jardim. Mas ao olhar ao longe viu algo. Pequenas casinhas perto das montanhas. Pequenas devido a distância, mas que deviam ser grandes.- Os sentimentos aqui tomam forma. Quem fez isso em meu rosto foi a minha culpa na forma de um monstro.

-Mas ela não está mais aqui.-respondeu o idoso chamado perdão olhando longamente para ele- Não é mesmo?

-Não está mesmo.-disse Caleb sorrindo pela primeira vez em meses. Também queria ficar lá, pelo menos mais um pouquinho. Tinham muito o que falar mesmo. Além disso que mais sentimentos estariam lá? E os moradores locais como seriam? A sua curiosidade que lhe sorria. - Vamos ficar, mas somente um pouco.

-Podem se surpreende com o que vão achar. Positivamente é claro. Principalmente com os moradores locais. Vocês parecem serem daqui.-após isso eles seguiram com o idoso e com a jovem curiosidade que ainda falava bastante sobre surpresas extremamente positivas.

Mark olhou novamente para o relógio e viu que os ponteiros voltaram a girar e giravam sem parar. Estranho. Até que pararam em um horário. Quatro e meia. Havia se passado somente meia hora segundo o relógio. Devia está errado obviamente.

Havia se passado bem menos para ele. Alguns poucos minutos. No máximo quinze. Mesmo errado o relógio serviria para marcar o tempo, pois voltou a funcionar. Prometeu a Caleb que ficaria de olho no horário e no tempo. Mas a conversa logo o distraiu um pouco. Que mal faria demorar um pouquinho? O importante é que voltariam antes do anoitecer.

*

Summer gastou muito de sua energia indo e voltando ao seu mundo duas vezes. Quando abriu os olhos no campo de flores Mark e Caleb não estavam com ela. Ocorreu uma inversão de mundos. Os dois estavam no mundo dela. Teria que os buscar, mas no momento estava sem forças, tinha que se recuperar. Sentiu um vento frio. A última suave brisa do outono. Quanto tempo teria perdido no seu mundo?

O tempo em seu mundo passava de uma forma diferente. Um minuto nele correspondia há doze horas no mundo deles. Era bom os dois ainda estarem na entrada, no jardim, quando ela voltasse para os buscar, pois se tivessem entrado mais para dentro as coisas ficariam um pouco mais complicadas e demoradas.

Quanto tempo demoraria? Quantas estações? Está certo que eles poderiam achar uma das saídas ou uma das saídas poderiam os achar... Haviam as formas boas de sair daquele mundo e as não tão boas. Não desistiria de os procurar levasse o tempo que fosse. Eram seus amigos.

*

Karl não era de chorar. Seu pai não permitia fraquezas. O ensinou que não se devia chorar. Mas chorou mesmo assim. Ao pensar no pai lembrou da mãe. Chorou ainda mais. Caleb era o filho que ela mais amou... Fechou aos olhos e lembrou de coisas que queria esquecer.

Encontrar o casaco sujo de sangue, que o DNA confirmou ser de Caleb, acabou com a mãe. Mexeu com ela, mas não tanto como uma outra coisa que encontraram um pouco depois... A tristeza dela rapidamente se... Não! Ele não queria pensar nessas coisas agora! Não naquele lugar que segundo o irmão era mágico.

Estava sentado embaixo de uma árvore com o caderno aberto no colo. Parou que chorar, pois não queria que as lágrimas borrassem as palavras do irmão. Pegou um lápis e pensou em completar a história do irmão. Era estranho, mas ao contar a história e ao ter o caderno sentia que o irmão e a garota estavam próximos e Mark também. Sabia que eles deviam está juntos como sempre estiveram... Sentia isso. Ele escrevia quando ouviu passos se aproximando. Devia ser a imaginação ligada a saudade lhe pregando peças.

-Caleb?- chamou em uma vã esperança de ser o irmão. Seria tão bom se fosse ele, mas ao virar nada viu. Apenas a floresta balançando ao vento. Mas continuou- Caleb, quero dizer que sinto muito por tudo, sabia? Espero que estejam bem, sei que o Mark deve está com você. Estou com seu caderno, espero que volte para que possa lhe devolver. Acrescentei algumas coisas, mas creio que não se importe. Você sempre quis que eu fosse seu amigo e visse seus filmes...

Fechou os olhos por um momento para afastar as lágrimas. Uma brisa balançou seus cabelos e sem saber soube que era a menina das anotações que estava lá. A que salvou seu irmão uma vez. Ela parecia querer o tranquilizar. Meio que ouviu o vento lhe dizer algo. Se pegou dizendo:

- Espero que encontre o caminho de volta logo, irmão.-engoliu o choro e completou forçando um sorriso- Quero lhe devolver seu caderno. Podemos terminar a história juntos...

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Essa história se passa no mesmo universo que o meu conto anterior chamado "Como a primavera chegou..."(link para o conto:https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6182894), tanto que tem vários detalhes dele. Mas a ordem de leitura dos contos acho que não interfere no entendimento. Os contos foram escritos para se completarem,não exatamente como uma continuação então esse pode ser lido primeiro e o outro após ele. Planejo escreve mais alguns contos nesse universo. Mais dois. Já foi a primavera e o outono. Ainda faltam o inverno e por último o verão(Summer).

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 24/12/2017
Reeditado em 02/08/2018
Código do texto: T6207533
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