A Vó Abigail

Isso aconteceu em 1982. Fazia um tempo já que não via minha avó por parte de mãe. Infelizmente, por conta do trabalho de meu pai, tivemos de nos mudar para a cidade à alguns meses. Eu sempre odiei ficar longe da minha avó. Era um saco. Ela que sempre me dava conselhos amorosos, e sempre me dizia que eu era jovem demais para me importar tanto com garotas, embora eu já tivesse 16 anos.

Foi ela quem me ensinou a tirar leite de vaca quando eu era pequeno, me ensinou a colher dos melhores frutos, me mostrava as músicas clássicas que ela e meu avô costumavam a dançar, quando ele era vivo. Eu nem conheci o meu vô. Enfim, ela me ensinou muita coisa, e foi bem difícil se conformar de que eu teria que me mudar do interior, foi difícil de ambos aceitarem. Aquela época foi bem conturbada, minha avó cismou de que minha mãe queria me tirar dela, e coisa e tal. Mas depois se acertaram. Bom, mas isso não importa muito. O que importa é que eu sentia muita saudade, e meus pais nunca tinham tempo de ir para o interior, a vida na cidade sempre foi corrida, mesmo antigamente, e eles não me deixavam ir sozinho.

Lembro-me que acordei certo dia 5h da manhã, eu tinha que levantar pra ir pra aula às 6h e fiquei sem sono. Já não tinha dormido direito naquela noite e resolvi faltar. Minha mãe deixou. Sim, minha mãe. Meu pai não era muito de dar palpite em nada, ele apenas concordava com qualquer decisão que minha mãe tomasse. Tinha prova de matemática naquele dia, eu odeio matemática. Eu faria outro dia, dane-se. Minha mãe tinha deixado eu faltar, tava tudo certo.

Eram 10h da manhã já, estava chuviscando, e eu ali jogado no sofá, assistindo E. T. – O Extraterrestre. Sempre gostei daquele filme. Tudo parecia normal, eu estava relaxado e quase pegando no sono, mesmo com a televisão ligada, quando ouvi o som da vitrola no andar de baixo, tocando bem alto. Estava tocando música clássica, a favorita da vovó. Aquilo não fez sentido. Levantei-me do sofá e fui pelo corredor em direção às escadas, e vi lá da ponta da escada, que a porta da casa estava aberta no andar de baixo, com uma ventania surreal. Saí correndo e fui fechar, quando me virei, vi minha vó mais pros fundos da casa, na sala de visitas, em frente à vitrola, olhando toda a casa super encantada, percebendo todos os detalhes, segurando um dos porta-retratos de família.

“Vó!” – Falei com um tom surpreso, e muito alegre.

“Meu neto querido!” -- Ela me olhou e abriu um sorriso, vindo em minha direção, abandonando o porta-retrato de volta no móvel, enquanto a música tocava. Apesar de estar alegre, mal a reconhecia, estava com um semblante de cansaço, acho que era a velhice. Poxa, fazia tempo mesmo que eu não a via.

“Vó, o que está fazendo aqui? Que surpresa ótima! Como veio? Quem te trouxe?” – perguntei ainda um pouco inconformado.

“Ora, se Maomé não vai á montanha, a montanha vai até Maomé, filho!” – ela respondeu, com tom de deboche. Dei risada e logo coloquei minhas mãos em suas costas a apressando para ir à cozinha. Enquanto ela se sentava na mesa, desliguei a vitrola. – “Senti muita saudade.” – continuou.

“Sim vovó, senti saudades demais.” – fiz uma pausa para olhar bem para o hematoma em sua cabeça, os cabelos brancos não disfarçavam muito. – “Vó, mas, o que é isso na sua testa?”

“No caminho o táxi bateu em um poste, e bati a cabeça no parabrisa do carro, mas estou bem. Estava perto e vim andando o resto do caminho, o motorista me guiou até aqui e ficou esperando o guincho.” – ela me respondeu colocando a mão no machucado que estava fresco. Dei um pouco de gelo para ela. Fiquei preocupado mas ela parecia realmente ótima.

Jogamos conversa fora o dia todo, ela me disse o quanto sentia falta da minha companhia, que se sentia muito sozinha, e essas coisas que toda vó fala. Depois da tarde toda conversando, ela se despediu e disse que estava na hora de ir. Eu insisti para levá-la embora, pelo menos até a rodoviária, mas ela disse que preferia ir sozinha. Foi aí que ela disse:

“Te amarei aonde quer que eu esteja, filho.” -- Me emocionei, mas prometi que a visitaria mais vezes.

Ela saiu pela porta e senti um peso enorme no peito ao fechá-la. Deu vontade de dar um último abraço. Abri a porta rapidamente, mas não a avistei mais. Fui para fora de casa olhando para todos os lados, mas ela realmente tinha desaparecido.

Umas 17h, ela tinha acabado de ir embora quando meus pais chegaram desesperados, minha mãe aos prantos, com a maquiagem bem borrada, eu sem entender nada. Ela dizia várias frases se lamentando, das quais não me recordo mais, e meu pai tentava acalmá-la, mas não continha o choro também.

Tinham carros de polícia e de bombeiros perto de casa. Um acidente envolvendo o motorista e uma passageira idosa num táxi por volta das 9h da manhã havia acontecido. Nem a senhora, nem o taxista sobreviveram ao impacto.

Juliana Anselmo Fernandes
Enviado por Juliana Anselmo Fernandes em 22/11/2017
Reeditado em 22/11/2017
Código do texto: T6179336
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