As Crianças da Floresta
 
Chegara o dia em que todos nós seremos julgados por nossos atos e neste dia, ele virá!
V. N. N.
 
“Crianças são sem dúvida diabretes, seres com ideias mirabolantes que só poderiam surgir na infância, época mais incompreensível de nossa vida.”
 
     
    Às nove horas da manhã, Marcos circulava a vizinhança em sua bicicleta vermelha brilhante — chamava-lhe cavalo de fogo.


    Rodrigo fora o primeiro a surgir, morava na altura do número 27, ao lado de Amanda, uma garota branca de ficar nauseado, com olhos verdes, ruiva como o sol e sardenta. Amanda sempre desafiava a vida, hora queria pendurar-se em cima de uma árvore de cabeça para baixo, hora nadar no córrego do outro lado do quarteirão na época das chuvas, em tempo de ser arrastada pela correnteza.

     — Vamos Vitor.

     A casa de Vitor era quase na esquina, o pequeno sobrado com um enorme muro branco e um portão dourado, com as extremidades enferrujadas e as dobradiças soltas.

     Quando a molecada se reuniu, já passava do meio-dia, logo após Lucas conseguir a permissão de sua mãe.

     — E ai Luquinha, o que foi dessa vez…

     — Ela me fez almoçar, não me deixou sair de casa antes de limpar o prato, inclusive aquela bosta verde.

     — Bosta verde?

     — Isso mesmo, bosta verde.

     — Quer dizer espinafre, salada, couve…

     — NÃO! QUERO DIZER BOSTA VERDE.

     Todos que viam aquele grupo de pestinhas reunidos, já imaginavam o que eles poderiam aprontar. Toda a vizinhança já os conhecia e não aguentavam mais suas infames desventuras que SEMPRE terminara em confusão. Eles se autodenominavam; a turma da rua e desde o dia em que botaram fogo no gato da dona Cleide, vizinho de Marcos e da família Linhares, todos os moradores da vizinhança os temiam.

     Marcos era o lider do grupo, ainda assim, Amanda sempre teve voz ativa para lhe intimidar, entretanto, ele que tomava as decisões difíceis.

     A placa no final da rua dizia; — Proibida entrada, terreno perigoso!  Cruzando esse limite dava direto numa área florestal que se estendia por quinze Hectares e fora proibido a passagem por conta do terreno acidentado. Claro que aquilo era um dos maiores atrativos para qualquer criança suficientemente travessa. Rodrigo quebrara o braço duas vezes naquele lugar. A floresta era muito mais perigosa do que suas mentes subdesenvolvidas poderiam entender.

     — Abre logo… — Gritou Amanda de forma ignorante, como qualquer garota de doze anos, mimada.

     Mateus puxou a tranca enferrujada e largou-a no chão. A pequena portinhola era conectada por duas correntes grossas.

     Rodrigo ainda sentia a dor sibilar em seu cotovelo, mesmo tendo tirado o gesso a um mês, não deixou de promover a desfortuna ideia de descer um dos maiores barrancos da floresta numa lona que conseguira na casa de seu tio. Da última vez que tentou fazer aquilo acabou ficando cheio de lesões, isso porque foi em um pequeno morro próximo da casa de seu tio, que tinha menos da metade do tamanho do barranco da floresta.

     Marcos tomou a dianteira levando a lona, enquanto Mateus e Amanda o ajudavam carregando a parte de trás que suspendiam para não deixar arrastar pelo chão.

    O terreno era íngreme e barrento. As árvores se suspendiam como trepadeiras no chão, tão altas como uma montanha e o vento frio que assoprava do leste, ressoava por suas copas. Infelizmente, Deus criara algumas crianças com uma vontade obsessiva incrível de permanecer invioláveis mesmo ao frio intenso.

     Após subirem cerca de trezentos metros, chegaram até um vale, e lhe apelidaram de vale vermelho, pois, a maioria das flores era em sua abundância, orquídeas vermelhas.

