O RITUAL DO ADEUS
(SINOPSE)
A partir dos sonhos que tem com sua esposa falecida, Francisco cria uma ilusão de que ela voltou e começa a viver com ela uma vida paralela. Ele, no entanto, é conscientemente, um semi-ateu que não acredita em coisas sobrenaturais, por isso sua mente aceita a volta de sua esposa falecida como um acontecimento normal, enquanto sua vida real, casado com outra mulher, passa a Ser uma espécie de vida dupla, na qual ele sente que está traindo a falecida e ao mesmo tempo, enganando a esposa verdadeira com a falecida. Sem conseguir distinguir o que é sonho e o que é realidade, Francisco viverá uma experiência estranha e emocionante ao mesmo tempo, que no fim, lhe será bastante educativa. É tudo fruto do seu inconsciente, mas ele só descobrirá e resolverá o seu dilema quando praticar o ritual do adeus e aprender o verdadeiro significado do desapego.
O RITUAL DO ADEUS
Vocês podem imaginar a minha surpresa, quando cheguei em casa naquela tarde, e encontrei Mariana, sentada na minha cama, folheando uma revista de artesanato. Mais propriamente uma revista de artigos de crochê, rendas e macramê, coisas que ela gostava de fazer, principalmente durante a viagem de trem que fazia todos os dias pela manhã, para ir á escola de educação infantil, onde dava aulas. Esse era um dos hobbies dela, além da pintura. Tenho ainda, pendurados nas paredes da minha casa, vários quadros pintados por ela. A minha competência para julgar pinturas é zero, mas acho que ela pintava bem. Alguns dos seus quadros têm aquela variação cromática que alegra os olhos e uma disposição geométrica que nos dá uma ideia de equilíbrio e distribuição concisa de objetos, de forma a sugerir uma ideia bastante limpa de conjunto, coisa que a gente nem sempre observa em pinturas feitas por artistas amadores.
O meu sentimento de surpresa por encontrá-la em nosso quarto foi uma dessas coisas que eu não tenho palavras para descrever. Foi algo assim como, se de repente, as rosas que ela plantava no jardim e regava todos os dias começassem a falar e perguntassem por ela. "Ei, cadê a Mariana? Por que ela não vem mais regar a gente?" Ou então a máquina de lavar roupa que começava a sacudir e pular como um cavalo xucro toda vez que eu metia a minha roupa dentro dela e apertava o botão enxaguar, em vez de lavar, me dissesse que aquilo também era um comportamento vinculado à presença de Mariana, e era por causa da ausência dela que ela estava fazendo isso. Quando isso acontecia, eu sempre pensava que a Mariana bem poderia ter me avisado que o botão não era aquele. Eu não teria me aborrecido nem um pouco, se nessas ocasiões ela me dissesse “Ei, seu imbecil, você apertou o botão errado”.
Mariana tinha um jeito maternal de me xingar que eu adorava.
Afinal, apertar botões errados tem sido uma constante em minha vida. Foi ela quem me ajudou, nestes últimos vinte e cinco anos, a lidar com as consequências desta minha natural tendência para fazer escolhas equivocadas. Graças a ela aprendi a ser mais seletivo e cuidadoso nas minhas peferências e até o fato de não ter errado no meu casamento com Marisa, a minha atual esposa eu posso atribuir a ela.
Daí a minha surpresa em encontrá-la sentada no meu quarto, e ainda por cima, na minha cama. Não por ela estar lá, porquanto ela tinha todo o direito de estar, e muito mais ainda, pois ela era minha mulher.
Era. Foi. É. Sei lá como classificar essa situação. Melhor dizendo, para não confundir, ela fora, em outros tempos, minha mulher. E de alguma forma continuava sendo, porque...
Deixa para lá. Usei o termo “mulher” porque não gosto da palavra “esposa”. Parece-me pedante e burocrático demais. Já a palavra “mulher” é mais aconchegante e intimista, e ao se referir á ela como “minha mulher”, sempre senti a presença um laço mais profundo entre nós que extrapolava em muito o vinculo legal estabelecido no cartório quando nós nos casamos.
