As Crianças da Floresta
 
~I~
 
Quando Marcos acordou naquela manhã nublada de outono, sentiu-se por um momento cansado. Seus olhos lacrimejavam, envolvidos num bocejo alto e estridente. Parecia até um leão rugindo. — acorda, vá tomar um banho agora moleque, se não vai acabar chegando atrasado na escola. Ele deu de ombros, se enrolou num edredom azul e saiu andando pelo quarto ainda sonolento, tombando para os lados em direção ao banheiro. — Não se esqueça, amanhã nos vamos na floresta... — Lembrou-se Marcos. Aquele pensamento martelava em sua cabeça. — Amanhã... floresta... — Duas palavras que pareciam pequenas agulhas lhe furando o cérebro, tentando lhe motivar a acordar.
O quarto estava uma zona. Marcos tinha um habito nojento e peculiar. Ele empilhava suas meias sujas ao lado da cama, formavam um tipo de montanha de podridão, o cheiro horrível de chulé, misturado com ovo podre e carniça se misturavam evadindo-se por todo o cômodo, Aline não aguentava entrar naquele lugar, toda manhã chamava-lhe entreabrindo a porta aos poucos, para não liberar aquela caatinga, tinha medo de morrer sem poder respirar ar puro e acreditava que seu filho era algum tipo de hibrido de animal e homem, de forma que a parte animal fosse resistente aquele cheiro, mas Marcos apenas havia se acostumado.
Ela evitara limpar seu quarto por um mês, não porque não queria, mas porque da última vez ficou com a garganta inflamada por conta do pô demasiadamente forte e que perdurou por mais de duas semanas, e neste período tomara uma benzetacil, pastilhas de cloridrato de benzidamina e nimesulida 100mg. Passou então a limpar seu quarto de mês em mês com um equipamento apropriado, um pano que enrolava sobre a boca e o nariz e óculos de natação, além de luvas de jardinagem e botas — tudo isso, pois tinha medo de ficar doente de novo. Aline odiava ter de ir ao médico. — Mas como será que ele aguentava dormir naquele quarto todos os dias? Perguntava-se Aline, atônita. — é impossível. Marcos apenas a refutava, dizendo ser seu habitat natural. — Mas que adolescente não tem seu quarto bagunçado? Entretanto, o de Marcos chegava a bater o recorde de imundice.
  Após sair do banho de quase meia hora, Marcos saiu de seu habitat natural e foi até a cozinha. Ele não se interessou muito no café da manhã, deu mordiscou uma fatia de pão integral e bebeu meio copo de suco de laranja.
— Vê se vai pra escola.
— Eu sempre vou. — Respondeu Marcos ironicamente.
Logo em seguida pegou a mochila em cima da cadeira e foi embora. Aline o observou cruzar a rua com sua bicicleta vermelha até a esquina, aonde o perdeu de vista. Eram sete e quarenta e cinco da manhã e ao cruzar a esquina, novamente aquelas duas palavras lhe martelaram a cabeça, agora como pregos — Amanhã... floresta... A escola secundaria João Miguel Santos de Alencar localizava-se a três ruas de sua casa, cruzando uma ponte aonde passava um pequeno córrego. Marcos parou com sua bicicleta em cima da ponte, colocou-a encostada nas bases de madeira e se inclinou da ponta, olhando para o córrego. Depois da última tempestade, a altura da agua havia subido dois metros, chegava a bater na ponte, Marcos sentia a agua espalmar seu tênis. Olhando para a correnteza incontrolável do córrego, pensou no dia anterior...
— Saia da frente!
Marcos virou o rosto e viu um caminhão daqueles que fazem carreto vindo em sua direção, parecia estar desgovernado. Marcos não teve muito tempo, jogou-se para trás num movimento defensivo rápido e caiu de costas sobre as tabuas duras da ponte. Sentiu sua coluna estalar numa dor indescritível. O caminhão dobrou a ponte e saiu da contra mão, estava a quase quarenta quilômetros por hora.
