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Usei o verbo “sentir” no passado e reafirmo a minha surpresa em encontrá-la naquela tarde, sentada na nossa cama, porque simplesmente Mariana tinha falecido há três meses atrás. E eu, embora sentisse a falta dela, já havia me acostumado com a sua ausência em minha vida. Tanto que até já me casara de novo.
Surpreso sim, eu fiquei, mas não assustado, como se poderia supor. Afinal, não é normal um sujeito chegar em casa á tarde, depois de um dia de trabalho, e encontrar sua esposa morta, sentada na sua cama, parecendo ainda mais viva do que estava antes de ter falecido.Pelo menos mais viva e saudável que dos nos três últimos meses da sua vida, quando o câncer que a levou embora se tornou mais agressivo e praticamente a transformou em uma morta viva que saia da casa para o hospital, do hospital para casa.
Claro, eu não sei como funcionam as leis que regulam a comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, nem se existem tais leis e quais as possibilidades e condições que permitem que isso ocorra. A tradição, nesses casos, mandava que meus cabelos arrepiassem, que os meus batimentos cardíacos acelerassem, que todos os pelos do meu corpo se eriçassem, esstendendo por todo o território onde se situa o meu organismo um tapete de finíssimas agulhas que capaz de chamar a atenção de um faquir.
Mas não foi isso que aconteceu. Eu simplesmente fiquei surpreso por vê-la ali, sentada na cama, folheando aquela revista, tranquila, calma, segura, como se tivesse voltado de uma longa viagem, como tal deve ser essa jornada entre o mundo dos que foram e o dos que ficaram. Talvez (o que sabemos nós?), essa viagem não seja mais que o virar de uma página, uma passagem de porta, ou um mero cruzar de rio, como a morte era figurada pelos gregos antigos com o mito de Caronte, o barqueiro que cobrava duas moedas para levar a alma dos mortos de uma margem á outra do rio Estiges. E por isso todo defunto era sepultado com duas moedas a cerra-lhe os olhos.
O fato é que, se essa viagem é longa, Mariana não a sentiu, pois ela estava ali, e seu aspecto era de quem havia dado um mero passeio e estava de volta. Era como se ela tivesse voltado de um spa, ou de uma clínica, onde recuperara a saúde o viço, pois que voltara fisicamente recuperada e completamente saudável.
̶ Ué, o que você está fazendo aqui ̶ perguntei, mais surpreso que aterrorizado.
̶ Porque a pergunta? Este não é o nosso quarto ̶ respondeu ela com a maior naturalidade.
A ênfase posta no pronome possessivo chamou minha atenção, mas eu estava muito surpreso para ficar investigando possíveis sentidos que ele pudesse ter naquela hora. Não me passou pela cabeça que ela se sentisse como uma rainha deserdada e expulsa do seu reino, e que estava voltando do exílio para reivindicar os seus direitos.
̶ Mas você não morreu? ̶ perguntei, desconcertado.
̶ Depende do que você entende por morrer ̶ disse ela, sem largar a revista.
̶ Morrer é morrer. Só tem um sentido ̶ eu disse, e nem me surpreendeu também o fato de eu ter dito isso de uma forma tão natural, como se tivéssemos conversando sobre o cardápio do jantar ou uma bobagem qualquer que uma das nossas filhas houvesse dito.
̶ É ̶ respondeu ela laconicamente, como se não estivesse disposta a esticar aquele tipo de conversa. E eu, que tinha a consciência de estar falando com uma morta, não sei porque, entendi, no meu inconsciente, a razão, se razão houvesse, e não insisti. Coloquei a pasta sobre a cama, como sempre fazia em ocasiões anteriores, quando ela estava viva, e eu a encontrara em situações semelhantes, e entrei no banheiro.
