As duas mortes de Amanda

Não sei bem como aconteceu, mas lembro-me de ter caído em um buraco, muito fundo, escuro e molhado. Um cheiro horrível de carniça passeava pelo meu cérebro, então vomitei. Quando meus olhos acostumaram-se com a escuridão, vi que minhas mãos estavam cheias de sangue. Não era meu. Tinha certeza, não havia me machucado. Apalpei ao meu redor e pude sentir vários ossos e pedaços de carne, que com certeza estavam em avançado estágio de putrefação. Vomitei novamente.

Gritei. Gritei até quase partir minhas cordas vocais. Não sei quanto tempo passei lá, só sei que em certo momento, comecei a ouvir resmungos, sons guturais e gritos. Não sabia de onde vinham, não parecia ser lá do alto. Senti que as vozes se aproximavam lentamente. Urros de desespero, gritos de pavor. Estavam tão perto de mim que pude sentir seu hálito em meu rosto, meu coração disparou e um medo absurdo tomou conta de mim. Fiquei paralisada de terror. Meu rosto queimou com um violento tapa que recebi. Fui agarrada e jogada com força contra uma superfície dura e plana. Mãos me apalpavam e me enrolavam em uma espécie de casulo molhado e gelado. Meu corpo todo foi fortemente enfaixado, ficando só meu rosto livre. Tentei me debater, mas estava bem presa. Só podia gritar e gritei, muito.

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O dia havia sido corrido e agitado, os enfermeiros tiveram que conter uma briga, daquelas bem feias, com socos e chutes, mordidas e arranhões. Muito nariz sangrando, lábios inchados, braços e pernas com mordidas tão profundas que quase chegavam ao osso. Quase todas as internas da ala oeste estavam em seus casulos, lençóis molhados envolvendo o corpo todo. Medidas básicas para acalmar e fazer voltar à realidade.

Tudo havia começado por culpa de Amanda, novamente. Era a terceira vez só naquela semana. Seus gritos histéricos, sem razão aparente, colocava as internas em polvorosa, dando início ao caos total. Parecia que todas as mulheres temiam Amanda, uma jovem esquizofrênica que fora largada no hospital ainda no começo da adolescência e tinha o poder de despertar o pior em cada paciente e funcionário.

Seu olhar perdido, uma vez posto sobre alguém, podia transtornar até a mais pacífica e controlada mente. Seu rosto era cheio de cicatrizes e escoriações. Nem um centímetro de seu corpo era livre de machucados, vários deles inexplicáveis.

Tudo em suas mãos virava uma arma em potencial, que usava para ferir a si mesma e aos outros. Seus delírios eram constantes, com raros momentos de consciência. Não recebia visitas e os funcionários não sabiam nada sobre ela. Todos eram relativamente novos no hospital, nunca ficavam muito tempo, para preservar suas próprias sanidades mentais.

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Fazia um tempo que tudo era escuridão. As trevas eram espessas e oprimiam minha respiração, as vozes zombavam de mim. Não me importava mais. O que me incomodava muito era o constante cheiro de carne podre. Não sabia onde estava, só queria que o peso sobre o meu corpo saísse. Mãos deslizavam por minha pele, ora acariciando, ora arranhando. Me sentia sufocando. Minhas pernas foram amarradas separadas uma da outra e senti uma dor aguda entrando e saindo do meu corpo. Dentes ávidos mordiam meu peito, não conseguia gritar, minha boca estava cheia com um pedaço de pano sujo. Os sons brilhavam em minha mente, os gemidos pareciam fogos de artifício explodindo, os gritos riscavam a escuridão como relâmpagos. Depois de algum tempo o peso saiu e eu pude respirar. Meu corpo ardia. Minha mente gritava, me sentia impotente e miserável, mas a escuridão me embalou em seu abraço frio e adormeci.

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Quase ninguém reparou no enfermeiro enorme que saía da sala de contenção, lugar onde mantinham as internas em delírios com potencial para violência presas no escuro absoluto, amarradas e sedadas. Saiu fechando o zíper da calça do uniforme branco. Um sorriso asqueroso nos lábios.

-Estava com a Amanda? - Disse Félix, que estava encostado no final do corredor, com os braços cruzados.

-Que susto! O que está fazendo parado aí no escuro?

-Esperando você. Já disse mil vezes pra deixar a moça em paz. - Disse se aproximando lentamente.

-Como se você não tivesse se aproveitado dela também. - Disse torcendo para estar certo.