— Desgraçado, olha pra frente. — Gritou Marcos tremendo de medo, pois realmente poderia ter sido atropelado e aquele pensamento lhe fizera ficar extasiado.
Ainda no chão, ele olhou para a traseira do caminhão e vira uma placa. A placa irônica dizia; — como estou dirigindo?
Marcou sentiu seu pomo de adão subir e descer violentamente, sobreposto por uma sensação de calafrio indubitável.
— Muito mal! — Vociferou Marcos.
Marcos se levantou com dificuldade, ainda sentindo uma dor tremenda nas costas, era como se o próprio caminhão o houvesse esmagado os ossos da coluna. — Mais que motorista de merda. — Xingou Marcos nervoso.
Da ponte já era possível ver a escola. Os alunos já se aglomeravam no portão principal, esperando dar o horário de entrada. Marcos nunca se sentiu bem indo a escola, dizia não gostar de estudar. Por diversas vezes cabulava aula. Mas aquele dia era um dia especial. Mesmo o céu nublado, garoando, preferiu dar meia volta e foi ao encontro de seus amigos. Corria como um torpedo em sua bicicleta. Marcos sentiu o vento passar por todo seu corpo, seus cabelos castanhos estremeciam, balançando conforme a brisa. Sentiu seus olhos molhados por conta da garoa, perdeu a visão por um momento, tirou a mão do guidão e limpou os olhos.
Chegara em pequeno um quiosque na praça atrás de sua casa. O quiosque por vezes fora habitado por usuários de drogas que por vezes usavam cocaína, heroína e as vezes maconha. Porém, no ano passado a polícia prendeu a maioria dos membros da quadrilha que vendia as drogas naquela região, e o restante que fugiu saiu da cidade, e posteriormente os noias, parasitas natos, por perderem seu fornecedor, abandonaram o lugar, decidiram ir para o bairro vizinho, de onde conseguiram um novo fornecedor de drogas.
Marcos olhou para o relógio, eram oito e quinze. — Amanhã... floresta... Agora estas duas palavras pulsavam por todo seu corpo, criando uma ansiedade avassaladora.
Os primeiros raios de sol começavam a sair, penetrando por entre as extremidades esburacadas da telha do quiosque na direção de Marcos. Ele percebeu que a garoa diminuía, isso era um bom sinal — realmente um bom sinal. Pensou marcos, agitado. O tempo estava partindo a nosso favor. 
 
~II~
 
Eram quase oito e meia da manhã quando Rodrigo chegou no Quiosque. Rodrigo morava na altura do número 27 da Rua Nove, num cortiço, eram num total cinco casas. Ele morava na casa dos fundos, uma casa de três cômodos alugada, muito humilde. Sua casa tinha problemas de infiltração de agua e uma grossa malha de mofo começara a crescer pelas paredes dos cômodos, provavelmente de um encanamento quebrado na casa de cima ao qual os moradores se negavam a concertar, pois diziam não ter dinheiro e nem o proprietário das casas que quase nem aparecia no lugar e que também falava que ia arrumar, mas nunca cumpria com suas promessas.
O cortiço, como todos da rua chamavam, era um emaranhado de casas, todas pintadas de branco, em sua maioria caindo aos pedaços. Rodrigo sentia-se envergonhado em morar ali, as vezes parecia que seus amigos lhe viam como “O Pobretão”, mas aquilo não passava de uma impressão.
Naquela manhã Rodrigo acordou as quatro horas da manhã, Flavio um solteirão carrancudo brigara com Vilma a vizinha, pois havia descoberto que sua filha dormira com ele na noite passada. A gritaria era tão alta que todos no cortiço acordaram. A mãe de Rodrigo, Dona Maria se esgueirava pela janela para ver o que acontecia. A polícia chegou as quatro e meia da madrugada, pois Vilma disferira vários golpes de vassoura contra Flavio e o mesmo chamara a polícia, contudo ele que acabou sendo preso já que a garota que passara a noite tinha menos de dezoito anos e ele tinha trinta e cinco. A mãe de Rodrigo tinha problemas com calmantes, era hipocondríaca, ela não podia ficar ansiosa que já dependia de remédios para se acalmar. Por conta disso, as vezes ela nem acordava Rodrigo para ir para escola. Entretanto naquele dia ele passara o resto da noite acordado. Também não conseguia se se esquecer do dia anterior...
