A Escadaria de Ossos

ATENÇÃO: O que você lerá a seguir é um texto essencial de uma história muito maior intitulada "512". Logo chegará a hora de conta-la. Por enquanto, lembre-se apenas que a história já começou.

Numa rua larga e escura um homem corria.

Eram em torno de sete e meia da noite e tinha chovido mais cedo. As pedras encaixadas da rua estavam molhadas e um pouco escorregadias. As nuvens ainda estavam pesadas e só exibiam um brilho pequeno da lua minguante. Os prédios ao redor estavam fechados, o que só poderia significar uma coisa.

"Não, não, não! Tem que ter alguém! Não podem todos estar na igreja!" foi o que pensou João da Silva Guimarães Filho. Ele corria desesperado pelo meio da rua da cidade do Rio de Janeiro. O ano é 1810, fevereiro, o ar estava frio pelo vento que vinha da baía e a ampla rua em que estava só tinha um ou outro indivíduo aqui e ali. Um vendedor, uma mulher da vida, um pedinte. Infelizmente, ninguém que pudesse lhe ajudar.

Ele olhou para trás: a sombra de um homem alto podia ser distinguida uns quinze metros atrás na pequena luz que ainda havia e ele concluiu que ainda estava sendo perseguido. As outras pessoas na rua também não arriscaram e fugiram, pois ninguém queria problema de ninguém.

João, um homem alto de cabelos loiros cortados até os ombros, vestia um simples calção marrom e uma camisa branca folgada quando notou que seu perseguidor estava em sua casa, a algumas ruas dali e não teve tempo de se trocar. Tomava café, lia o jornal do dia e estava cansado do trabalho. O apartamento n° 15 do prédio Santo Cristo estava escuro a não ser pela lamparina que iluminava mesa, perto da sacada, onde ele estava. Naquela mesa, algumas folhas de jornais que ele já tinha lido e um rolo de papel, bom e caro, para documentos importantes. Estava delicadamente amarrado e, vez ou outra, João desviava o olhar para o manuscrito, não o lendo, mas observando-o feliz pois sabia o que ele continha.

"Consegui".

Escutou a porta do prédio lá em baixo abrindo, mas não deu importância até que um som estranho chamou sua atenção. Parecia um inicio de grito que fora abafado, e mais nada. Não deu muita importância e continuou sua leitura.

A sala estava escura, mas ele pode ver, minutos depois, do terraço do apartamento, a maçaneta girando levemente e depois um pouco mais vigorosamente quando seja lá quem for reparou que a porta estava trancada. Ele se levantou lentamente, largou o jornal, pegou o rolo de papel e continuou ouvindo. A maçaneta parou de girar e um silêncio tinha se instaurado por uns segundos até que um forte som de pancada veio da porta. Esta era de mogno e seu visitante teria trabalho para quebrá-la, mas na segunda pancada já se podia ver a ponta de uma barra de ferro. O invasor tinha uma força incrível, só podia ser.

Enquanto isso, João estava parado, assustado. Pensou no manuscrito. Sabia que ele poderia atrair coisas estranhas para si, mas aquilo? Não parecia um simples assalto...

Na terceira pancada, saiu correndo, deixando tudo para trás e pulando da sacada para o teto da casa vizinha, mais baixa. Foi se esgueirado, gatuno como tinha aprendido na juventude quando fazia pequenos furtos. Logo estava no chão da rua. Olhou lá para cima e pôde ver a sombra de um homem, robusto, mas irreconhecível. Não pelo escuro, não pela face estranha que ele pudesse ter, mas pelo simples fato de que sua face era voltada para as costas. A cabeça virada num ângulo estranho e não natural de 180°.

Em frente ao prédio, a porta escancarada lhe mostrou que o Jeremias, o gerente, estava deitado sobre o balcão. Dormindo? Não. Um rio de líquido vermelho escorria pelo móvel, saído do tórax dele.

Morto.

O medo se instaurou no coração de João e as mãos gelaram. Não via polícia por nenhum lado e também não seria bom para ele envolvê-la nisso. Teve a intuição de que só podia fazer uma coisa. Saiu correndo em disparada, sem rumo, sem pensar, apenas como um animal caçado.

Como nos velhos tempos.

...

João estava pronto para virar uma esquina quando desta surge outro indivíduo. Poderia ser alguém para ajudar e durante alguns segundos isso passou pela sua cabeça. No entanto, ele parou de correr e pôde observar que o novo personagem também apresentava a estranha característica do seu atual perseguidor: sua cabeça era virada para traz, a face girada em 180°. Esse novo começou a andar em sua direção e com dois perseguidores à frente e na retaguarda e vários prédios fechados à esquerda, João não teve alternativa - sem pensar direito, ele entrou no prédio à direita dele, a recém-inaugurada Livraria Pública da Corte.