     O sol não saía desde de manhã, quando Mateus acordara às sete horas da madrugada daquele domingo e vira pela janela uma fina malha de chuva. Entretanto, mesmo sendo quase impossível, um feixe de luz transpassou as nuvens negras daquele céu nublado e seu brilho sobrepôs-se em pinheiro, iluminando-o. Marcos imaginou ser um sinal do incompreensível, ao qual sua mãe sempre se referira, o Deus dos israelitas, o Deus que tudo pode… o Deus que outrora fizera água virar sangue e partira o mar vermelho em dois para dar passagem ao povo de Israel.

     Ao observar direito o pinheiro, percebeu uma sombra titubeá-lo, uma sombra disforme que se movia ligeiramente, tentando esconder-se na penumbra da floresta. A sombra era alta como um gigante, e lhe seguira com os olhos até descerem o vale, e então sumiu na imensidão do ermo, entre as árvores.

     — O que é aquilo…

     — Uh! — Indagou Amanda. — Outra vez! O que foi agora? Viu o diabo?

     Mesmo sendo durona daquele jeito, Amanda era a mais medrosa de todos, mas evitava demonstrar suas fraquezas. Desde que entrou na floresta, ela sentira um cheiro fétido de morte, e isso lhe fazia recordar de quando encontrou seu gato morto ao lado de sua casa. O gato chamava-se Neguinho, era um siamês calmo e gorducho que fora destroçado pelo cachorro do vizinho. Amanda encontrou o cão ainda devorando suas tripas, e parte da carcaça, principalmente a cabeça. Ele havia arrastado os restos de Neguinho até um pequeno limoeiro, e lá terminava a refeição. Duque como todos chamavam, era um Rottweiler, vivia nervoso latindo dia e noite. Ele era o cão dos Silva, vizinhos dela a mais de cinco anos e conseguira entrar em sua casa pelo portão da frente que havia sido deixado aberto por descuido.

     Mateus vira a reação dela e até então só observara. Dez minutos depois, quando havia conseguido se aproximar o suficiente, ele prontificou o braço em sua direção e deu-lhe um tapa leve no ombro, mas que conseguiu tira-la do transe.

   — O que foi Manda? — Questionou Mateus, esperando-a mostrar ao menos um pouco seu lado feminino. Contudo, abruptamente Amanda lhe disferiu um murro. Mateus se desequilibrou, inclinou-se tropeçando nos próprios pés e caiu de bunda no chão. — ainda bem que não estavam subindo o morro. Rodrigo estava a meio metro de distância e também parecia abalado, ele se recordara de quando viu uma mulher sem rosto, vestida de branco sentada em seu quintal. Naquela noite ele havia acordado, logo após ouvir sua mãe gemendo sem parar.

     — Não, por favor, não… ai… ai… ai… isso. Mais forte.
Rodrigo tinha completado treze anos na época e quando acordou seguiu a voz angustiante de sua mãe até seu quarto, quando chegou na porta ouviu um eco estranho, um som de carne batendo em carne, meio molhado e esguio, mais baixo, bem baixo. Em seguida uma voz masculina explodiu, gemendo alto, ainda mais alto do que ela. Gritando abafado.

     — Estou quase! Estou quase.

     Rodrigo espiou pela fechadura, seu olho direito encaixou direitinho na pequena fenda, e então levou um susto, viu um homem moreno todo pelado sobre sua mãe, arquejando-se de forma simultânea, fazendo movimentos graduais para frente e para trás, enquanto lhe agarrava pela cintura, ajoelhada. Ele ficou sem reação, seu coração tamborilava e ainda assim continuou olhando durante mais dois minutos, até ouvir uma voz desconhecida surgir, vinda da janela. A voz tinha um tom grave, esbelto e formoso, e cantarolava olhando para a lua. — Venha meu lindo filho, aonde nos separais… venha para os meus braços de onde não partirás.