Ele chegara a pé, pois não tinha bicicleta. Estava com um capuz verde, um calção preto e de chinelos.
— E ai Marcos. Cadê a galera!
— Eles ainda não chegaram.
— Puts, marcamos as oito.
— Você não deveria nem reclamar. Olha que horas são agora. É oito e trinta e dois.
— Viu o Luquinha.
— Passei pela casa dele, mas ele não me atendeu. Deve ser aquela bruxa da mãe dele. Sabe como ela é, não é mesmo.
Após deixar sua mãe dormindo, colocou o cobertor sobre ela e saiu, deixando um bilhete na geladeira. — Vou pra escola, já volto. Sentia-se triste em ver sua mãe daquele jeito. Maria tinha quase quarenta anos e desde que teve Rodrigo adquiriu dores horríveis na coluna e que vinha se envergando a cada dia, os médicos diziam que era escoliose, mas como o sistema do estado não lhe ajudara de forma incisiva, ela havia parado de buscar uma cura. Sua mãe começou a depender de calmantes logo em seguida, dizia sentir dor vinte quatro horas por dia, mas para evita-las, preferia dormir.
Rodrigo pegou a mochila e saiu. Sua casa dobrava um corredor imenso dentro do cortiço, passando por outras três casas. O corredor tinha cerca de cinquenta metros, e a maior parte era envolvido por variais de roupas. O chão era acidentado, áspero e cheio de rachaduras, parecia que iria se abrir a qualquer hora e todo cortiço ia cair lá dentro.
Luquinha morava subindo a rua, depois de uma lombada, ao lado de um escadão que levava a uma outra rua. Ele apertou sua campainha duas vezes, chamou-o, mas ninguém apareceu.
Lucas acordara resfriado naquele dia, talvez por ter ficado no sereno, ontem, o dia inteiro. Ele sempre teve a imunidade baixa e por isso ficava doente com muita facilidade. Naquela manhã, ele não iria a escola por ordem de sua mãe, uma mulher amarga chamada Ivone. Ela tratava Lucas como um prisioneiro, super protetora, não gostava que saísse, nem que brincasse na rua, tinha medo de algo acontecer a ele, pois em sua juventude havia perdido uma menina no parto.
— Você não vai sair hoje. Volte para seu quarto AGORA.
Ele discutia com sua mãe na sala quando ouvira seu amigo, Rodrigo chama-lo.
— Você não vai!
— Eu vou sim mãe.
— Olha garoto, se você me desobedecer, vou deixa-lo preso durante um mês.
Ele sentia o café da manhã descer rasgando seu estomago, sua garganta parecia uma tirolesa do pânico, a cada minuto parecia vomitar. Ainda mais que ela fizera ele comer uma salada de brócolis inteira naquela manhã. Era seu remédio de família, salada de brócolis curava tudo, ou pelo menos era isso que ela acreditava.
Lucas esperou sua mãe sair de seu quarto, abriu a janela e fugiu. Ele desceu pelo vão da janela, depois pulou na telha da garagem e se trepou na arvore da vizinha ao qual a copa se erguia até sua casa. Em seguida desceu os galhos das arvores e saiu pelo quintal da vizinha.
— Porque você não respondeu Lucas. Eu fui lá na sua casa.
— Minha mãe, ela me fez comer primeiro toda aquela bosta verde.
— Bosta verde?
— Isso mesmo bosta verde.
— Quer dizer, salada, couve, brócolis... isso!
— NÃO, QUERO DIZER BOSTA VERDE.