-Eu devia te denunciar…

-Mas não vai, ninguém quer esse serviço de merda, se eu sair você vai ter que cuidar delas sozinho… Eu só estou pegando uma recompensa justa por todo o trabalho que aquela pirada me dá. Você deveria fazer o mesmo.

-Não sou como você, a sua doença é pior que a delas.

Félix detestava o colega cada dia mais, estava dando corda para ele mesmo se enforcar. Não via a hora desse dia chegar. Mas enquanto não chegava, teria que tomar muito cuidado com ele.

Fazia quase um ano que Félix trabalhava no hospital, sempre que podia, protegia Amanda. Nunca esqueceria a primeira vez que a viu, de pé no meio do corredor, camisola do hospital, cabelo solto, comprido e emaranhado, olhos castanhos, vidrados, pareciam enxergar o que se passava do lado de dentro. Seus lábios se mexiam, mas não saía nenhum som, pareciam presos em um mantra mudo.

Quando aceitou o emprego no hospital, estava passando por graves problemas financeiros e consequentemente matrimoniais, nunca pensou que encontraria na desgraça alheia a força para cuidar de seus próprios problemas. Aquelas internas tinham lhe ensinado a ser grato pelo que tinha, nunca reclamar de sua sorte e usar a saúde e energia para melhorar sua vida e de sua família. Amanda era especial para ele, alguém que ele queria ajudar, de alguma forma. Ela inspirava tanto o horror pela sua situação, como a piedade e o instinto de proteção.

Quando ficou sozinho, foi ver como Amanda estava, ela sempre ficava agitada e hostil depois dessas visitas.

Abriu a porta devagar, demorou para seus olhos se acostumarem com a escuridão, mesmo com a parca claridade que entrava pela porta, mal deu para distinguir que a cama estava vazia, alarmado ligou a lanterna e entrou no quarto. Pode ver que as correias que serviam para amarrar as pacientes na cama estavam cheias de marcas de mordidas, rasgadas e cobertas de sangue. Antes que pudesse ter alguma reação sentiu que alguém o enforcava por trás com um tecido, a lanterna caiu, suas mãos agarraram o tecido que se apertava cada vez mais e com toda a força tentava se livrar. Jogou todo o peso do corpo sobre ela e os dois caíram no chão, aliviando assim a pressão no pescoço. Levantou ainda sem ar e correu até a porta, saiu e fechou atrás de si. Encostou-se na parede e respirou profundamente, levando a mão ao pescoço. Essa tinha sido por pouco. Teria que voltar lá, dessa vez com ajuda. Esperaria o turno da manhã.

A manhã chegou rápida, trazendo os funcionários do dia, entre eles Renata, uma enfermeira recém contratada, que diferente da maioria parecia estar realmente interessada no bem estar das internas. Félix pediu sua ajuda e os dois foram até o quarto de contenção. Seringa com tranquilizante e material para curativos foram levados até o quarto. Félix abriu a porta lentamente e acendeu as luzes, logo viram Amanda agachada no chão, completamente catatônica. Não precisaram do tranquilizante.

Estava nua, sua camisola, enrolada como uma corda jazia no chão, no mesmo lugar onde havia caído na noite anterior. Seus pulsos estavam com feridas abertas, embora superficiais, as mordidas dilaceraram a pele e o sangue já havia coagulado. Renata fez os curativos com extrema delicadeza, sentia-se atraída por essa interna, queria saber sua história, tão jovem e tão abandonada, uma alma tão sofrida em um corpo tão debilitado.

-O que você sabe sobre ela? - Perguntou, tentando disfarçar um pouco a curiosidade.

- Nada. Sempre teve uma aura de mistério sobre e la. Até já perguntei para o Diretor e ele desconversou, mudou de assunto…

-Ela não tem familiar nenhum?

-Desde que estou aqui nunca vieram fazer uma visita.

Renata pensou em que tipo de pais deixariam uma moça tão jovem ainda, com uma doença mental grave, abandonada.

Pensou em seus pais, sempre super protetores. Lembrou como ficaram horrorizados quando souberam que sua única filha trabalharia no pior hospital psiquiátrico do país. Tentaram de tudo para tirar essa ideia de sua cabeça, mas ela estava decidida. Queria testar os seus limites, ver sua capacidade e principalmente fazer a diferença na vida daquelas pobres criaturas. Era jovem e curiosa, se metia em tudo e usava o idealismo utópico de sua profissão para tentar mudar o mundo.

