Como a primavera chegou... -CLTS1

A menina de roupa vermelha chamada Summer sabia que ninguém havia notado a sua presença. Melhor assim. Encontrava-se perto da floresta que começava a congelar. Ouviu os passos e soube que alguém se aproximava. Virou-se e viu uma doce velhinha com um sorriso que lhe cumprimentou gentilmente:

-Olá, criança. Suas rosas parecem ótimas esta manhã.

Estranhou ser vista, mas devido a gentileza ia responder. Apurou o ouvido. Mais passos vindos do seu lado. Outra estranha figura se aproximou. Parecia ser tão velha como o mundo, com o rosto cheio de cicatrizes, um olho esbranquiçado que parecia a encarar . Não tinha a gentileza da primeira e nem o sorriso. Ficou em silêncio. Quem eram aquelas idosas?Summer não sabia.

Assim como não sabia quem ela era exatamente. Apenas sabia que era a guardiã das flores. Não poderia se afastar por muito tempo delas. Muitos se perguntavam o porque da beleza e resistência sobrenatural das rosas, beleza esta que atraia muitos turistas, fotógrafos, cineastas e pessoas a procura de lindos cenários para comercias. O segredo era ela. Entre outros poderes conseguia criar uma espécie de escudo invisível sobre as flores. A barreira não era contra humanos, mas os mantinha afastados delas sem que percebessem.

Os três pares de olhos observavam o que se desenrolava naquele local. O inverno estava chegando com muita força, logo viria a neve. Estavam filmando algo ou melhor encerrando. Com certeza não queriam está próximos quando o inverno realmente chegasse. Sabia o quanto ele era rigoroso. A menina se chamava Summer por causa do inverno. Para que pelo menos seu nome remetesse a quentura aconchegante do Sol em um local tão frio. As rosas gostavam de calor.

As câmeras e os outros equipamentos foram guardados para transporte, algumas peças do cenário começaram a serem desmontadas. Atores em grupinhos conversavam alegremente com figurantes boquiabertos por estarem perto das estrelas. Uma atriz se destacava. Sentava em uma cadeira e bebericava um chocolate quente. Estava perto do campo de rosas. Tentou arrancar uma das lindas flores vermelhas, mas não concluiu o ato. Não poderia. Sua mão parou no ar até se afastar lentamente. Depois voltou e apenas tocou nas lindas pétalas sorrindo.

Viu os dois diretores coordenando onde guardar os equipamentos. Tudo se passou de forma normal e alegre até que todos embarcaram em seus carros. A menina ouviu falarem em tom de alegria que voltariam na primavera. Um dos diretores entrou no carro segurando um celular e o outro entrou logo após. As duas idosas saíram do seu lado e pareciam prontas para segui-los. O que estava ocorrendo? Resolveu os seguir também, conseguia proteger as flores, talvez conseguisse os proteger. Tentaria. Era da natureza dela proteger coisas. Olhou para suas rosas pedindo autorização.

*

O inverno havia realmente chegado naquele local. A paisagem estava tomada pela neve que formava um tapete branco que cobria o que antes era grama. As árvores estavam sem folhas e um vento frio parecia anunciar que era melhor ir para casa tomar um chocolate quente e contar histórias perto da lareira quentinha. Parecia que muitas pessoas haviam atendido os conselhos do vento, pois a estrada se encontrava deserta. Dirigir sob essas condições se tornava ainda mais perigoso.

“E assim como a primavera chegou, crescemos

Só que eu nunca pedi para esse destino chegar...”

Havia um tom meio melancólico no carro. Seu amigo Mark estava mexendo no celular, sem dizer uma única palavra há um bom tempo. A música que ele escolheu também ajudou a intensificar o clima. A música tinha um tom de saudade e melancolia. Além de tudo havia o fato da estação. Caleb lembra que ouviu em algum lugar que as pessoas ficam mais deprimidas no inverno. Até os gatos tinham esse comportamento...