Ele chegou no Quiosque as dez horas da manhã, tossia incontrolavelmente, parecia que ia perder o pulmão, ou que ia parir um monstro deformado e fedorento de seu nariz. Uma bola de meleca amarelada gosmenta espirrou, caiu sobre seus pés, parecia até se contorcer.
— Que nojo!
Rodrigo quase vomitou ao ver aquilo, sentiu seu estomago revirar-se, sentiu uma sensação de tontura, virou o rosto e começou a respirar lentamente.
O sol tentava sair, mas as nuvens negras se erguiam do horizonte sobre a cidade.
— Será que vai chover hoje? — Perguntou Luquinha. — Não aguento mais esse tempo.
— Meu pai me disse ontem que não. Hoje vai o tempo só vai ficar nublado. — Responde Marcos.
— Será mesmo? Espero!
Amanda chegara alguns minutos depois, uma garota branca de ficar nauseado, com olhos verdes, ruiva como o sol e sardenta. Amanda sempre desafiava a vida, hora queria pendurar-se em cima de uma árvore de cabeça para baixo, hora nadar no córrego do outro lado do quarteirão na época das chuvas, em tempo de ser arrastada pela correnteza. De todos os meninos Amanda era a mais travessa de todos, sua coragem ultrapassava a masculinidade dos garotos.
Ela morava no final da rua, em uma casa com um portão preto e em seu quintal existia um enorme limoeiro que se trepava por toda a fachada. Para entrar em sua casa, Amanda passava por debaixo de um arco feito pelos galhos do limoeiro.
Amanda morava com a avó, uma senhora muito debilitada, e que não tinha ideia do que sua neta fazia.
— E ai Manda. Porque demorou.
— Porque eu quis!
 
~III~
 
— Vamos Vitor.
Mateus gritava da calçada.
— Vamos nos atrasar.
Mateus ainda estava dormindo. Ele morava com seu pai, um senhor aposentado que também vivia dormindo, parecia até um gato, dormia oitenta por cento do dia e o restante só sobrara para fazer as necessidades naturais. Mateus ouvia a voz de Vitor, mas continuou dormindo.
Vitor entrou em sua casa pela porta da frente, já que sabia que eles costumavam deixar a porta aberta. Vitor entrou pela sala, viu seu pai dormindo no sofá, roncava como um porco guinchando.
— Mateus... — Sussurrou Vitor.
Vitor cruzou a sala e subiu as escadas para o segundo andar, viu a porta do quarto de Mateus aberta.
— Mateus... — Sussurrou novamente.
Ele entreabriu a porta...
Mateus surgira escancarando a porta com força. Com os olhos vermelhos e de cabisbaixo.
— O que você está fazendo na minha casa?
— Não se lembra de ontem.
Mateus coçou a cabeça e respondeu de forma ignorante.
— A lona está lá nos fundos. Vai pega-la que eu vou me trocar.
Mateus queria voltar a dormir, mas depois de ter acordado não poderia voltar. Logo já havia se trocado. A casa de Vitor era ao lado de Mateus, o pequeno sobrado com um enorme muro branco e um portão dourado, com as extremidades enferrujadas e as dobradiças soltas.
Vitor saiu ela porta da cozinha até a lavanderia. A lona estava sobre um móvel alto, pendurado em gancho. Vitor subiu em uma cadeira, arquejou-se para a frente e segurou a lona, nesse momento se desequilibrou, uma das pernas da cadeira ruiu e quebrou, fazendo-lhe cair sobre um saco cheio de garrafas. O barulho foi tão alto que Mateus se assustou. Correu até a sala e viu seu pai levantar-se do sofá.
— O que está acontecendo Mateus.
— Nada Pai, deve ter sido um gato.
Mateus empurrou seu pai contra o sofá e lhe pôs a dormir de novo.
— Vá lá ver... vai lá ver... vai lá... ele vai morrer...
Mateus sentiu um cheio de álcool. Ele só poderia estar bêbado novamente. Não sabia o que estava falando.
