O coveiro
Já perdera as contas de quantos mortos enterrara. Juvenal Beiras era coveiro no Cemitério Imensa Saudade, localizado no bairro do Catete, na Cidade Maravilhosa: o Rio de Janeiro. Angolano de nascimento, viera para o Brasil ainda bebê com seus pais, que fugiram da guerra que se travava entre Angola e Portugal pela independência do pais africano, que se tornou afinal independente em 1975. Juvenal não gostava de seu trabalho (na verdade o odiava) mas o fazia com maestria há vários anos. Jogava boa parte do dinheiro que recebia em um cassino clandestino, em Ipanema. Adorava jogar na roleta e, para ter sorte no jogo, costumava cuspir na sepultura dos mortos recém-enterrados sempre na véspera da jogatina, ou seja: sempre às sextas-feiras, já que sua folga semanal era no sábado.
Chovia muito no Cemitério Imensa Saudade, numa quinta-feira de final de setembro. Os parentes já se despediam do falecido quando o caixão foi baixado para a cova. O morto era um ilustre músico carioca e seu enterro reuniu toda a nata de músicos, artistas, políticos e, principalmente, fãs fluminenses. Havia também personalidades e fãs de outros estados brasileiros, assim como de outros países. Eram oito horas da noite, quando, já sozinho, Juvenal terminara de enterrar o caixão. Após jogar a última pá de terra, ouviu um estrondo terrível. Era um trovão causado por um raio que caíra no cemitério. Assustado, guardou rapidamente a pá e foi direto para cabana em que morava dentro do campo-santo. Após um lanche rápido, o coveiro foi dormir. Juvenal acordou com o barulho do despertador que marcava seis horas da manhã de uma sexta-feira primaveril. Haveria um enterro às oito horas e ele precisava estar preparado. Escovou os dentes, tomou um banho rápido e após comer um pão francês dormido com café, vestiu seu uniforme e foi trabalhar. O enterro da vez era de um grande jurista maranhense que escolhera a Cidade Maravilhosa para viver. Mas a cerimônia foi reservada apenas para os familiares e amigos mais íntimos do falecido. Após a reza de praxe e os choros e soluços habituais, o coveiro fez seu trabalho com um sorriso de satisfação no rosto. Era véspera de sua folga semanal e, no dia seguinte, ele jogaria a sorte no cassino: apostaria todo seu dinheiro poupado com grande dificuldade: vinte e cinco mil reais! Se ganhasse, ficaria rico. Se perdesse... deixa pra lá. Quando ficou finalmente sozinho no cemitério, foi realizar seu ritual para ter sorte no jogo, tendo uma lua cheia com tons sanguíneos como testemunha. Em cada sepultura que passava de um recém-falecido, dava uma escarrada com gosto na última morada do morto. Fez isso até a sexagésima sepultura, já que enterrara no mês de agosto quarenta pessoas e no mês de setembro mais vinte. Parecia que as pessoas escolhiam o mês de agosto para morrer, sabe-se lá o porquê. Quase sem saliva depois de ter cuspido nos túmulos de todos os mortos do mês de agosto e de setembro, o coveiro foi dormir já se imaginando o novo rico do pedaço.
Chovia torrencialmente, na madrugada de sábado, no cemitério onde Juvenal trabalhava e morava. Trovões ribombavam e relâmpagos cruzavam os céus do bairro do Catete como flechas de fogo lançadas pelos deuses. Exatamente às três horas da manhã, Juvenal Beiras é acordado com um estrondo em sua cabana, mas não é de trovão. É de sua porta. De repente, esqueletos começam a invadir a cabana do coveiro até ocupá-la totalmente. Juvenal Beiras grita, mas em vão. Não há ninguém vivo no cemitério para ajudá-lo. Em pouco tempo, os mortos asfixiam o sepultador e vingam-se da falta de respeito do coveiro. Juvenal Beiras foi encontrado morto, mais tarde, em cima de sua cama, em posição fetal, ou seja: todo encolhido. O perito do IML atestou na necropsia de Juvenal que o coveiro morrera de um ataque cardíaco fulminante provocado, provavelmente, por um susto muito grande, um medo absurdo, pois os olhos do morto encontravam-se esbugalhados de tão abertos.
“A vingança é um prato que se come frio”. Ditado popular