     Ele a observou da janela, próximo da escrivaninha no corredor do segundo andar. A mulher sem rosto carregava um pano branco nos braços, era feito de seda com detalhes em cetim, manchado de sangue. Rodrigo vidrou-a pela janela, até que ela desapareceu perante seus olhos… e reapareceu a sua frente, uma mulher com uma camisola branca, com cerca de um metro e setenta de altura. Ela levantou a mão em sua direção e tocou-lhe o rosto.

     — Venha meu filho, venha para os meus braços de onde não partirás.

     Rodrigo perdeu-se em sua voz e desmaiou, brandido pelo toque gélido dela, que lhe acometeu ao contrário do que se possa imaginar, uma sensação de paz e até um pouco de conforto, algo que nunca sentira antes.

     — Venham, me ajude a preparar a lona. — Disse Mateus.

     Marcos ergueu a lona próxima do alto do barranco e a suspendeu com força. Mateus a abriu enquanto Amanda, Rodrigo e Vitor a estenderam. Vitor observou a altura do barranco e o medo lhe fez acreditar que era um precipício sem fim. Hesitou em ser o primeiro, mas acabou cedendo após Amanda lhe ameaçar de jogar morro abaixo. Ele tinha medo de altura, mas não queria passar a ser chamado de marica.

     Fora seu medo de altura, Vitor também tinha pavor de palhaços, um dia fora com seus amigos num circo e ficou com tanto medo quando o palhaço apareceu no palco que se mijou. Urinou-se na calça jeans novinha que sua mãe acabara de comprar. A urina desceu por sua perna e formou uma poça amarelada no chão. A imagem daquele palhaço lhe fez ficar em choque, deixando-o zonzo. Uma outra imagem do palhaço se formara em sua mente, ele parecera uma criatura monstruosa com grandes tufos vermelhos sangrentos que saiam das extremidades da cabeça, sobrancelhas num tom branco opaco, um nariz vermelho que parecia pular para fora e estourar, uma boca larga, cheia de dentes amarelos de citrino, alguns até podres e um bafo de cadáver de onde saia uma fumaça negra e uma gosma preta que parecera até piche.

      Após aquele evento, Vitor nunca mais foi ao CIRCO.

     Vitor sentou em cima da lona e a segurou nas extremidades, enquanto Amanda o empurrara até a beirada do barranco. Rodrigo queria impedir-lhes, pois, sentia um pressentimento ruim, porém...

     — Vocês não acham melhor brincarmos de outra coisa.

     Amanda virou o rosto, fez uma careta e disse.

     — Quer descer primeiro?

     Rodrigo ficou mudo. Lucas se aproximou de Vitor e deu-lhe o impulso necessário para descer.

     Os primeiros seis metros foram suaves, sem tanta dificuldade, contudo, Vitor notou que o terreno estava mole, por conta da chuva de ontem — mole até demais. A lona começou a deslizar mais que o planejado, e logo tomou uma velocidade de quinze quilômetros por hora, girando para um lado e para o outro em turbulência total e então finalmente virou, capotando. Vitor soltou-se da lona, que acabou ficando presa em uma pedra e continuou descendo e rolando, tombava de forma desajeitada sem controle, desgovernado. Até os primeiros seis segundos já havia quebrado duas costelas, rasgado parte do braço, fraturado o fêmur e tido diversas escoriações. Antes que pudessem providenciar ajuda, e antes mesmo que Vitor rolasse até o final do barranco, uma rocha surgiu no caminho, ele não conseguira desviar, afinal não tinha controle momentâneo do corpo, inevitavelmente acabou por chocar a cabeça em cheio na rocha, com toda a força que juntara na descida. A pancada havia sido tão forte que virou sua cabeça para o outro lado, quebrando-lhe o pescoço. O som do osso quebrando foi tão alto que todos puderam ouvir de longe.

     Amanda foi a primeira a chegar no local. Ela encontrou o corpo de Vitor completamente desmantelado, o pescoço torcido para trás, mas com a face virada para cima, as pernas tortas, e diversos ferimentos, além do sangue que espirrava de toda parte do corpo e começava a cobrir boa parte da área ao seu redor. Amanda ficou tão desesperada ao ver aquela cena, que seu corpo não aguentou e ela vomitou em seus proprios pés e em seguida começou a chorar incessantemente.