Quando conseguiu fazer seu pai voltar a dormir, correu até a lavanderia e viu Vitor caído no chão desmaiado. Entrou em pânico. Tentou lhe balançar, empurrando-o até que ele voltou. Abriu os olhos assustado e gritou.
— Não...
Estava coberto pela lona azul. Uma bisnaga de tinta vermelha havia espirrado do topo de uma prateleira sobre a lona. A tinta vermelha escorria pela lona escorrendo pelo chão.
Mateus ajudou Vitor a se levantar.
— Você é louco?
— A cadeira quebrou...
— Claro, estava mofada e cheia de cupins. Deveria ter subido em cima da pia.
— E como vou saber.
Vitor colocou a mão na nuca que ardia freneticamente e viu um rastro de sangue a preencher.
— Que droga, machucou?
— Não, tudo bem!
Vitor se levantou com ajuda de Mateus. Ambos carregaram a lona manchada de tinta pela lavanderia, passando pela sala sem fazer barulho e saíram correndo pela rua.
Quando chegaram no Quiosque era por volta do meio dia.
— Porque demoraram tanto.
— Esse aqui caiu e quase arrombou a cabeça.
— Serio? — Preocupou-se Marcos.
— Tá! Chega... não aguento mais esperar, vamos logo.
 
~IV~
 
Todos que viam aquele grupo de pestinhas reunidos, já imaginavam o que eles poderiam aprontar. Toda a vizinhança já os conhecia e não aguentavam mais suas infames desventuras que SEMPRE terminara em confusão. Desde o dia em que botaram fogo no gato da dona Cleide, vizinho de Marcos, todos os moradores da vizinhança os temiam.
Marcos era o líder do grupo, ainda assim, Amanda sempre teve voz ativa para lhe intimidar, entretanto, ele que tomava as decisões difíceis.
Ao saírem do quiosque, Vitor sentia-se cansado, Marcos levou-o na garupa da bicicleta, enquanto os outros levavam a lona. Eles foram até o outro lado da cidade, seguinte a via principal que dava em uma área fechada aonde havia uma grande placa dizendo; — Proibida entrada, terreno perigoso! 
Cruzando esse limite dava direto numa área florestal que se estendia por quinze Hectares e fora proibido a passagem por conta do terreno perigoso. Claro que aquilo era um dos maiores atrativos para qualquer criança suficientemente travessa. Rodrigo quebrara o braço duas vezes naquele lugar. A floresta era muito mais perigosa do que suas mentes subdesenvolvidas poderiam entender.
— Abre logo… — Gritou Amanda de forma ignorante.
Mateus puxou a tranca enferrujada e largou-a no chão. A pequena portinhola era conectada por duas correntes grossas.
Rodrigo ainda sentia a dor sibilar em seu cotovelo, mesmo tendo tirado o gesso a um mês, não deixou de promover a desfortuna ideia de descer um dos maiores barrancos da floresta na lona em que Mateus conseguira de seu pai. Da última vez que tentou fazer aquilo acabou ficando cheio de lesões, isso porque foi em um pequeno morro próximo da casa de seu tio, que tinha menos da metade do tamanho do barranco da floresta.
Marcos tomou a dianteira levando a lona, enquanto Mateus e Amanda o ajudavam carregando a parte de trás que suspendiam para não deixar arrastar pelo chão.
O terreno era íngreme e barrento. As árvores se suspendiam como trepadeiras no chão, tão altas como uma montanha e o vento frio que assoprava do leste, ressoava por suas copas. Infelizmente, Deus criara algumas crianças com uma vontade obsessiva incrível de permanecer invioláveis mesmo ao frio intenso.
Após subirem cerca de trezentos metros, chegaram até um vale. Eles haviam apelidado aquele lugar a algum tempo como, o vale vermelho, pois, a maioria da vegetação era em sua abundância de orquídeas vermelhas.