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A escuridão que me abraçava apertado foi cedendo, foi clareando, virando névoa, me permitindo enxergar o mundo novamente, as cores e os sons dançavam em minha mente, meus braços e pernas começaram a formigar, estava voltando a senti-los. Estava sentada em uma cadeira desconfortável, meu corpo todo doía, mas principalmente meus pulsos, olhei para eles e estavam enfaixados, tentei me lembrar o que tinha acontecido mas não consegui. Olhei em volta e percebi que estava no hospital. O desespero e a culpa, meus amigos inseparáveis, se fizeram sentir. Mais uma vez estava desperta nesse mundo de horror, preferia estar delirando.

Vultos começaram a tomar forma perto de mim, notei as pacientes, cada uma com um rosto, mas todas com o mesmo semblante de dor e alienação.

Senti fome, uma fome dolorida e urgente, parecia que não comia a dias.

Ensaiei me mexer, só um pouco, mas todo o meu corpo doía, tentei falar, mas minha garganta parecia inflamada, e sons roucos saíram flutuantes.

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Renata corria por todo o hospital desde que chegara, o trabalho era intenso e excessivo e os funcionários eram poucos. Ela sempre pedia a Deus que não houvesse nenhuma crise em seus turnos, mas ultimamente as crises eram tão comuns que ela estava começando a se acostumar.

Entre uma tarefa e outra, Renata notou que Amanda estava diferente, ainda sentada na mesma cadeira em que havia sido colocada, mas olhava ao redor, parecia querer se comunicar.

Desde que chegara ao hospital, nunca presenciara a interna em seus raros momentos de semi lucidez, então curiosa, foi até ela.

O olhar de Amanda era profundo e perturbador, parecia ler as profundezas da alma de Renata.

-Me ajude! - Disse com voz cavernosa.

-Do que você precisa?

-Sede… fome…

Depois de providenciar água e uma boa refeição, que Amanda comeu avidamente e em silêncio, Renata tentou puxar conversa, mas ela só se desculpava, com angústia nos olhos e medo na face.

Tentou de tudo para estabelecer uma ligação com a interna, mas ela parecia inalcançável, perdida dentro de si mesma e dentro de lembranças dolorosas demais.

****

Eu conseguia ouvir o que a enfermeira falava, mas não entendia completamente, eram perguntas demais. Para quê? Não iria mudar nada. Nada poderia ser mudado. Nunca. Era assim. Eu sou esse monstro. Eu até tento me controlar, quando posso, mas é em vão, é mais forte que eu.

Depois de alguns dias de névoa fraca, senti que a escuridão começava a se adensar, logo me tomaria completamente. Era minha última chance de matar o monstro. Notei um enfermeiro que emanava maldade, só de olhar para ele sabia que já havia me machucado, talvez mais do que isso, tinha certeza que era dele uma das vozes que mais me assombravam dentro da escuridão . Já fazia um bom tempo que eu planejava me livrar desse monstro, mas nunca tinha oportunidade, mas quem sabe, logo seria o nosso fim...

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O fogo começou misteriosamente na ala oeste, ninguém viu nada até ser tarde demais, o único a presenciar o acidente e sair praticamente ileso foi Félix, mas não conseguia colocar em palavras o que havia visto. Todas as internas e o outro enfermeiro noturno haviam morrido. A ala oeste estava silenciosa e em paz, pela primeira vez desde que havia sido construída.

Félix nunca mais foi o mesmo, cenas de puro horror estavam gravadas em suas retinas para sempre. A última coisa de que se lembrava era o olhar de Amanda, nunca parecera tão lúcido e vivo. Ainda podia ouvir os gritos de pânico e os pedidos de ajuda, mas a voz dela abafava tudo isso.

Eu sinto muito, diga a ela que sinto muito mesmo. Agora foge daqui!

Ela o havia salvado. Empurrando-o para fora do prédio e trancando a porta por dentro. Como? Ele não tinha certeza. Só sabia que de alguma forma Amanda fizera o colega de refém e havia usado sua chave.

Renata chorou vários dias por suas pacientes, sentia-se no fundo muito grata por tudo ter acontecido fora de seu turno. Se preocupava especialmente com Félix, ele não estava muito bem, ele se culpava por não ter podido salvá-las, por não ter impedido Amanda, por não ter morrido junto com elas. Parecia obcecado em encontrar a família de Amanda. Dizia que precisava passar um recado. Prometeu ajudá-lo.