     — Não temos culpa... ele… foi ele.

     Amanda observara os olhos de Vitor a fitando e aquela visão destruía sua sanidade.

     Mateus, tinha ciência que Vitor era um de seus amigos, mas ele concordava com Amanda — ele que quis ser o primeiro, estava ciente de todos os riscos, ninguém vai pagar por seus erros agora, pensava ele.

     — Temos que dar um fim nesse corpo. O que pensa que pode acontecer se descobrirem?

     — Você está louco! — Gritou Rodrigo em choque.

     — Eu estou louco. Eu… Eu Não quero nem saber! Eu não vou pagar por isso.

     Mateus pálido aproximou-se de Rodrigo e o segurou pelo colarinho.

     — Você quer que eles descubram. Quer mesmo. O que acha que fariam conosco?

     Rodrigo olhou para o cadáver de Vitor e depois para Mateus.

     Luquinha estava sem ação, seu coração pulsava tão forte que denegria sua razão.

     — Isso mesmo, precisamos dar um fim no corpo. — Respondeu Marcos.

      — Isso-pre-ci-sam-mos — Gaguejava Luquinha.

     Amanda ainda estava muito abalada, a mais durona do grupo não se aguentava em lagrimas. Os garotos se reuniram, enrolaram o corpo de Vitor na lona, depois o amarram com alguns cipós que encontraram na mata e em seguida o levaram até o lago que existia próximo ao vale vermelho. O sangue dele respingou sobre todos enquanto o carregavam. Em algumas tradições indígenas, dizem que quando você se banha com o sangue de seu inimigo, você leva um pedaço de sua alma, um pedaço de seu espirito consigo para o resto da vida. Quando o corpo foi deixado ao lado do lago, ninguém mais conseguia se mover, estavam tão apavorados que não paravam de tremer. Marcos foi o responsável por desovar o corpo dentro do lago. Era o único que conseguira ficar de pé naquele momento. Ele então amarrou a lona em várias pedras pesadas que conseguiu reunir e empurrou o corpo dentro do lago. O reflexo de seu rosto penetrou nas águas escuras, enquanto via a lona azul, manchada de sangue, afundar com seu amigo.

   Depois daquilo, nunca mais eles voltaram a se reunir…

   Seis meses se passaram e ninguém conseguiu encontrar o corpo de Vitor. A polícia e o grupo de buscas florestal passaram semanas procurando-o, mas nunca encontram o corpo, nem sequer chegaram perto, até que seus pais desistiram. O Enterro ocorreu no dia cinco de dezembro de 1987, e seus cinco “amigos”, não deixaram de estar presentes, — suposto enterro claro, já que aquele caixão estava vazio e o corpo jazia no fundo do lago.

     Após o enterro, duas semanas depois, a turma da rua voltou a se reunir uma última vez, estavam decididos a corrigir seu erro. Saíram de casa na surdina da noite, por volta das duas da madrugada e desapareceram. Suas famílias foram procurá-los e os encontraram três dias depois, no vale vermelho. Cada uma das crianças fora encontrada enforcada no alto de velhas arvores mortas em torno do lago, seus corpos cheiravam tão mal que pareciam ter morrido a mais de um mês.


     Durante as investigações, buscas foram feitas no lago, dois nadadores com equipamento apropriado verificaram o lugar de ponta a ponta, mas não encontraram nada, o corpo de Vitor sumira do lago.

     Com o tempo o caso foi esquecido, pois, nenhum suspeito fora encontrado, e atualmente qualquer um que caminhe por aquela parte da floresta, se escutar direito poderá ouvir as vozes daquelas crianças, dizem que pelas vozes angustiantes, eles devem estar num lugar tremendamente horrível, sofrendo infindavelmente.

 
TEMA: FLORESTAS ASSOMBRADAS
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 02/11/2017
Reeditado em 03/11/2017
Código do texto: T6160435
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