O sol não saía desde de manhã, quando Marcos acordara às sete horas da madrugada daquele domingo e vira pela janela uma fina malha de chuva. Entretanto, mesmo sendo quase impossível, um feixe de luz transpassou as nuvens negras daquele céu nublado e seu brilho sobrepôs-se em pinheiro, iluminando-o. Marcos imaginou ser um sinal do incompreensível, ao qual sua mãe sempre se referira, o Deus dos israelitas, o Deus que tudo pode… o Deus que outrora fizera água virar sangue e partira o mar vermelho em dois para dar passagem ao povo de Israel.
Ao observar o pinheiro, percebeu uma sombra titubeá-lo, uma sombra disforme que se movia ligeiramente com algo parecendo uma tocha acesa, tentando esconder-se na penumbra da floresta. A sombra era alta como um gigante, e lhe seguira com os olhos até descerem o vale, e então sumiu na imensidão do ermo, entre as árvores.
— O que é aquilo… — Pensou, mas permaneceu mudo.
Mesmo sendo durona daquele jeito, Amanda era a mais medrosa de todos, mas evitava demonstrar suas fraquezas. Desde que entrou na floresta, ela sentira um cheiro fétido de morte, e isso lhe fazia recordar de quando encontrou seu gato morto ao lado de sua casa. O gato chamava-se Neguinho, era um siamês calmo e gorducho que fora destroçado pelo cachorro do vizinho. Amanda encontrou o cão ainda devorando suas tripas, e parte da carcaça, principalmente a cabeça. Ele havia arrastado os restos de Neguinho até um pequeno limoeiro, e lá terminava a refeição. Duque como todos chamavam, era um Rottweiler, vivia nervoso latindo dia e noite. Ele era o cão dos Silva, vizinhos dela a mais de cinco anos e conseguira entrar em sua casa pelo portão da frente que havia sido deixado aberto por descuido.
Rodrigo estava a meio metro de distância e também parecia abalado, ele se recordara de quando viu uma mulher sem rosto, vestida de branco sentada em seu quintal. Naquela noite ele havia acordado, logo após ouvir sua mãe gemendo sem parar.
— Não, por favor, não… ai… ai… ai… isso. Mais forte.
Ao acordar seguiu a voz angustiante de sua mãe até seu quarto, quando chegou na porta ouviu um eco estranho, um som de carne batendo em carne, meio molhado e esguio, mais baixo, bem baixo. Em seguida uma voz masculina explodiu, gemendo alto, ainda mais alto do que ela. Gritando abafado, como se tivesse alcançado o ápice do prazer.
— Estou quase! Estou quase.
Rodrigo espiou pela fechadura, seu olho direito encaixou direitinho na pequena fenda e quando o fez, levou um susto, viu um homem moreno todo pelado sobre sua mãe, arquejando-se de forma simultânea, fazendo movimentos graduais para frente e para trás, enquanto lhe agarrava pela cintura, ajoelhada na cama. Ela gemia com força, mas tentava abafar o som com medo que seu filho ouvisse. O homem tomava o controle do sexo, fazendo-a cavalgar, por vezes em diferentes posições. Rodrigo ficou sem reação, ele só havia visto uma cena de sexo numa das revistas pornográficas que Marcos lhe mostrava escondido no banheiro da escola, mas até então nunca havia presenciado nada igual, aquilo sem dúvida lhe arremetia uma sensação diferente, seu coração tamborilava hesitante querendo desviar o olhar e ainda assim continuou olhando durante mais dois minutos, até ouvir uma voz desconhecida surgir, vinda da janela. A voz tinha um tom grave, esbelto e formoso, e cantarolava olhando para a lua. — Venha meu lindo filho, aonde nos separais… venha para os meus braços de onde não partirás.
Ele a observou da janela, próximo da escrivaninha no corredor do segundo andar. A mulher sem rosto carregava um pano branco nos braços, era feito de seda com detalhes em cetim, manchado de sangue. Rodrigo vidrou-a pela janela, até que ela desapareceu perante seus olhos… e reapareceu a sua frente, uma mulher com uma camisola branca, com cerca de um metro e setenta de altura. Ela levantou a mão em sua direção e tocou-lhe o rosto.
