O destino e Sodoma
Sei que dormi – e não foi pouco.
Passei do ponto.
Deveria descer em Pouso Alegre; mas, dei em Sodoma.
O engraçado é que eu nem sabia que existia uma cidade chamada Sodoma no sul de Minas.
O motorista do Gardênia pediu-me para descer e nem adiantou mostrar o bilhete de passagem dizendo que o meu destino era Pouso Alegre.
— Sou pago para dirigir, nada tenho com o seu destino! Ou desce, ou paga uma passagem para voltar.
Voltar não era do meu interesse. Ora, se saí, não era para voltar.
Desembarquei em Sodoma.
Andei por uma rua de pedra e notei algo que estremeceu a minha alma:
Sodoma não tinha igreja.
Ergui o pescoço para encontrar alguma torre e nada vi além de telhados vermelhos.
Olhei para trás e vi, maravilhado, que mais de cem cachorros me seguiam, todos vira-lata.
Ajoelhei-me para acariciar o focinho de um. Ele latiu e avançou furioso para me morder e os outros cachorros começaram a latir e a rosnar.
Tive de correr. Fugi.
Vi uma porta aberta e entrei.
— Algum problema? – perguntou o sujeito atrás do balcão.
O meu refúgio era um bar e uma das mesas estava ocupada por belas mulheres que bebiam cerveja.
— Esses cachorros queriam me comer vivo.
— Ah, um forasteiro! – exclamou uma das belas mulheres.
— Os cachorros não gostam de forasteiros – explicou o sujeito atrás do balcão.
— Venha, sente-se conosco, molhe a garganta com cerveja – disse uma das belas mulheres.
Sentei-me na mesa com as belas mulheres e molhei a garganta com cerveja.
Bebíamos e eu contava piadas. Elas davam risadas altas e eu falava mais alto. Depois, subi na mesa. Fiz imitações de animais. O teto começou a rodar e o sujeito atrás do balcão disse que me levaria para um quarto que havia no andar de cima.
Lembro-me de cenas borradas das mulheres me arrastando por um corredor.
Lembro-me do vômito.
Lembro-me das belas mulheres me prendendo em uma cama de ferro.
E antes de apagar por completo, aproveitei o pouco do que me restava de lucidez e comentei, entre soluços:
— Essa cama é muito pequena. Parece cama de criança. Meus pés estão pra fora da cama. Eu quero uma cama maior.
E apaguei.
Quando acordei, com a cabeça inchada e a boca seca e os olhos ardentes, não senti meus pés para fora da cama.
Eu estava tão bêbado que pensei que a cama era pequena, mas não era pequena.
Ao levantar-me, a minha perna não encontrou apoio no chão. Olhei para baixo e vi que me faltava um pé. Da outra perna também.
Minhas pernas haviam sido cortadas na altura do meio do tornozelo, exatamente para ficarem do tamanho certo da cama.
Rastejei-me até o andar debaixo e gritei com o sujeito atrás do balcão.
Ele não me deu atenção.
Rastejei até a mesa onde as belas mulheres bebiam.
— Sai daqui, seu cachorro imundo! – uma delas gritou.
O sujeito atrás do balcão veio com uma vassoura e me tocou para fora do bar.
Lá fora, deparei-me com os cem cachorros que queriam me morder.
Fechei os olhos e esperei pela primeira mordida.
Nenhum cachorro me mordeu. Não ouvi nenhum rosnado.
Abri os olhos e vi que os cachorros tinham pena de mim e eu também senti pena deles, de todos eles.
Quando chega um forasteiro desavisado em Sodoma, tentamos alertá-lo do perigo da cidade, alguns fogem para longe e outros vão para o bar – depende do destino.