“Eu choro novamente”

-Posso mudar a música?-perguntou ao seu amigo e companheiro de trabalho. Ela parecia ficar mais triste a cada verso.

-Não, foi muito difícil encontrar essa música.- disse Mark ainda sem tirar os olhos do celular. Parecia bem entretido. Estranho. Não lembrava do amigo ser tão ligado no aparelho.

-Ela está me deixando deprimido. –confessou

-Você está deprimido porque temos que trabalhar novamente amanhã cedo.-disse Mark em tom de chacota, mas Caleb notou algo diferente em sua risada. Uma tristeza ou outra coisa escondida por baixo do tom divertido. Uma rachadura na falsa descontração deu seu amigo. Entendia bem disso. Lembrou de como a mãe escondia as rachaduras da parede com objetos e as da alma com maquiagem e falsos sorrisos. Lembrou das vezes que a viu tentar esconder as marcas roxas com maquiagem, mas mesmo com toneladas de pó e base ele via a rachadura por trás daquela aparente felicidade, assim como sabia da que tinha na parede da sala e era escondida por um retrato de família feliz.

“Enquanto por trás de um sorriso

Escondi minhas lágrimas”

O segredo são os olhos. Sorrisos não verdadeiros não chegam aos olhos. Ficam somente nos lábios. Sua mãe sorria enquanto sua alma chorava... Lágrimas se formaram em seus olhos. Sentiu saudade dela. Quando tempo fazia que não ligava para ela? Não conseguia lembrar direito... Ligaria ao chegar ao hotel. A saudade pareceu aumentar e teve uma sensação ainda mais estranha. Lembrou de pedaços de uma conversar não terminada com ela.

“Antes de eu notar

Já não podia mais falar”

-Você está bem? Quer que eu troque a música?

-Estou... Lembrei da minha mãe...Lembra que lhe falei daqueles episódios dolorosos no passado...-as palavras travaram na sua garganta. Estranho. Sempre falou sobre tudo com seu melhor amigo.

“Então vermelho, serei eu...”

-Oh... Lembro... Não sei nem o que falar, Caleb. -disse Mark tirando os olhos do aparelho pela primeira vez e lhe olhando. Caleb ao olhar para a tela do aparelho estranhou muito, pois ela estava como se estivesse quebrada de uma forma que não permitia usar o aparelho normalmente. Devia está imaginando coisas ou tinha alguma explicação lógica... Sua cabeça começou a doer.

“Que irá salvar esse futuro

De alguém que muito já sofreu...”

*

Summer seguiu seu plano de os ajudar. Estava no banco de trás do carro. Invisível. As duas idosas pareciam está acompanhando o carro a distancia. As via na beira da estrada como vultos que passavam junto com a paisagem. Sabia que os dois não a enxergavam. Principalmente o motorista que mal via a estrada.

Escutava a música de tom melancólico e por meio das conversas se sentia mais convencida a os ajudar.

-O que faz aqui criança?-disse a idosa gentil aparecendo de repente ao seu lado. Ela tinha uma das mãos fechadas- E as suas flores?

-Vou os proteger...

-Não seja boba, criança. Essa já é a minha missão. Protejo os viajantes da minha irmã. Uma criatura oportunista que tenta roubar a vida deles. Vou tentar salvar seus novos amigos também. Cada um tem sua missão. A sua é cuidar das suas flores.

-Elas estão bem, sei disso.

-Tem certeza, criança?–disse a senhora abrindo lentamente as mãos. Pétalas murchas de rosas se espalharam pelo local- Metade de suas flores murcharam, querida...

*

“Mesmo que seja insegura de mim

Nessa missão irei até o fim...”

-Você lembra da última vez que falei com minha mãe?- perguntou Caleb ignorando a tela do celular do amigo. Aquilo era mais urgente. Sentia isso dentro dele. Antes de ouvir a resposta do amigo ouviu um barulho bem suave de vidro trincando ao longe. O barulho lhe recordou de algo- Lembra-se porque saímos tão depois do resto da equipe?–o vidro trincando um pouco mais perto, a última pergunta saiu para complementar as outras -Como foram as gravações de hoje?

