O morto que quase estragou o velório
Estava tudo nos conformes:
Um pingo de familiares sentado em volta do caixão.
Lá fora do velório municipal, amigos falando sobre futebol e política.
Dentro, só cochichos.
Seu Lazinho, o velhinho dentro do caixão, coberto por pétalas, algodão nas narinas, bem vestido em um terno, nada fazia.
Era um bom velório até que...
— Que diabos estou fazendo aqui? – perguntou Seu Lazinho, o defunto, ou o que era para ser o defunto.
Espanto geral.
“Ele acordou?”
“Mas ele não morreu?”
“Será um milagre?”
“Por minha Santa Mãezinha”.
Um dos filhos do defunto, que já não era mais defunto, reclamou:
— Poxa, viajei mais de duzentos quilômetros para chegar a tempo do enterro!
Passado o susto, foram buscar o médico que havia dado a certidão de óbito.
Enquanto o médico não chegava, Seu Lazinho permanecia dentro do caixão.
Ninguém lhe dirigia a palavra. Nem mesmo lhe olhavam. Nem mesmo a filhinha caçula que era o seu xodó.
— Lurdinha, o que eu estou fazendo aqui? Quero voltar pra casa! Por que ninguém fala comigo? Rogério, é seu pai! Me tire daqui! Por acaso isso seria uma brincadeira? Mas meu aniversário de 90 anos é só na semana que vem!
Impaciente, Seu Lazinho fez menção de sair do caixão; mas o médico já entrava no velório municipal.
— O que o senhor pensa que está fazendo vivo? – perguntou o médico.
— E quem disse que eu morri?
O doutor sacou um papel.
— Consta no seu atestado de óbito que o senhor morreu hoje de manhã. Falha geral dos órgãos. Eu mesmo verifiquei a sua morte e eu mesmo assinei o seu óbito. Olhe aqui a minha assinatura e o meu carimbinho!
O doutor entregou o papel para Seu Lazinho. Ele conferiu a assinatura.
Depois,o velho argumentou:
— Como vê, estou bem vivo, doutor! E até me sinto bem!
Lurdinha, a filhinha caçula, comentou baixinho com quem estava do lado:
— Paguei dois mil reais na funerária, vê se pode!
Lá fora, o comentário geral era:
“Não vai ter enterro!? Pedi licença no serviço só para ver o enterro. Isso não está certo!”
O filho mais velho de Seu Lazinho, o Rogério, comentou baixinho com a esposa:
— E pensar que já paguei o advogado para fazer o inventário.
De repente, houve silêncio, e Seu Lazinho sorriu e proclamou:
— Gente, será que vocês não percebem que estou vivo!
Foi Lurdinha que respondeu em tom de pito:
— Mas era para o senhor estar morto, papai. Aliás, o atestado do médico diz que o senhor está morto! Então, comporte-se como tal e fique bem quietinho.
— Lurdinha! – exclamou Seu Lazinho, ofendido.
— É isso mesmo, papai – fez coro Rogério – o senhor está sendo um morto muito mal comportado. Mal educado, eu diria. Ora essa, toda essa gente veio aqui lhe prestar as últimas homenagens e o senhor fica aí tagarelando como se vivo estivesse. Não vê que está estragando o seu próprio velório? Mais respeito, papai. Deite-se aí e fique caladinho e de olhinhos fechados. E arrume esse cabelo, pois o senhor irá se encontrar com mamãe mais tarde.
Seu Lazinho soltou um suspiro. Resignou-se.
— Se tem que ser assim...
Deitou-se no caixão, colocou as mãos sobre o peito e fechou os olhos.
Vez ou outra, dizia baixinho:
— Tenho sede.
Alguém lhe assoprava perto do ouvido.
— Psiu! Mortos não sentem sede.
Às cinco horas, o féretro saiu do velório municipal e foi para o cemitério.
Enquanto o padre encomendava a alma de Seu Lazinho, ouviu-se um “ATCHIM” de dentro do caixão.
Todo mundo fez que não ouviu – afinal, mortos também não espirram.