Ondas Noturnas

Já estava quase noite. Na sala da casa grande, a Senhora costurava um vestidinho para a neta. A “preta”, assim chamada pelos viventes na casa, havia acabado de fazer o café. Café preto, bom. Amélia estava debruçada na janela, olhando a paisagem. Senhora cutucou Mineirinho, que mascava fumo, de cócoras, ao lado da dona da casa grande.

- Negro meu não é criado em senzala – Ela dizia sempre – Há de serem cuidados com dignidade.

Era impossível negar que a Senhora era querida por todos na fazenda. Seu marido havia morrido e ela ficou viúva velha. Sem querer mais homem, ficou de ordenar a casa sozinha. Ela pouco se importava com os deboches que vinham dos vizinhos, que para ela eram praticamente inexistentes. Cutucando mais uma vez Mineirinho, ela o chamou atenção para Amélia.

- Veja a Amélia, coitada – Disse ela - Vive no mundo da lua.

Mineirinho pousou os olhos preguiçosamente em Amélia. Calado, voltou a mascar seu fumo. Tendo depois que cuspir, foi a janela, porque a Senhora não deixava cuspir dentro da casa. Deu de cara com Amélia, que o olhou de cima a baixo.

- Vim cuspir.

- Cuspa. Aproveite e olhe como a vista daqui é bonita.

Mineirinho cuspiu e depois fez o ordenado. Realmente estava um fim de tarde muito bonito. Amélia continuou debruçada, como se seduzida por algo na paisagem. Ela era a única filha da Senhora, e já tinha acabado de lhe trazer a neta da mesma. Rosadinha, a menina dormia no quarto de Amélia. Há muito vivendo na cidade, era a primeira vez que ela vira passar uma temporada ali depois de muito tempo.

- Onde está Seu Zé, que até agora não chegou? – Perguntou Preta.

- Na roça, provavelmente. Não há de demorar

- Vou atrás dele. – Disse Mineirinho, e saiu porta afora.

Demoraram. E como. Cansada, Amélia foi para o quarto. Senhora terminou o vestidinho, que guardou com muito carinho no seu quarto. O café da Preta esfriou, e ela esperava por Seu Zé para esquentar. Eram ela, Mineirinho e Seu Zé os únicos negros da fazenda. A Senhora nem gostava do termo “escravo”, preferia “ajudante”.

Eis que deu dez horas da noite e nenhum sinal do velho nem do negrinho. Senhora ficou preocupada. Pediu para Amélia ir na janela, espiar. Esta foi, com preguiça, mas foi. Abriu a janela e fitou a escuridão. A casa grande parecia estar sendo sugada por um buraco negro em seu ápice. O escuro lá fora tinha um o quê de nefasto. Ventava muito, tanto que as árvores se contorciam de mil formas. Amélia teve medo. Pensou em bicho, Lobisomem, Caipora, tudo. Fechou a janela, assustada.

- Nenhum sinal deles.

Senhora fez uma cara de reprovação. A uma hora daquelas, ninguém podia ir busca-los na roça, só de manhã cedo. E se Zé tivesse desaparecido? Ai, a pressão começou a subir... Pediu à preta um gole de água. Esta foi buscar ligeiro, voltando com um copo cheio. Senhora verteu tudo em três goles.

- Cruz credo Senhora, Zé deve ter ido pescar. – Ela tentou acalmá-la,

As superstições da Senhora eram maiores. Para ela, Zé deve ter sido pego por um bicho do mato, seduzido pelo canto de uma pega-homem qualquer, e ai dele se tivesse morrido. Amélia resolveu abrir a porta e ir atrás. Já segurando o candeeiro, foi parada pela mãe.

- Vá não Amélia, é perigoso.

- Vou, minha mãe. Sou mulher de pulso.

Senhora deixou ela ir. Mal abriu a porta, Amélia botou a mão para fora, para sentir o frio. Assim que os dedos delicados tocaram o sereno da noite, ela caiu para trás e lançou um grito de dor. Senhora e Preta a acudiram.

- O que foi, menina?

- Ai mãe, minha mão.

Amélia mostrou a mão. Em carne viva, bolhas apareciam aqui e ali. Amélia gritou. Senhora e Preta deram dois passos para trás, assustadas. Amélia agora chorava baixinho, com a mão a doer.

- Meu Deus, vou chamar ajuda.

Preta foi em direção a porta. A milímetros da saída, parou, estatelada. Sentia um calor como se vindo do inferno. Vindo do campo, uma onda quente se espalhava por todo o terreiro.

- Sai daí, Preta.

Esta voltou-se para dentro da casa. Foi até a cozinha, demorou-se. Escutando Amélia chorar, Senhora pensou. O que seria isso meu Deus? Andou devagar até a porta aberta, e decidiu fechá-la. Mal botou-se frente à porta, sentiu um ardor que se espalhou pelo corpo todo. Sentia-se num forno a lenha. Já ia fechar a porta. Foi interrompida por Preta, que acabara de chegar com um pau.

- Cuidado Senhora, que aí tá quente.

Amélia assistia a tudo, indiferente. Preta se aproximou da porta, o pau em mãos. Ela suava frio, tinha medo do que podia acontecer depois. Todas já haviam percebido que tinha algo errado. Do terreiro, vinha um som de ventania forte. Era esse o embalo do momento. E todas tomadas pelo medo.

- Vou testar uma coisa.

Foi dizendo isso e colocando uma parte da madeira para o sereno da noite. Mal passou-se um segundo e a madeira já ardia em chamas. Pretas puxou o pedaço de pau para dentro, em choque. O calor que fazia lá fora queimou a madeira. E que calor é esse, que veio de noite? Todas ficaram perplexas.

- Viu, Senhora? Foi o calor que machucou Amélia, aí fora está quente como o inferno.

Fez-se um silêncio de morte. As três mulheres não sabiam o que fazer. Estariam elas presas na casa? Vá testar a porta de trás, pediu Senhora, e correu junto com a Preta para lá. Amélia veio junto, com a mão enrolada num pano. E lá sucedeu-se o mesmo. Todas sentiam um calor infernal, e o pedaço de madeira pegou fogo de novo.

Em choque, testaram todas as janelas. O calor vinha de todos os lados. Desanimadas, foram para a sala. E o Zé, Mineirinho, coitados, se foram atingidos por esse calor devem estar só o osso, Deus quem sabe. As três choraram baixinho, noite adentro. Depois das quatro da manhã, o calor começou a adentrar a casa.