Repito. Não tive medo nem fiquei horrorizado por estar falando com uma pessoa a quem eu sabia estar morta. Meus cabelos não arrepiaram, não senti o necessário calafrio na espinha que sempre ocorre nesses casos, conforme a tradição já estabelecida para tais acontecimentos, nem houve aquela queda de energia vital que se segue aos confrontos que opõem pessoas vivas e mortas nesses fenômenos de poltergeist. Fiquei apenas atabalhoado, desconcertado, sem saber o que pensar. E também me bateu uma preocupação e um temor, pois imediatamente me veio á cabeça o pensamento de como a Marisa, minha nova esposa, iria encarar esse fato. O que ela ia dizer, ou por outra, o que iria fazer quando soubesse que a falecida havia retornado do mundo dos mortos, e, ao que parecia, pela postura tranquila e confiante dela, sentada em nossa cama, disposta a reassumir o lugar que fora dela? Como reagiria, ela, que passara a noite toda no velório, acompanhara o corpo de Mariana ao cemitério, acendera velas e rezara Padres-Nossos e Aves-Marias, pedindo aos anjos e santos para acompanhar a alma da amiga até o céu e pedindo a Deus para que a recebesse sem burocracias e inquéritos?
Não. Não comecem a pensar bobagens. Marisa não fora minha amante quando Mariana estava viva. Nem sequer tínhamos sido namorados em qualquer fase anterior de nossas vidas. Também nunca pensamos em ter uma relação diferente da camaradagem que havia entre ela e Mariana, que eram professoras na mesma escola, e muito mais por aproximação profissional se frequentavam, do que por amizade mesmo.
Claro que eu havia notado que Marisa era uma mulher bonita e charmosa. E que estava soltinha no mercado para uma nova relação, pois que havia se divorciado recentemente. Mas eu juro pela alma de Mariana, que jamais pensei nela como uma possível substituta para ela.
Aconteceu naturalmente. Eu me juntei com ela um mês depois que enterrei Mariana. Vou contar direito essa história, para que não paire dúvidas sobre o meu caráter e o de Marisa. Não quero que ninguém fique pensando que nós já andávamos traindo Mariana em vida e que a volta dela tivesse alguma coisa a ver com isso.
(continua)
Usei o verbo “sentir” no passado e reafirmo a minha surpresa em encontrá-la naquela tarde, sentada na nossa cama, porque simplesmente Mariana tinha falecido há três meses atrás. E eu, embora sentisse a falta dela, já havia me acostumado com a sua ausência em minha vida. Tanto que até já me casara de novo.
Surpreso sim, eu fiquei, mas não assustado, como se poderia supor. Afinal, não é normal um sujeito chegar em casa á tarde, depois de um dia de trabalho, e encontrar sua esposa morta, sentada na sua cama, parecendo ainda mais viva do que estava antes de ter falecido.Pelo menos mais viva e saudável que dos nos três últimos meses da sua vida, quando o câncer que a levou embora se tornou mais agressivo e praticamente a transformou em uma morta viva que saia da casa para o hospital, do hospital para casa.
Claro, eu não sei como funcionam as leis que regulam a comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, nem se existem tais leis e quais as possibilidades e condições que permitem que isso ocorra. A tradição, nesses casos, mandava que meus cabelos arrepiassem, que os meus batimentos cardíacos acelerassem, que todos os pelos do meu corpo se eriçassem, esstendendo por todo o território onde se situa o meu organismo um tapete de finíssimas agulhas que capaz de chamar a atenção de um faquir.
Mas não foi isso que aconteceu. Eu simplesmente fiquei surpreso por vê-la ali, sentada na cama, folheando aquela revista, tranquila, calma, segura, como se tivesse voltado de uma longa viagem, como tal deve ser essa jornada entre o mundo dos que foram e o dos que ficaram. Talvez (o que sabemos nós?), essa viagem não seja mais que o virar de uma página, uma passagem de porta, ou um mero cruzar de rio, como a morte era figurada pelos gregos antigos com o mito de Caronte, o barqueiro que cobrava duas moedas para levar a alma dos mortos de uma margem á outra do rio Estiges. E por isso todo defunto era sepultado com duas moedas a cerra-lhe os olhos.
