23h09

A garota estava sentada em sua cama, sozinha, lendo um de seus romances favoritos, tarde da noite. Lá fora, a chuva forte fazia um barulho gostoso de se ouvir sob um edredom bem quentinho. Entre um bocado e outro de pipoca, sentiu seu celular vibrar e emitir um abafado toque por entre as cobertas. Reconheceu o toque personalizado do Whatsapp que programara para as mensagens recebidas do seu noivo. Colocou o livro de lado e logo tratou de checar o que ele escrevera. Assim que destravou a tela, um susto: um forte raio estrondou na vizinhança, derrubando a energia. Com os olhos arregalados, encolheu as pernas e reduziu a iluminação da telinha touchscreen para que não machucasse suas vistas na escuridão em que seu quarto acabara de ser mergulhado.

Checou o relógio do celular: 23h09. Abriu a notificação de mensagem e a leu:

“Linda, fui atropelado na esquina de casa por um desgraçado. Espero que ele apodreça no inferno. Saiba que te amei mto, e sempre estarei ao teu lado. Peço que me perdoe, mas estou morto.”

Instintivamente, a garota levou a mão à boca e sentiu um frio familiar de pânico congelar seu coração. Que mensagem mórbida era aquela? Mas, um segundo depois, recobrou suas plenas faculdades e concluiu que aquilo certamente era alguma piadinha sem graça do rapaz. Ainda assustada, digitou rápido para ele e pôs o celular de lado, pensativa:

“Por que aquele babaca me mandaria uma mensagem assim…? Por que será que ele quer me assustar desse jeito? Ele nunca foi de fazer esse tipo de brincadeira pesada… O que será que deve ter acontecido?”

Pegou o celular de novo, e checou a hora: 23h11. Essa devia ser a hora em que ele estava chegando em casa após o trabalho. Mordeu levemente o lábio inferior e pensou em ligar para ele. Com um suspiro resignado, teclou o ícone de telefone para realizar chamadas no alto do visor e colocou-o ao ouvido:

“Tuuuuuu… tuuuuuu… tuuuuuu…” - E nada. Ele não atendeu. “Talvez esteja sem conexão”, pensou. Ocultou o Whatsapp e abriu o aplicativo do telefone para discar para o noivo. Mais uma vez colocou o celular no ouvido e aguardou apreensiva os toques acabarem na apressada mensagem de caixa postal da operadora. Desligou rápido e bloqueou a telinha do telefone. Em silêncio, embalada pela chuva que ressoava pela casa escura, ficou a refletir sobre aquela estranha mensagem:

“Garota, isso deve ser alguma pegadinha daquele bobão… Ou algum amigo do serviço tomou o telefone e fez essa gracinha, sei lá… Isso não pode ser verdade, como ele me mandaria uma mensagem… morto?” - Este pensamento arrancou-lhe mais um golpe gelado do peito. Estaria ela louca? Como assim, a mensagem de um morto? Ora, ora… tolice típica de colegiais fãs de filmes e estórias de terror… ela já estava bem grandinha para isso. Riu-se nervosamente de si mesma e sacou mais uma vez o celular para ligar para ele. Já eram 23h19.

Chamou, chamou, chamou… e nada. Mandou mais uma mensagem, mas viu que ele não adentrava o Whatsapp desde a última mensagem, há dez minutos atrás.

Um pensamento sinistro percorreu sua mente, e sentiu muito medo. Mais um trovão explode lá fora neste exato momento, e a luz do relâmpago que penetrou pelo vidro da janela iluminou a face pálida e apavorada do seu noivo no quarto escuro, fazendo-a gritar e se lançar para debaixo das cobertas.

Tremendo-se toda, lágrimas vieram aos seus olhos. “Devo estar louca, devo estar louca…”, repetia sem cessar em sua mente. Suas mãos e pés formigavam, e sua testa estava ensopada de um suor gélido.

Após longos minutos imobilizada desta forma, finalmente a adrenalina baixou um pouco e, engolindo seco, resolveu tomar coragem e dar um fim àquela situação tétrica: iria até a casa de seu noivo tirar isso a limpo.

Lentamente retirou a cabeça para fora das cobertas e iluminou o quarto com a luz do celular: nada de mais naquele tão familiar cômodo. Tirou os pés da cama e tratou de arrumar-se para sair em procura de resolver todo aquele mistério.

Eram exatamente 23h37.