O barulho de vidro trincando ficou muito mais alto. A música parou, assim como o carro. Até o vento e o tempo pareceram parar para ver o que se seguiria.

-Eu... Eu não lembro de nada...- disse Mark nervoso ao seu lado. Agitado. Caleb viu o medo que ele tentava esconder. - O que está ocorrendo? Como era o nome do nosso filme, série, comercial ou qualquer coisa que estávamos filmando?- seu amigo abriu a porta do carro e desceu, Caleb tentou o impedir, mas falhou, acabou descendo atrás dele. Era uma coisa muito estranha. Na mente dele existiam somente ele, sua mãe, seu amigo e lembranças de uma conversa não acabada...

Os flocos de neve caiam suavemente. Haviam descido do carro no meio do nada, em um frio rigoroso, perto de uma floresta que mais parecia cenário de filme de suspense e não sentiam medo. Era como se estivessem esperando algo. Mas o que seria exatamente?

-Não sei...- disse Caleb segurando sua cabeça que doía um pouco mais.- Realmente não sei. Apenas quero que isso acabe.- sua voz era mais baixa que o vento.

-Caleb?-Mark lhe chamou, estava com o olhar vago. Havia dor na voz dele. Como alguém que está com um machucado que somente ele sabe que existe. Como quem descobre que a verdade pode ser dolorosa e não sabe bem o que sentir... – Caleb?

-Sim?-com medo do que viria a seguir. Lembrou novamente da mãe. Da dor que sentiu ao descobrir a verdade por trás dos hematomas. Tinha medo.- O que foi?

-Lembra quando começou a nevar?-perguntou Mark

O ruído mais alto. Caleb levou as mãos aos ouvidos e caiu de joelhos. Tudo pareceu balançar e a ficar turvo. Fechou os seus olhos esperando melhorar. Sentiu tudo apagar.

Tentou entender o que estava ocorrendo.Meio tonto e com a visão duplicada tentava se levantar. Ao olhar ao redor percebeu algo que o assustou.

- Mark? Mark!- gritou Caleb chamando o amigo que havia sumido. Não poderia o perder naquele lugar assustador. Estava sozinho na neve.

“Então, acredite em mim

Vou lhes dar abrigo”

Ouviu uma canção vim da floresta. Era a voz da sua mãe que entoava a música. Correu em sua direção se esquecendo momentaneamente do amigo.Aquela floresta dava arrepios, mas estava tão focado na voz que nem ligou. A medida que corria parecia clarear. Encontrou sua mãe e seu amigo. Ficou paralisado.

A aparência deles era assustadora. Sua mãe estava com um vestido preto e em suas mãos segurava um buquê de flores murchas. Mas quem assustava mais era Mark. Seu amigo estava com a cabeça enfaixada com ataduras ensopadas de sangue e as roupas cheias de sangue seco e terra. Lhe olhava melancólico.

-Acho que nunca terminaremos a nossa conversa, filho.- disse sua mãe com dor na voz sem o olhar nos olhos. Olhava para as flores. –Sinto muito.-falou e sua presença foi sumindo junto com as palavras. Tentou a tocar, mas foi como tentar pegar o vento. Lágrimas vieram sem serem convidadas.

-Veja como fiquei... -falou Mark meio triste - O acidente foi sua culpa...

- Do que está falando? Que acidente? Quem lhe machucou?- disse recuando alguns passos para trás. Sentiu seu corpo se chocar com outro corpo. Se virou lentamente e viu seu padrasto lhe sorrindo cruelmente. Ficou sem reação. Aquilo não podia ser real! Devia ser um pesadelo!

-Está na hora de lembrar do que esqueceu.- disse a criatura que dizia ser Mark lhe agarrando pelo pulso. Uma série de imagens se passou por sua mente. Ele subindo no carro com o celular na mão. Falava com sua mãe por um aplicativo de mensagens e depois por meio de uma ligação. Mark colocando aquela música que parecia anunciar algo. O alerta para que prestasse atenção. Sua mãe relembrando os dias difíceis na mão do padrasto dele e dizendo que o inverno a deixava deprimida por lembrar dos episódios triste. A curva fechada. A menina de vermelho que viu pelo retrovisor segundos antes da batida nas árvores.