Depois de várias investigações Renata conseguiu achar a família de Amanda e foi dar a notícia de sua morte. A casa era nova e ficava em um bairro afastado, tinha um jardim na frente e janelas abertas mostrando cortinas de renda branca. Casa pequena e confortável. Dona Neusa, uma senhora de meia idade abriu a porta um tanto desconfiada. Parecia muito mais velha do que era na realidade e aparentava carregar todo o sofrimento do mundo. Ouviu a notícia sem se abalar, agradeceu e já ia fechando a porta quando Renata perguntou:

-Porque a senhora nunca foi visitar sua filha? Ela foi enterrada como indigente no cemitério do hospital...

A mulher ficou pensativa por alguns segundos mas acabou convidando Renata para entrar, preparou um café e serviu ambas antes de responder a pergunta.

-Para mim, minha filha morreu muitos anos atrás. A Amanda que eu coloquei no mundo, que eu criei com amor e carinho, que eu vi crescer não existia mais.

Bebeu um gole de café e mergulhou nas lembranças.

-Amanda tinha quinze anos naquela época e era uma menina doce, meiga, ingênua e quieta, agora percebo que ela era quieta demais, introvertida e contemplativa demais. Guilherme, o irmão de Amanda, tinha apenas cinco anos e os dois se davam muito bem. Ele era esperto e sorridente, tinha os cabelos lisos, castanhos claros, como os de Amanda e olhinhos bondosos que piscavam muito quando estava animado. Vivia cantando e correndo pela casa, era meu anjo.

Limpou uma lágrima que escorria até seu queixo. Renata bebia seu café, constrangida, mas atenta a cada palavra.

-Minha mãe ficou doente e precisou ser internada em outra cidade e eu deixei Amanda tomando conta dele e fiquei com ela até que se recuperasse, foram uns quinze dias, mais ou menos…

Respirou fundo, como se as lembranças a deixassem nauseada. Fez uma pausa longa demais, mas continuou:

-Quando voltei para casa, encontrei tudo fechado, cada janela e cada porta, tudo trancado. Até achei que eles haviam saído… eu estava com tanta saudade deles, principalmente do meu filhinho, nunca tinha ficado tanto tempo longe dele. Abri a porta e um cheiro horrível quase me derrubou. Na mesma hora soube que uma tragédia havia acontecido. Entrei correndo e vi que havia vômito com sangue e pedaços de carne podre por todo lado. Cheguei na cozinha e vi meu menininho, meu anjinho, apodrecendo em cima da mesa de jantar, seu corpo estava todo cheio de mordidas profundas e arranhões, cortes e escoriações…

Fechou os olhos e tentou se acalmar, estava decidida a contar toda a história.

-Imaginei que Amanda havia tido o mesmo fim que ele, e desesperada procurei em cada cômodo da casa, até entrar em seu quarto e ver que ela estava deitada no chão, em posição fetal, com a roupa, as mãos e a boca cobertas de sangue seco. Seu olhar estava parado, mas ela não parava de dizer: “me desculpe, eu sinto muito”

Renata já havia se arrependido de ter se metido nessa história. Era terrível demais. Não sabia o que dizer, nem o que fazer, desejou que não tivesse tomado todo café tão rápido.

-Naquela hora, para poder sobreviver, eu entendi que um monstro havia matado meus dois filhos enquanto eu estava fora. E foi assim que eu enterrei os dois no cemitério da cidade, ao lado do pai deles e coloquei aquele monstro no seu hospital. Fico feliz que ele também esteja morto, afinal.

-Desculpe perguntar isso, mas havia histórico de doenças mentais na sua família?

-Na minha parte da família não, mas meu marido sempre foi um mistério. Não conheci sua família, ele não gostava de falar sobre eles, pensei que haviam se desentendido e nunca mais perguntei nada. Morreu ainda novo, assim que meu filho nasceu.

-Morreu do que? - Renata sentia que Dona Neusa estava escondendo alguma coisa.

Depois de encarar a enfermeira por alguns inquietantes segundos, ela respondeu, resignada:

-Se enforcou na garagem.

Renata saiu de lá arrasada. Nenhuma mãe deveria passar pelo que aquela mãe havia passado. Não julgava mais. Percebeu que todos tinham seus motivos para tudo, mesmo que não fosse a coisa certa a se fazer. Agora só precisava contar tudo ao Félix e deixar que ele encontrasse forças para enterrar o passado e se concentrar no futuro.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 19/11/2017
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