O Monstro da Lenda

Era noite de 31 de outubro e, como todos os anos, muitos idosos haviam fechado suas residências cedo, em virtude de uma antiga lenda da cidade que dizia que um escravo fugitivo teve sua perna decepada ao ser encontrado pelo capitão-do-mato, antes de ser morto. Assim, no dia de sua execução, dia 31 de outubro, o monstro voltava para aterrorizar a população, querendo vingança. Como o monstro, a qual deram o nome do escravo fugitivo – Saci -, não pode entrar em residências com janelas e portas fechadas, os mais idosos – que acreditavam fielmente na lenda e que diziam que o monstro apareceu há mais de seis décadas, quando eram crianças – trancavam suas casas no cair da noite do dia 31 de outubro, não permitindo nem que as crianças brincassem do lado de fora das residências.

Nós, contudo, mais jovens, não acreditávamos na lenda, saindo normalmente de casa. E, como aquele dia chovera, havia esquentado consideravelmente a temperatura, sendo que ficar dentro de casa com a mesma toda trancada era completamente impossível.

Nossos pais haviam viajado para aproveitar o feriado prolongado, deixando a casa completamente vaga para eu, Alice, de vinte anos, meu irmão, Jonas, de vinte e dois e o nosso irmão caçula, Vagner, de oito. Eu estava dentro de casa aflita mexendo constantemente no celular. Jorge, meu namorado, viria para minha casa para aproveitarmos a casa vazia, pois Jonas falou que iria sair e que levaria Vagner consigo, às seis horas. Entretanto, já havia passado das sete e nada de Jonas sair. Continuava lá, sentado, assistindo televisão, enquanto Vagner corria para cima e para baixo pela casa.

- Calma, que eu já vou sair, está bem? – disse Jonas, assim que parei na entrada da sala, sem olhar para mim – Pode ficar tranquila que já, já você e seu namorado poderão aproveitar a casa inteira. – disse, enquanto desligava a televisão e se levantava

Fechei o cenho, ao mesmo tempo em que me enrubesci por completo. Era vergonhoso saber que Jonas sabia de meu intento. Ele passou por mim e, de costas, me disse:

- Vou sair com uns amigos. Devo chegar lá pela meia-noite. Fique à vontade com a casa.

- Meia-noite? E o Vagner? – perguntei, surpresa, enquanto me virava para meu irmão

- Eu não vou levá-lo. Ele é muito peste.

Paralisei. “Só me faltava essa”.

- Jonas, você combinou que o levaria...

- Sim, mas o lugar dele é ficar dentro de casa, e não comigo em um bar. Você fica com a casa e fica com a peste. – em seguida, saiu do local.

Enfezei, bati pé e me deixei cair lentamente até o chão. Meu plano havia fracassado. E por culpa do meu irmão e de uma peste que também chamo de irmão.

Cerca de vinte minutos depois, Jorge bateu à porta da casa. Corri para atendê-lo. Aproveitei o intervalo para trocar de roupa – colocar um vestido casual, de tonalidade azul-piscina - e passar uma leve maquiagem no rosto. Ao mesmo tempo, coloquei meu irmão no quarto assistindo televisão – parece finalmente que ele havia sossegado.

- Oi, amor. – disse Jorge, com uma camisa jeans com botão, barba por fazer e calça brim, na porta. Ele era dois anos mais velho que eu e aquela barba por fazer e aqueles ombros largos me enlouqueciam só de olhá-los.

- Oi, amor. Entre. – disse. Em seguida, dei-lhe um beijo.

- E aí? Os seus irmãos já foram?

- O Jonas já. Mas o Vagner ficou aí.

- Sério? – perguntou Jorge, surpreso – Mas você não disse que ele o levaria para passear?

- Ia, mas decidiu mudar de última hora. Além de atrasar mais de uma hora o nosso encontro, ainda deixa o peste do meu irmão aqui em casa.

Jorge riu.

- Não precisa chamar seu irmão de “peste”. Ele é criança. Tem energia sobrando.

- Até demais. – disse eu, não contagiada pela felicidade de meu namorado

- E o que faremos então?

- Vamos seguir o plano original. – disse. Meu corpo começou a fervilhar, de dentro para fora

- E seu irmão? – Jorge não parecia tão entusiasmado como eu

- Trancamos a porta. – eu disse

- Tem certeza? – Jorge ainda parecia desconfiado

- Confie em mim! – disse, já tomada pelo tesão

Pouco mais de cinco minutos depois, estávamos sobre minha cama, com Jorge me agarrando furiosamente e passando sua mão pelo meu corpo. Já estava sem camisa e as alças de meu vestido tendiam a escorregar de meus ombros em breve. Estávamos em um fogo fenomenal. Repentinamente, para minha surpresa, eis que escutamos Vagner gritar o meu nome.