— Venha meu filho, venha para os meus braços de onde não partirás.
Rodrigo perdeu-se em sua voz e desmaiou, brandido pelo toque gélido dela, que lhe acometeu ao contrário do que se possa imaginar, uma sensação de paz e até um pouco de conforto, algo que nunca sentira antes.
 
~VI~
 
— Venham, me ajude a preparar a lona. — Chamou Mateus
Marcos ergueu a lona próxima do alto do barranco e a suspendeu com força. Mateus a abriu enquanto Amanda, Rodrigo e Vitor a estenderam. Vitor observou a altura do barranco e o medo lhe fez acreditar que era um precipício sem fim. Hesitou em ser o primeiro, mas acabou cedendo após Amanda lhe ameaçar de jogar morro abaixo. Ele tinha medo de altura, mas não queria passar a ser chamado de marica.
Fora seu medo de altura, Vitor também tinha pavor de palhaços, um dia fora com seus amigos num circo e ficou com tanto medo quando o palhaço apareceu no palco que se mijou. Urinou-se na calça jeans novinha que sua mãe acabara de comprar. A urina desceu por sua perna e formou uma poça amarelada no chão. A imagem daquele palhaço lhe fez ficar em choque, deixando-o zonzo. Uma outra imagem do palhaço se formara em sua mente, ele parecera uma criatura monstruosa com grandes tufos vermelhos sangrentos que saiam das extremidades da cabeça, sobrancelhas num tom branco opaco, um nariz vermelho que parecia pular para fora e estourar, uma boca larga, cheia de dentes amarelos de citrino, alguns até podres e um bafo de cadáver de onde saia uma fumaça negra e uma gosma preta que parecera até piche.
Após aquele evento, Vitor nunca mais foi ao CIRCO.
Vitor sentou em cima da lona e a segurou nas extremidades, enquanto Amanda o empurrara até a beirada do barranco. Rodrigo queria impedir-lhes, pois, sentia um pressentimento ruim, porém...
— Vocês não acham melhor brincarmos de outra coisa.
Amanda virou o rosto, fez uma careta e disse.
— Quer descer primeiro?
Rodrigo ficou mudo. Lucas se aproximou de Vitor e deu-lhe o impulso necessário para descer.
Os primeiros seis metros foram suaves, sem tanta dificuldade, contudo, Vitor notou que o terreno estava mole, por conta da chuva de ontem — mole até demais. A lona começou a deslizar mais que o planejado, e logo tomou uma velocidade de quinze quilômetros por hora, girando para um lado e para o outro em turbulência total e então finalmente virou, capotando. Vitor soltou-se da lona, que acabou ficando presa em uma pedra e continuou descendo e rolando, tombava de forma desajeitada sem controle, desgovernado. Até os primeiros seis segundos já havia quebrado duas costelas, rasgado parte do braço, fraturado o fêmur e tido diversas escoriações. Antes que pudessem providenciar ajuda, e antes mesmo que Vitor rolasse até o final do barranco, uma rocha surgiu no caminho, ele não conseguira desviar, afinal não tinha controle momentâneo do corpo, inevitavelmente acabou por chocar a cabeça em cheio na rocha, com toda a força que juntara na descida.
— Por fav-o-r — Gritou Vitor.
Amanda foi a primeira a chegar no local. Viu Vitor sufocando com o próprio sangue, tentou segurar sua cabeça, colocando-a sobre seu colo, mas de nada adiantou, ele morreu em questão de segundos, seus olhos ficaram vidrados em sua direção, como se estivessem congelados, Amanda entrou em pânico, seu coração quase parou de bater também, respirava com dificuldade. O corpo de Vitor estava todo ferido, mas o que realmente resultou sua morte fora principalmente o rombo que havia na cabeça, por conta da pancada na pedra, era quase impossível acreditar que ainda conseguira viver por alguns segundos. Seu crânio tinha rachado em dois, o resto de seu corpo encontrava-se em péssimo estado, parte de sua espinha havia saído para fora. O sangue que espirrava de toda parte do corpo, começava a cobrir boa parte da área ao seu redor.