̶ Esta é Mariana, minha mulher ̶ Assim eu a apresentava aos meus amigos. E ao falar dessa forma era como se um elo de cumplicidade orgânica se estabelecesse entre nós, algo assim como o que Adão deve ter sentido quando Jeová lhe apresentou Eva, pois consta que nesse momento ele, Adão, disse “eis aqui agora os ossos dos meus ossos e a carne da minha carne”, e isso, posto está que deve ter sido para esse nosso primeiro ancestral mais que uma simples formalidade que se estabelece a partir do momento em que o juiz de paz declara casados um par de noivos e eles passam a ter certeza de que podem fazer agora por vias de direito o que já andavam fazendo de fato.
̶ Este é Francisco, meu marido ̶ era como ela me apresentava aos amigos dela. Não usava o termo “esposo” por razões idênticas às minhas. ̶ Parece que estou falando do meu dono e não do meu homem ̶ dizia ela. E de fato ela nunca me chamou de "esposo", pois esposo era o homem que, segundo ela dizia, no antigo direito romano era o detentor da sponte, ou seja, a vontade que dominava, e que fazia da mulher um bem de sua propriedade, tanto quanto uma casa, uma mula ou uma latrina dentro da qual podia descarregar o produto da sua vesícula seminal e depois, quando se cansava dela, substituía por uma nova. E ela, que era uma mulher lida e bem informada do significado das palavras, sempre citava, em apoio a esse discurso, o infeliz verbete que Santo Agostinho colocou no verso 405 do Sermão 322: “ Homem, tu és dono; a mulher é tua escrava”, como prova de que o chauvinismo não era uma coisa nova e que os doutores da Igreja tinham uma grande parcela de culpa nesse caso.
Esse foi um acordo tácito que nós fizemos. Sermos apenas homem e mulher, que haviam se juntado por razões de íntima cumplicidade afetiva; e concordamos em ver os liames burocráticos que o casamento civil nos impunha apenas como obrigações que havíamos cumprido para satisfazer a sociedade. O que nos manteve juntos por vinte e cinco anos foi a nossa satisfação de termos um ao outro e nos encontrarmos á noite, depois de um dia de trabalho, com muitas coisas para contar um ao outro, e mais que isso, o prazer de ouvirmos o que cada um tinha a dizer.
Além da vida que construímos juntos, é claro. Mas esta é outra história. Aliás, esta é toda a história.
(continua)
(SINOPSE)
A partir dos sonhos que tem com sua esposa falecida, Francisco cria uma ilusão de que ela voltou e começa a viver com ela uma vida paralela. Ele, no entanto, é conscientemente, um semi-ateu que não acredita em coisas sobrenaturais, por isso sua mente aceita a volta de sua esposa falecida como um acontecimento normal, enquanto sua vida real, casado com outra mulher, passa a Ser uma espécie de vida dupla, na qual ele sente que está traindo a falecida e ao mesmo tempo, enganando a esposa verdadeira com a falecida. Sem conseguir distinguir o que é sonho e o que é realidade, Francisco viverá uma experiência estranha e emocionante ao mesmo tempo, que no fim, lhe será bastante educativa. É tudo fruto do seu inconsciente, mas ele só descobrirá e resolverá o seu dilema quando praticar o ritual do adeus e aprender o verdadeiro significado do desapego.
O RITUAL DO ADEUS
Vocês podem imaginar a minha surpresa, quando cheguei em casa naquela tarde, e encontrei Mariana, sentada na minha cama, folheando uma revista de artesanato. Mais propriamente uma revista de artigos de crochê, rendas e macramê, coisas que ela gostava de fazer, principalmente durante a viagem de trem que fazia todos os dias pela manhã, para ir á escola de educação infantil, onde dava aulas. Esse era um dos hobbies dela, além da pintura. Tenho ainda, pendurados nas paredes da minha casa, vários quadros pintados por ela. A minha competência para julgar pinturas é zero, mas acho que ela pintava bem. Alguns dos seus quadros têm aquela variação cromática que alegra os olhos e uma disposição geométrica que nos dá uma ideia de equilíbrio e distribuição concisa de objetos, de forma a sugerir uma ideia bastante limpa de conjunto, coisa que a gente nem sempre observa em pinturas feitas por artistas amadores.