- Alice! Alice!

Paramos no mesmo instante. Pela voz, meu irmão parecia amedrontado. Entretanto, não queria me levantar para ir lá ver – não queria parar de fazer o que estávamos fazendo.

- Vai lá ver. – disse Jorge. Parecia que ele sabia que eu não queria me levantar.

Os gritos de Vagner voltaram, na mesma intensidade de antes. Contrariada – e completamente frustrada -, levantei-me. Arrumei o vestido e o cabelo e abri a porta.

- O que foi, Vagner? Cadê você? – perguntei, enquanto adentrava no pequeno corredor que dava à sala e ao quarto de Vagner.

O menino estava sentado no sofá em frente à TV da sala, com a cabeça enfiada entre os joelhos. Debulhava-se em lágrimas.

- O que aconteceu, Vagner? – perguntei. De fato, estava preocupada, pois meu irmão não era mais de chorar.

- Tem um monstro feio... no meu quarto. – ele disse, entre choros

Irritei-me na mesma hora. “Sério isso? Depois de grandinho ficar acreditando em monstro no quarto?”, pensei comigo mesmo. “Parou a gente pra isso?”

- Não existe monstro, Vagner. Você já está grandinho o suficiente para saber disso! – estava furiosa o suficiente para esconder minha raiva do meu irmão

- Mas, mas...

- Nada de mas. Monstros não existem. – disse. – Anda. – continuei, apontando em direção ao seu quarto – Vai para o seu quarto.

Vagner levantou-se e começou a andar, caminhando entre soluços.

- Ele vai me pegar e a culpa é sua. – disse, emburrado

- Tomara que pegue mesmo e suma contigo, seu pestinha. – eu disse. Realmente, eu odiava ter que tomar conta do meu irmão. Ele só sabia me atazanar. Comigo, ele só corre, joga as coisas no chão, embarra na estante. Vive quebrando as coisas. E sempre sobra pra mim ouvir da minha mãe: “Olha o que seu irmão fez. Olha o que seu irmão fez”. Já com o Jonas, o pestinha é santinho, porque ele é o irmão bonzinho, que o leva para passear e traz presente. Como eu queria esganar o Jonas agora.

Poucos segundos depois, entrei novamente no meu quarto, fechando a porta com força, trancando-a em seguida. Estava furiosa. Todavia, Jorge parecia que nem percebeu que eu entrei no quarto. Mexia no celular incessantemente, sem nem piscar ou olhar as coisas ao seu redor.

- Só me faltava essa... – disse, ainda furiosa – Agora você vai ficar no celular?

- Ah, oi amor. – ele disse. Parece que se assustou com minha fala. – Não te vi entrar. – desferiu um beijo suave nos meus lábios – Desculpa. Estava olhando algo estranho aqui na internet.

- O quê? – perguntei. Interessei-me pelo assunto. O que poderia ter de tão estranho na internet que chame a atenção de alguém que vive na internet, como Jorge?

Fitei a tela do celular de Jorge e vi que o mesmo estava no Facebook. Ele estava lendo um post que estava escrito a seguinte mensagem, da seguinte forma:

“SOCORRO! ACABOU DE APARECER NO MEU QUINTAL!”

- O que apareceu no quintal do Eduardo? – perguntei, referindo-me à postagem de Eduardo, melhor amigo de Jorge

- Parece que a internet está apavorada com a notícia de um monstro que está rondando as casas da região. Alguns falam ser até a tal lenda do Saci, que meus avós contavam quando era criança.

Naquele instante, congelei-me. Lembrei-me imediatamente do que Vagner havia me contado. Da aparição do monstro em seu quarto, que o fez ir para a sala. Do fato de eu ter lhe mandado de volta para seu quarto. De volta para os braços do monstro, provavelmente.

Acordei de meus devaneios com um preocupado Jorge me fitando com seu rosto próximo ao meu. Seu semblante demonstrava imensa preocupação.

- Amor. Aconteceu alguma coisa?

- O Vagner... – disse apenas. Tentava dizer mais, agir, fazer alguma coisa, mas estava congelada. Até que... um grito me tirou completo da paralisia.

- SOCORRO!!! – gritou Vagner. Seu grito ecoou por todos os cantos da casa e parecia vindo do interior e do exterior da casa ao mesmo tempo. Eu e Jorge levantamos ao mesmo tempo. Meu coração começou a bater tão furiosamente no meu peito que parecia que iria se dilacerar. Demos dois passos em direção à porta do quarto quando ouvimos barulhos ao fundo da nossa casa, do lado de fora da janela do cômodo.