Ele correu pelo saguão e despistou o vigia que ficou aos gritos de que a livraria estava fechada naquela hora. Ele se meteu entre as prateleiras, mas de longe notou que um de seus perseguidores, agora três, enfiou um facão no vigia e outro cortou seu pescoço. Sem opção, continuou correndo e correndo por entre as prateleiras até que lhe surgiu uma desesperada ideia. Ele guardou o documento em uma prateleira aleatória, junto de uns documentos estranhos, decorou o número da prateleira e se afastou.

A biblioteca é muito ampla e está escura de maneira que João andou em silêncio por meio das estantes e conseguiu ver as sombras dos homens em seu encalço graças às poucas velas das paredes. Com essa desvantagem dos seus inimigos, o rapaz conseguiu sair em disparada no momento em que eles se afastaram mais para dentro das estantes. Passou pelo corpo jogado do vigia e saiu da Livraria.

Em baixo da escada, olhando para ele, ou talvez não, haviam umas dez pessoas, homens, mulheres e uma criança de uns dez anos, todos em pé, com os corpos em sua direção, mas com as cabeças voltadas para as costas. Não teve tempo de pensar num plano, uma rota de fuga, ou deixar que o medo da cena se abatesse sobre ele, pois sentiu uma faca perfurando-o por trás na hora que ia correr. Caiu no chão sentindo a hemorragia banhando a camisa e os órgãos internos. Não podia conceber a ideia de morrer tão facilmente, tão jovem. Virando-se, ainda pôde ver sinais de um céu estrelado acima de todos, se escondendo atrás de nuvens grossas e seus assassinos em volta dele, numa roda. Mas não podia ver os rostos deles.

A criança, a mais baixa, revistou ele, sujando-se com o sangue dele. João reparou que ela tinha um corte profundo na garganta. Viva? Morta? Humana? João se perguntou em seus últimos momentos.

- Onde está o documento? – Era a voz da criança falando. Claro que não pôde ver seu rosto falando, mas só podia ser ela. Um menino de voz ainda maturando.

Uma ideia passou pela cabeça dele. Em seu último momento, não iria facilitar para seus assassinos. Moveu a mão para os bolsos dos calções, muito devagar, e pegou o conteúdo que ele sabia que ainda estava lá. Um resto de papel-de-fumo que ele tinha usado mais cedo, só um pedaço, o que seria mais do que o suficiente para mostrar aos seus perseguidores.

Tremendo e erguendo a mão ele mostrou às costas da cabeça da criança, sorrindo um sorriso que só poderia significar uma coisa. “Perdido para sempre. Só cinzas”. Um silêncio se instaurou na roda de assassinos e o último som que chamou atenção de João foi o sino da igreja, lá longe.

A criança tirou de trás das costas uma faca, pegou-o pelos cabelos e, cortou-lhe a garganta.

Doce.

...

Ele acordou.

Uma dor de cabeça terrível se abatia sobre ele. Sua vista estava embaçada, porém aos poucos foi clareando. Os cortes na barriga e garganta doíam, mas ele não sentia sangue escorrendo delas.

Quando os olhos voltaram a funcionar melhor, percebeu que estava num enorme cômodo iluminado apenas pelas grandes janelas duplas ao longo da parede direita do seu ponto de vista. No extremo oposto, uma porta dupla fechada.

O ato de mexer os braços o comunicou que ele estava sentado e amarrado com as mãos para trás. Suas pernas também se encontravam da mesma forma. Ele tinha dificuldade em respirar o ar frio e úmido da noite.

A cadeira era muito pesada de maneira que suas tentativas de movê-la foram inúteis. Além disso, todo o seu corpo doía numa dor seca que nunca sentira antes.

Depois de um tempo que poderia ser minutos ou horas, a porta dupla se abriu de repente. Dela saíram figuras encapuzadas com mantos pretos. Ao ver a cena não conseguiu raciocinar direito nem protestou contra seus captores. Não tinha forças para isso.

Eles foram entrando, uns atrás dos outros. Alguns apresentavam silhuetas esguias, talvez fossem mulheres. Outros eram mais altos e largos.

Aforam prostrando-se dos dois lados da sala. Ao final, havia cerca de vinte e cinco de cada lado e um deles se deteve na porta para fecha-la. Depois disso, a pouca consciência de João mostrou-lhe que este se dirigia até ele.

Ao se aproximar a menos de um metro, ele parou em frente ao homem preso e observou-o. Parecia extremamente calmo. Depois de alguns segundos, retirou o capuz revelando seu rosto. Em frente à João, havia um homem de um metro e setenta de altura, muito velho, com muitas rugas e cabelos longos e brancos. Tinha os olhos azuis cristalinos e apesar da aparente idade centenária, tinha uma ótima postura e um olhar...

...Carniceiro.