Amanda estava coberta de sangue. Em choque vomitou sobre seu corpo, tremendo em um sentimento de pânico.
— Não temos culpa... ele… foi ele.
Amanda observara os olhos de Vitor a fitando e aquela visão destruía sua sanidade.
Mateus, tinha ciência que Vitor era um de seus amigos, mas ele concordava com Amanda — ele que quis ser o primeiro, estava ciente de todos os riscos, ninguém vai pagar por seus erros agora, pensava ele.
— Temos que dar um fim nesse corpo. O que pensa que pode acontecer se descobrirem?
— Você está louco! — Gritou Rodrigo em choque.
— Eu estou louco. Eu… Eu Não quero nem saber! Eu não vou pagar por isso.
Mateus pálido aproximou-se de Rodrigo e o segurou pelo colarinho.
— Você quer que eles descubram. Quer mesmo. O que acha que fariam conosco?
Rodrigo olhou para o cadáver de Vitor e depois para Mateus.
Luquinha estava sem ação, seu coração pulsava tão forte que denegria sua razão.
— Isso mesmo, precisamos dar um fim no corpo. — Respondeu Marcos.
— Isso-pre-ci-sam-mos — Gaguejava Luquinha.
Amanda ainda estava muito abalada, a mais durona do grupo não se aguentava em lagrimas. Os garotos se reuniram, enrolaram o corpo de Vitor na lona, depois o amarram com alguns cipós que encontraram na mata e em seguida o levaram até o lago que existia próximo ao vale vermelho. O sangue dele respingou sobre todos enquanto o carregavam. Em algumas tradições indígenas, dizem que quando você se banha com o sangue de seu inimigo, você leva um pedaço de sua alma, um pedaço de seu espirito consigo para o resto da vida. Quando o corpo foi deixado ao lado do lago, ninguém mais conseguia se mover, estavam tão apavorados que não paravam de tremer. Marcos foi o responsável por desovar o corpo dentro do lago. Era o único que conseguira ficar de pé naquele momento. Ele então amarrou a lona em várias pedras pesadas que conseguiu reunir e empurrou o corpo dentro do lago. O reflexo de seu rosto penetrou nas águas escuras, enquanto via a lona azul, manchada de sangue, afundar com seu amigo.
Depois daquilo, nunca mais eles voltaram a se reunir…
 
~VII~
 
Seis meses se passaram e ninguém conseguiu encontrar o corpo de Vitor. A polícia e o grupo de buscas florestal passaram semanas procurando-o, mas nunca encontram o corpo, nem sequer chegaram perto, até que seus pais desistiram. O Enterro ocorreu no dia cinco de dezembro de 1987, e seus cinco “amigos”, não deixaram de estar presentes, — suposto enterro claro, já que aquele caixão estava vazio e o corpo jazia no fundo do lago.
Após o enterro, duas semanas depois, a turma da rua nove voltou a se reunir uma última vez, estavam decididos a corrigir seu erro. Saíram de casa na surdina da noite, por volta das duas da madrugada e desapareceram.
Suas famílias foram procurá-los e os encontraram um dia depois, seus corpos foram encontrados esquartejados e seus pedaços pendurados em um grande arvoredo ao lado do lado e nem todas as partes das crianças foram encontradas. Os investigadores descreveram a cena, como sendo a miragem do inferno.
Durante as investigações, buscas foram feitas no lago, dois nadadores com equipamento apropriado verificaram o lugar de ponta a ponta, mas não encontraram nada, o corpo de Vitor não estava mais no lago.
Com o tempo o caso foi esquecido, pois, nenhum suspeito fora encontrado, e atualmente qualquer um que caminhe por aquela parte da floresta, se escutar direito poderá ouvir as vozes daquelas crianças, dizem que pelas vozes angustiantes, eles devem estar num lugar tremendamente horrível, sofrendo infindavelmente.
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 09/12/2017
Código do texto: T6194660
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