Corri para a janela. Vi um rapaz de cor negra, com uma só perna, usando apenas um gorro e uma bermuda de cores vermelha, portando um cachimbo no rosto arrastando Vagner pelo chão, em direção à floresta.

- Vagner. – gritei, assustada. Naquele instante, o monstro virou o rosto em minha direção e fez um frio inexplicável subir por minha espinha, fazendo meu corpo todo tremer. Seus olhos eram avermelhados e seus dentes eram afiados – o rosto próprio da maldade.

O monstro adentrou no interior da floresta logo depois. Eu fiquei ali paralisada durante alguns segundos, até que Jorge chegou ao meu lado, me sacolejando e gritando ao meu lado, desesperado:

- O que aconteceu?

Naquele instante, perdi completamente minhas forças. Minhas pernas bambearam a ponto de eu escorregar com as costas na parede até cair ao chão, sentada. Em seguida, fiquei ali, completamente paralisada. Não acreditava que eu deixei um monstro roubar Vagner de mim. Que tipo de irmã eu era?

Jorge chegou até ao meu lado e fitou o lado externo da residência. Em seguida, ainda tomado pelo desespero, agachou-se ao meu lado e me perguntou:

- O que aconteceu?

Eu não tinha forças para responder meu namorado. Ainda estava ali, completamente tomada pela paralisia e pelo arrependimento. Uma lágrima escorreu de meu olho esquerdo.

- O que aconteceu? Amor, você precisa responder... se for algo grave, Vagner corre perigo. E precisamos agir logo!

- O monstro... – disse, apenas – Levou ele...

- O quê?! – perguntou um estupefato Jorge. Sua indagação saiu em forma de grito e arranhou meus tímpanos. – Como assim?! E o que estamos fazendo aqui? Vamos.

Em seguida, Jorge saltou a janela, deixando-me para trás, ainda sentada, desolada, no meu cômodo.

- Você vem ou não vem?! – gritou Jorge, retirando-me da minha paralisia

Cinco ou seis minutos depois, eu e Jorge estávamos no interior da floresta, em uma subida que começou tranquila, mas que já estava íngreme àquele momento. Estava completamente escura, exceto pela luz do meu celular – Jorge andava pela floresta fitando o próprio celular. Eu iria xingá-lo – afinal, ali não era hora nem local de mexer no celular, mas não tinha forças para isso. Ali dentro, havia um vento frio que fazia qualquer um arrepiar. Eu ainda estava de vestido – não imaginei o frio que iria fazer dentro da floresta. No momento em que fui trancar a casa, ainda peguei o meu celular e a blusa de Jorge, o que retirou parte do frio dele – mas não parecia que iria adiantar muito ali dentro. Andávamos devagar, com cautela, principalmente por eu estar de chinelo e Jorge descalço – fruto da nossa pressa. Éramos alvos fáceis de animais peçonhentos, que poderiam facilmente picar nossas pernas e pés.

Eu estava completamente em silêncio. Andava cabisbaixa, com os braços cruzados. Ainda me encontrava desolada com o fato de Vagner ter sido raptado por um monstro, que ele me contou e não lhe dei ouvidos. Mas como iria saber? Como eu ia saber que a tal lenda que meus avós contavam quando eu era pequena era verdadeira?

- Amor. – Jorge me retirou dos devaneios – Por um acaso, o monstro que você viu levando o Vagner era parecido com esse? – e o rapaz me mostrou a tela do celular.

A luz azul do celular, aliada à completa escuridão do ambiente, ofuscou minhas vistas, precisando afastar o telefone de perto do meu rosto. No aparelho, havia uma foto de um monstro idêntico ao que levou Vagner para o interior da floresta.

Apenas meneei a cabeça. Se eu falasse uma palavra sequer, intensas lágrimas rolariam de meus olhos.

Jorge fitou novamente a tela do celular.

- É o Saci mesmo que levou Vagner.

- E o que isso difere agora? – perguntei. “O que me importava saber se era o Saci ou o Chupa-Cabra que levou Vagner?”

- Como assim?

- O que me importa saber quem levou o Vagner? Ele foi levado por um monstro. Isso que precisamos saber. – falei, furiosa. Só não gritei porque ativaria minha cachoeira de lágrimas

- Faz diferença, sim. – ele disse, ainda calmo. – É importante sabermos com quem estamos lidando. E o Saci tem algumas particularidades, segundo eu achei aqui em um site. Lembra realmente do que meu avô me contava quando era pequeno. Ele nunca ataca crianças do sexo feminino ou mulheres virgens, por acreditar que são as únicas pessoas puras, por ainda não ter tido contato com homens; sempre ataca furiosamente pessoas que comem carne de porco, pois foi o prato forçado a fazer para seu dono na noite de sua fuga; nunca entra em uma casa que não seja por janela ou porta aberta e não atravessa cursos d´água.