Ele o observou.

João tentou falar:

- O...O...O q...

O homem, sem falar nada, levantou a mão direita e colocou-a na testa de João. Ao senti-la, sua mente esvaziou-se, focando-se apenas no homem e em seus olhos azuis.

Apenas nele...Apenas nele... APENAS NELE...

De repente, João não mais era João.

Era uma criança que se apegava ao peito da mãe. Jogava bola. Odiava o professor particular. Obrigou uma escrava a tirar-lhe a virgindade. Fundou uma empresa com amigos e passou-lhes a perna. Fugido, entrou para uma bandeira. Com aqueles homens ele achou...achou...alguma coisa. Isso não era claro. Teve que ir embora. Quis voltar, não conseguia. Aí veio a voz. A voz lhe disse que o levaria lá novamente. Precisava de sangue. Depois a voz lhe disse muito mais...muito mais...MUITO MAIS...

De tudo isso, vivenciou cada detalhe.

Depois de tudo, o homem tirou a mão da sua testa e ele recobrou a consciência que já estava em frangalhos.

Sua cabeça doía como nunca, mas pode perceber que os outros tinham feito uma fila indiana atrás do primeiro. Com o deslocar desse, o próximo tirou o capuz e fez exatamente o que o anterior fez, colocou a mão em sua testa. Era uma mulher muito, muito velha e quando sentiu seu toque, novamente veio o vazio.

A viagem novamente começou da mesma forma. Uma criança mamando no peito. Foi tudo igualmente longo, porém diferente nos detalhes.

Isso se sucedeu dessa forma. Um por um os encapuzados foram colocando suas mãos na testa do homem imobilizado iniciando o processo de novo...e de novo...e de novo...e de novo...E DE NOVO.

A consciência cada vez mais destruída lhe mostrou que cada um deles eram idosos.

Ao final. Não conseguia se concentrar em nada. Seus olhos arregalados não focavam em nada. A dor de cabeça que tinha só poderia se equivalente ter o cérebro arrancado pedaço por pedaço ainda vivo.

De repente, ele não via mais encapuzados na sala. Tinham sumido, evaporado. À frente, só havia uma sombra humanoide. Tinha enormes braços e era alta. Nenhum rosto, nenhuma pele. João só via uma forma feita de escuridão.

A sombra ergueu uma das mãos e avançou, perfurando-lhe a face. Algo mais que dor ele sentiu.

Sua visão lhe mostrou a escuridão. Completa escuridão. Depois uma explosão. E depois a luz. Sua visão lhe mostrou seres estranhos, mudando suas formas. Depois viu humanos se ferindo, martirizando-se em agonia. Arranhavam-se, dilaceravam-se, gritando não de dor, mas de desespero. Sua visão lhe mostrou uma outra grande luz. Depois da luz vieram gritos de prazer e de dor de todos os tipos. Sua visão lhe mostrou pedras virando espadas. Pessoas escrevendo e lutando. Sobre terra e sobre mar. Sua visão lhe mostrou pessoas entrando em estranhos monstros que cuspiam fumaça. Viu armas tão boas que disparavam centenas de tiros em pouco tempo. Sua visão lhe mostrou guerras como as pessoas jamais tinham visto e amores que sobreviviam a tudo isso. Sua visão lhe mostrou pessoas viajando para cima em estranhos tubos gigantes de ferro. Viu som e imagem serem manipulados como mágica de formas inimagináveis.

Sua visão lhe mostrou muitas outras coisas. A última coisa que lembrou-se foi ter visto uma pessoa de costas. Essa pessoa observava um quadro. Grande? Pequeno? Não saberia dizer. Não fazia sentido. O quadro emitia um brilho que que quase o cegava, mas a pessoa continuava olhando-o de perto. Sua consciência foi indo embora e por último, percebeu que havia pequenos pontos escuros no quadro brilhante Alguns maiores, não luminosos, mas escuros, puderam ser lidos.

Era português.

Dizia...

“A Escadaria de Ossos”

Enquanto isso, na sala os homens e mulheres não mais encapuzados observavam um João de olhos arregalados saltando das órbitas, boca aberta em desespero e com uma gota de sangue escorrendo do nariz.

As pessoas naquela sala eram jovens entre seus vinte e trinta anos. Homens fortes e vigorosos e mulheres esbeltas.

O homem que tocara João primeiro agora era um rapaz de vinte e cinco anos e tinha longos cabelos ruivos e lisos.

Não havia mais rugas em seu rosto.

Seus braços estavam agora fortes.

Pela primeira vez na noite ele disse para todos com uma jovem e máscula voz cristalina. A voz ecoou pelo salão escuro e frio.

- Chão e sangue.

PauloxSilva
Enviado por PauloxSilva em 16/12/2017
Reeditado em 20/02/2019
Código do texto: T6200157
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