O meu sentimento de surpresa por encontrá-la em nosso quarto foi uma dessas coisas que eu não tenho palavras para descrever. Foi algo assim como, se de repente, as rosas que ela plantava no jardim e regava todos os dias começassem a falar e perguntassem por ela. "Ei, cadê a Mariana? Por que ela não vem mais regar a gente?" Ou então a máquina de lavar roupa que começava a sacudir e pular como um cavalo xucro toda vez que eu metia a minha roupa dentro dela e apertava o botão enxaguar, em vez de lavar, me dissesse que aquilo também era um comportamento vinculado à presença de Mariana, e era por causa da ausência dela que ela estava fazendo isso. Quando isso acontecia, eu sempre pensava que a Mariana bem poderia ter me avisado que o botão não era aquele. Eu não teria me aborrecido nem um pouco, se nessas ocasiões ela me dissesse “Ei, seu imbecil, você apertou o botão errado”.
Mariana tinha um jeito maternal de me xingar que eu adorava.
Afinal, apertar botões errados tem sido uma constante em minha vida. Foi ela quem me ajudou, nestes últimos vinte e cinco anos, a lidar com as consequências desta minha natural tendência para fazer escolhas equivocadas. Graças a ela aprendi a ser mais seletivo e cuidadoso nas minhas peferências e até o fato de não ter errado no meu casamento com Marisa, a minha atual esposa eu posso atribuir a ela.
Daí a minha surpresa em encontrá-la sentada no meu quarto, e ainda por cima, na minha cama. Não por ela estar lá, porquanto ela tinha todo o direito de estar, e muito mais ainda, pois ela era minha mulher.
Era. Foi. É. Sei lá como classificar essa situação. Melhor dizendo, para não confundir, ela fora, em outros tempos, minha mulher. E de alguma forma continuava sendo, porque...
Deixa para lá. Usei o termo “mulher” porque não gosto da palavra “esposa”. Parece-me pedante e burocrático demais. Já a palavra “mulher” é mais aconchegante e intimista, e ao se referir á ela como “minha mulher”, sempre senti a presença um laço mais profundo entre nós que extrapolava em muito o vinculo legal estabelecido no cartório quando nós nos casamos.
̶ Esta é Mariana, minha mulher ̶ Assim eu a apresentava aos meus amigos. E ao falar dessa forma era como se um elo de cumplicidade orgânica se estabelecesse entre nós, algo assim como o que Adão deve ter sentido quando Jeová lhe apresentou Eva, pois consta que nesse momento ele, Adão, disse “eis aqui agora os ossos dos meus ossos e a carne da minha carne”, e isso, posto está que deve ter sido para esse nosso primeiro ancestral mais que uma simples formalidade que se estabelece a partir do momento em que o juiz de paz declara casados um par de noivos e eles passam a ter certeza de que podem fazer agora por vias de direito o que já andavam fazendo de fato.
̶ Este é Francisco, meu marido ̶ era como ela me apresentava aos amigos dela. Não usava o termo “esposo” por razões idênticas às minhas. ̶ Parece que estou falando do meu dono e não do meu homem ̶ dizia ela. E de fato ela nunca me chamou de "esposo", pois esposo era o homem que, segundo ela dizia, no antigo direito romano era o detentor da sponte, ou seja, a vontade que dominava, e que fazia da mulher um bem de sua propriedade, tanto quanto uma casa, uma mula ou uma latrina dentro da qual podia descarregar o produto da sua vesícula seminal e depois, quando se cansava dela, substituía por uma nova. E ela, que era uma mulher lida e bem informada do significado das palavras, sempre citava, em apoio a esse discurso, o infeliz verbete que Santo Agostinho colocou no verso 405 do Sermão 322: “ Homem, tu és dono; a mulher é tua escrava”, como prova de que o chauvinismo não era uma coisa nova e que os doutores da Igreja tinham uma grande parcela de culpa nesse caso.
Esse foi um acordo tácito que nós fizemos. Sermos apenas homem e mulher, que haviam se juntado por razões de íntima cumplicidade afetiva; e concordamos em ver os liames burocráticos que o casamento civil nos impunha apenas como obrigações que havíamos cumprido para satisfazer a sociedade. O que nos manteve juntos por vinte e cinco anos foi a nossa satisfação de termos um ao outro e nos encontrarmos á noite, depois de um dia de trabalho, com muitas coisas para contar um ao outro, e mais que isso, o prazer de ouvirmos o que cada um tinha a dizer.
Além da vida que construímos juntos, é claro. Mas esta é outra história. Aliás, esta é toda a história.
(continua)