***

Dirigindo pelas avenidas e ruas, pôde concluir que a falta de luz acometera não somente o seu bairro, mas também amplas porções da grande cidade. Semáforos apagados e poças de água por todos os lados dividiam a atenção da apavorada motorista com as inúmeras tentativas de telefonemas para seu noivo. Naquele momento, ela já perdera a noção de quantas mensagens gravara para ele, cada uma refletindo o pânico crescente da moça conforme o tempo passava e ele não respondia. A todo momento ela checava se ele não havia entrado no Whatsapp recentemente; e nada. Última visualização às fatídicas vinte e três horas e nove minutos.

A chuva parecia não dar trégua, e se lançava contra o para-brisas do velho Uno sem piedade. Aqui e ali um ou outro carro cruzava seu caminho na noite negra e deserta. Enquanto percorria o longo trajeto que os separava, ia cada vez mais e mais tentando contato com o rapaz, mas sempre sem sucesso. Quando deu por si, já chorava desesperada com tudo aquilo, e suas pernas bambeavam nos pedais. Tal confusão só podia ser um sonho ruim, pensava, mas não conseguia se convencer. No fundo, sua intuição lhe apontava para alguma coisa muito macabra e que ela não queria entender.

Por fim, na entrada para a rua da casa do rapaz, uma poça d'água na curva fechada pegou-a de surpresa e descontrolou seu carro que vinha em alta velocidade. Mal teve tempo de ver que, pouco antes de colidir-se contra o muro, havia alguém bem na sua frente, na calçada.

***

Os segundos que se passaram neste trágico acidente pareceram eternos para a jovem, que sentia o corpo todo dolorido com a força do impacto. Graças ao cinto de segurança, não sofrera grandes escoriações, mas o pavor de mais esta desventura foi suficiente para tirar do fundo de sua alma lacrimosa os grunhidos mais viscerais.

Levando a mão esquerda ao rosto, buscou se acalmar e voltar a si. Olhou ao redor e concluiu que a batida destruíra totalmente a frente de seu carro num muro de concreto da esquina. O carro apagou, e o único som que ela ouvia era o das gotas de chuva respingando na velha lataria. Soltou o cinto de segurança, enxugou as lágrimas e abriu, com muito esforço, a danificada porta do carro.

Pisando no chão gelado e ensopado com os pés descalços, encaminhou-se trêmula até a frente do veículo, violentamente prensada na parede. Levantou vagarosamente o facho da lanterna do celular naquela direção e, mais uma vez, apavorou-se com o que via: seu noivo jazia inerte sobre o capô do carro, esmagado pelo impacto.

Desconsolada, a jovem se jogou ao chão, em prantos. Não sabia o que fazer, tampouco entendia a desgraça em que se metera. Como aquilo seria possível? Que noite, que noite insana era aquela?!

Por fim, totalmente confusa e impotente, pegou seu celular para chamar por socorro e, por acaso, viu a hora.

23h15.

“Como assim, 23h15?”

Lembrou-se: aquela era a última noite do horário de verão. O relógio do celular ajustara-se automaticamente à mudança de hora.

Pôs-se a pensar sobre aquilo e reparou que um outro celular estava caído perto de si: era o de seu noivo. Mesmo com a tela espatifada, ela conseguiu desbloqueá-lo e acessar seu Whatsapp: estavam lá todas as mensagens e áudios que ela enviara durante toda a noite, desde as 23h09 do horário de verão, até a poucos minutos atrás, já após a virada do relógio.

Perplexa, não conseguiu encontrar uma resposta às suas muitas questões.

E até hoje não conseguiu. Eu gostaria de dizer que tudo isso não passou de um sonho ou devaneio, mas não posso mentir: a moça está cumprindo o segundo ano da pena de homicídio culposo pelo atropelamento daquela noite. Por mais que tentasse explicar às autoridades o que acontecera, aquele seu relato era pouco verossímil à fria e pesada mão da justiça. E o fato dos pneus carecas, combinados à alta velocidade e mais algumas infrações cometidas enquanto dirigia não a ajudaram muito a se defender da acusação.

Sim, este é um final trágico a esta história. Mais trágico pelo fato de que a garota enlouqueceu depois que foi detida, e agora definha numa superlotada ala prisional reservada às detentas com problemas psiquiátricos. As carcereiras dizem que a moça passa suas noites assombrada pela face do falecido noivo, que prometera jamais sair do lado dela.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 11/11/2017
Reeditado em 11/11/2017
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