Aparição

Essa história aconteceu a alguns anos atrás, bem antes de eu me mudar para esta cidade de casas iguais e prédios que escondem o sol. Ela foi lá no interior, onde o espírito dos cidadãos ainda não foi afetado pelos seus sorrisos frios e falsos. Pode pensar o que quiser sobre isso, mas te garanto que para mim há tanta realidade no que conto quanto possa imaginar.

Aconteceu em uma noite de sexta-feira, num pequeno cantinho perto da região que eu trabalhava. Nesse dia eu tinha saído cansado com meu compadre da uma das cansativas obras que fazíamos e como de costume, fomos relaxar um pouco bebendo alguns goles e conversar sobre a vida.

Pegamos nossas coisas e fomos beber perto da beira de um morrinho que dava visão para algumas pequenas casas antigas ao longe. Lá havia uma antiga árvore, que alguns moradores mais próximos diziam ver um senhor vestido como um mendigo, mas que ninguém conhecia.

Quando chegamos lá e começamos a tirar nossas coisas da mochila, percebemos que um de nossos copos havia quebrado, então resolvemos dividir o outro canequinho de barro que conseguimos. Pegamos a cachaça e começamos a beber, cada um tomando um gole de cada vez.

Falamos muito sobre os problemas do trabalho, sobre o futuro casamento de minha sobrinha e sobre o nosso sonho de nos mudarmos para uma das grandes metrópoles do país. As horas se passaram e nem percebemos isso. O vento estava fresco mas nossos corpos se mantinham quentes graças a pinga. A única coisa que fazia a gente parar de falar eram as goladas no álcool e o único som que nos atrapalhava além dos grilos era o do latido de alguns cachorros ao longe .

Perto da meia noite, já um pouco abalados por conta da bebida, sentimos o ar gelado mudar e dar lugar a uma estranha brisa quente. Embora sentíssemos na pele, com até nossas roupas se sacudindo, nenhuma folha da árvore se sacudia, mas apesar de estranharmos, continuamos lá bebendo, um gole de cada vez.

Depois de mais alguns goles, percebi uma presença se aproximando de onde estávamos. Ele chegou e com uma voz rouca e lenta pedindo um gole da cachaça. Como se fosse para um amigo, eu enchi o caneco e sem nem olhar estendi a mão para o homem, que demorou um tempo para tomar alguma ação, até que disse: "Pô meu rapaz, eu já vivo sempre no barro e você ainda quer que me dar de beber do barro?"

Não entendi de começo ou não quis entender. Levantei meus olhos aos poucos e vi o que foi suficiente para me fazer ficar sem dormir direito por meses. Vi uma figura esquelética encapuzada usando trapos pretos. As unhas de seus pés e de suas mãos eram saltadas, rachadas e sujas, o pouco que estava a mostra de sua pele revelava um tom pálido e ressecado. Seu rosto era praticamente feito de uma escuridão infinita, com olhos tão negros que pareciam refletir a luz da estrela mais distante. Ele sorria com poucos dentes podres e com a veracidade de um demônio.

Eu fiquei estático, meu braço ficou lá esticado com o caneco de barro na minha mão trêmula. Um suor gelado começou a escorrer de minha testa e por mais que eu tentasse clamar por Deus naquele momento, minha voz simplesmente não saía.

O ser levantou sua mão ossuda e mirou em meu rosto. Um momento que pareceu uma eternidade que só foi quebrado quando meu compadre arrancou o caneco da minha mão e falou imponente: "Se é do barro que tu vens, é para o barro que voltarás". Ele disse isso jogando a cachaça no chão.

Um vento quente soprou tão forte que quase me derrubou e bem ao longe deu pra se ouvir um trovão. Pouco a pouco o tempo foi se acalmando e o ar quente voltou a ficar fresco como quando chegamos lá. Olhei ao redor e não havia nenhum rastro daquele homem de preto. Olhei para meu compare que estava recuperando fôlego, visivelmente trêmulo. Tentei acreditar que tudo não passava do efeito do álcool agindo em nossas cabeças. Mas se fosse isso, como os dois poderiam estar bêbados e vendo a mesma coisa?

Ele pegou o caneco e o prendeu de boca para baixo no chão de terra, secou o suor da testa e deu o último gole direto no gargalo da garrafa de cachaça e a jogou no chão também. Se levantou e botou a mochila nas costas: "Vamos", disse ele. Só consegui limpar a poeira da roupa e cambaleante acompanhar ele.

Nunca tocamos no assunto, não sei como ele fez aquilo e nem como ele sabia como fazer, na verdade, eu nunca quis perguntar. Eu conseguia ver em seus olhos que ele também tinha sido marcado por aquele evento de alguma forma. Não demorou muito para que saíssemos do nosso trabalho e finalmente nos mudássemos para bem longe daquela cidadezinha isolada. Queríamos distância de qualquer coisa que fizesse nos lembrar daquela figura encapuzada.

Admito que ainda não sei se aquilo que vimos foi efeito da nossa bebedeira, se foi algum golpe de nossas mentes cansadas impressionadas pelos contos folclóricos da região ou se ficamos malucos de vez. Mas eu digo pra você, que mesmo depois de tanto tempo, toda vez que eu bebo algo, o primeiro gole vai para o chão, pois ele sempre é do santo.

BS Oliveira
Enviado por BS Oliveira em 10/12/2017
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