-Eu sinto muito, Mark. Era muito importante falar com minha mãe naquele momento... Eu... Mark, cadê o Mark?- gritou ao ver que quem segurava seu braço não era seu amigo, mas uma idosa com o rosto cheio de cicatrizes. Um de seus olhos era totalmente branco e parecia ter um certo brilho. Sua boca parecia mais torta para um lado. Não conseguia a encarar por muito tempo devido a sua aparência, mas um vislumbre de seu olhar o surpreendeu. Ela estaria sentindo pena dele? Tinham crocodilos que choravam antes de devorar suas vítimas...

Tentou lutar, mas lutar porque? Havia provavelmente os matado naquele acidente... Por culpa dele foram parar naquele mundo com aquela criatura. Se ao menos ainda tivesse Mark, mas aquela figura assustadora havia feito algo com ele. Estava sozinho e pior de tudo havia deixado sua mãe sozinha... Seu irmão Karl sozinho... Mas não queria lutar. Se seu amigo que era inocente na história sofreu nas mãos daquela criatura ele merecia o mesmo.

- Me dê a mão!- uma idosa com aparência de avó gentil lhe estendeu a mão em tom de desespero e depois gritando para a outra- O solte! Você não pode o obrigar a ir com você! Nenhuma de nós pode!

-Não!

- Sua mãe precisa de você! Se você for com minha irmã nunca mais vai a ver. Ela quer a sua vida! Pense na sua carreira também! Ainda tem muito o que viver, rapaz! Venha!

-Então você é a morte?- perguntou Caleb olhando no fundo dos olhos da idosa com as cicatrizes. Queria ter a confirmação. Dizem que a morte é uma dura verdade, talvez por isso a aparência dela... Uma lágrima escorria pela sua bochecha. Não podia viver sabendo que provocou a morte de seu amigo. Não podia continuar sua carreira sabendo que acabou com a de Mark- A senhora levou meu amigo?

A idosa concordou com a cabeça. Caleb não sabe se foi para a primeira pergunta, para a segunda ou para ambas. Mas foi o suficiente. Estendeu a sua mão.

*

Abriu os olhos. A cabeça doía... Tudo estava confuso e turvo... Estava em uma cama...Seria um hospital? Mark, onde estava? Tentou falar,porém não tinha forças. Sentia que seu pescoço estava imobilizado.

-Mark... Onde...Está, Mark?-perguntou com dificuldade quando teve forças.

-Caleb?- ouviu a voz do amigo. Estava vivo. Era tudo que precisava ouvir... Sentiu a mão dele tocar na sua. As camas estavam bem próximas, provavelmente a pedido de Mark.

*

Summer se jogou no chão logo que chegou no campo. Ficou recarregando suas forças nas rosas. A energia delas ia para ela na forma de um vapor rosado. Estava cansada. Doou sua força para manter Mark e Caleb instáveis após o acidente, principalmente Caleb, que ficou mais ferido. Ficou próxima até o socorro chegar.

Depois de tudo não chegou a conclusão de quem eram aquelas mulheres idosas, mas tinha suas suspeitas. Sabia que uma havia mentido para ela. Nenhuma de suas rosas havia murchado devido a sua ausência. Sobre o que mais teria mentido? Não importava mais...

Jogou o que sobrou do celular de Caleb longe. Ninguém precisava saber o que provocou o acidente... Seria o segredo deles. Os primeiros flocos de neve começaram a cair sobre o aparelho. Logo o cobririam. Seria um inverno muito rigoroso, mas passaria... Esperaria a primavera para ver Mark e Caleb novamente.

Temas: Inverno

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 26/11/2017
Reeditado em 22/07/2020
Código do texto: T6182894
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