O fato é que, se essa viagem é longa, Mariana não a sentiu, pois ela estava ali, e seu aspecto era de quem havia dado um mero passeio e estava de volta. Era como se ela tivesse voltado de um spa, ou de uma clínica, onde recuperara a saúde o viço, pois que voltara fisicamente recuperada e completamente saudável.
̶ Ué, o que você está fazendo aqui ̶ perguntei, mais surpreso que aterrorizado.
̶ Porque a pergunta? Este não é o nosso quarto ̶ respondeu ela com a maior naturalidade.
A ênfase posta no pronome possessivo chamou minha atenção, mas eu estava muito surpreso para ficar investigando possíveis sentidos que ele pudesse ter naquela hora. Não me passou pela cabeça que ela se sentisse como uma rainha deserdada e expulsa do seu reino, e que estava voltando do exílio para reivindicar os seus direitos.
̶ Mas você não morreu? ̶ perguntei, desconcertado.
̶ Depende do que você entende por morrer ̶ disse ela, sem largar a revista.
̶ Morrer é morrer. Só tem um sentido ̶ eu disse, e nem me surpreendeu também o fato de eu ter dito isso de uma forma tão natural, como se tivéssemos conversando sobre o cardápio do jantar ou uma bobagem qualquer que uma das nossas filhas houvesse dito.
̶ É ̶ respondeu ela laconicamente, como se não estivesse disposta a esticar aquele tipo de conversa. E eu, que tinha a consciência de estar falando com uma morta, não sei porque, entendi, no meu inconsciente, a razão, se razão houvesse, e não insisti. Coloquei a pasta sobre a cama, como sempre fazia em ocasiões anteriores, quando ela estava viva, e eu a encontrara em situações semelhantes, e entrei no banheiro.
Repito. Não tive medo nem fiquei horrorizado por estar falando com uma pessoa a quem eu sabia estar morta. Meus cabelos não arrepiaram, não senti o necessário calafrio na espinha que sempre ocorre nesses casos, conforme a tradição já estabelecida para tais acontecimentos, nem houve aquela queda de energia vital que se segue aos confrontos que opõem pessoas vivas e mortas nesses fenômenos de poltergeist. Fiquei apenas atabalhoado, desconcertado, sem saber o que pensar. E também me bateu uma preocupação e um temor, pois imediatamente me veio á cabeça o pensamento de como a Marisa, minha nova esposa, iria encarar esse fato. O que ela ia dizer, ou por outra, o que iria fazer quando soubesse que a falecida havia retornado do mundo dos mortos, e, ao que parecia, pela postura tranquila e confiante dela, sentada em nossa cama, disposta a reassumir o lugar que fora dela? Como reagiria, ela, que passara a noite toda no velório, acompanhara o corpo de Mariana ao cemitério, acendera velas e rezara Padres-Nossos e Aves-Marias, pedindo aos anjos e santos para acompanhar a alma da amiga até o céu e pedindo a Deus para que a recebesse sem burocracias e inquéritos?
Não. Não comecem a pensar bobagens. Marisa não fora minha amante quando Mariana estava viva. Nem sequer tínhamos sido namorados em qualquer fase anterior de nossas vidas. Também nunca pensamos em ter uma relação diferente da camaradagem que havia entre ela e Mariana, que eram professoras na mesma escola, e muito mais por aproximação profissional se frequentavam, do que por amizade mesmo.
Claro que eu havia notado que Marisa era uma mulher bonita e charmosa. E que estava soltinha no mercado para uma nova relação, pois que havia se divorciado recentemente. Mas eu juro pela alma de Mariana, que jamais pensei nela como uma possível substituta para ela.
Aconteceu naturalmente. Eu me juntei com ela um mês depois que enterrei Mariana. Vou contar direito essa história, para que não paire dúvidas sobre o meu caráter e o de Marisa. Não quero que ninguém fique pensando que nós já andávamos traindo Mariana em vida e que a volta dela tivesse alguma coisa a ver com isso.
(continua)