- O Vagner não comeu carne de porco. – eu disse, ainda tentando entender qual a necessidade de saber aquilo.

- Sim. Mas ele é criança do sexo masculino. Segundo está aqui, o Saci foi um escravo fugitivo do século XVIII que foi recapturado após um menino da fazenda vizinha, filho de uma donzela presa em casa por ser mãe solteira, dedurar que o viu atravessar uma ponte de um riacho próximo à fazenda, que ele teve que usar porque o riacho estava cheio. Por essa razão, segundo o mito, na noite de sua morte, 31 de outubro, o Saci volta do reino dos mortos para aterrorizar a população, atacar plantações e se vingar de quem, supostamente, lhe dedurou – crianças do sexo masculino e mulheres impuras.

- E o que ele vai fazer com o Vagner?! – perguntei, alto o suficiente para minha pergunta ecoar pelos quatro cantos

- Não sei. Mas ele não pode ter ido longe. O rio desce a serra aqui perto. Dá para ouvir o som dele daqui. – de fato, dava para ouvir o barulho de um curso d´água perto - Se ele não pode realmente ultrapassar cursos d´água, ele não pode passar o rio.

- Então, vamos. O que estamos esperando? Vamos. – perguntei, ao mesmo tempo em que segurei o braço de Jorge e postei a puxá-lo. Ora, se ele iria se vingar de Vagner em nome dos que lhe deduraram séculos atrás, era necessário fazer alguma coisa para impedi-lo.

- Calma. Estou descalço. É difícil andar aqui. – ele disse.

- Não mandei estar descalço. Agora, ande. Ou eu te solto aqui.

Jorge fechou o cenho.

Pouco depois, chegamos a uma clareira no interior da floresta. Havia uma ruína de uma antiga e enorme residência, com traços do século XVIII como boa parte do restante da cidade. A natureza havia tomado grande parte das paredes que ainda estavam em pé, cobrindo o esqueleto das antigas janelas e portas, subindo do chão ao teto e encobrindo tudo. Mas não foi aquele retrato da história da cidade que nos chamou a atenção, mas sim o que se encontrava após a casa: um pelourinho no centro, com os restos de uma antiga senzala ao fundo. Ao lado do pelourinho, havia uma grande fogueira, que consumia generosa quantidade de lenha. Tinha sete estacas fincadas na terra, formando um círculo. Ao centro, estava o Saci, com seus braços abertos e cotovelos dobrados, entoando algum canto.

Amarrado nas estacas havia corpos que estavam sendo consumidos pelo fogo. E, ao centro, amarrado no pelourinho, estava Vagner.

- Vag...?! – tão logo vi meu irmão, postei-me a gritar seu nome. Entretanto, Jorge tampou minha boca.

Tentei argumentar, falar algo, mesmo com a boca tampada. Entretanto, o Saci percebeu algo e parou o canto. Virou-se em nossa direção. Naquele instante, congelei. Novamente subiu um frio pela espinha. Fitar o rosto daquele monstro – principalmente em sua direção e naquela situação – me trazia os piores sentimentos do mundo. Jorge também estava tremendo – dava para ver pela sua mão em minha boca - e, apesar de sua boca estar a pouquíssimos centímetros de meu ouvido, não sentia mais sua respiração.

O monstro ficou durante alguns segundos olhando em nossa direção. Em seguida, ouvimos barulhos oriundos do outro lado das ruínas da antiga residência. Pareciam murmúrios. O Saci virou o foco de seu olhar naquela região. Ouvimos barulhos de folhas de árvores mexendo naquela região. O monstro soltou um débil e monstruoso sorriso e, em seguida, sob um remedoinho, desapareceu. Naquele instante, aliviei-me, de tal forma, que parecia que iria desabar.

Jorge desvencilhou-se de mim e saiu correndo em direção à fogueira.

- Vamos. – disse – Vamos aproveitar a deixa e salvar seu irmão.

Ao ouvir tal frase, acordei em um só pulo. Verdade. Poderíamos aproveitar a situação para salvar meu irmão. Bendito ser que saiu correndo aquela hora e chamou a atenção do Saci – só espero que sobreviva.

Corremos até Vagner e o desamarramos. O garoto, tão logo se soltou das amarras, me abraçou o mais forte que pôde. Pude ouvir – e sentir – seu choro. Junto, havia pequenos balbucios, que eu não conseguia compreender.

- Vamos embora! – eu disse, aliviada por estar com Vagner novamente

Percebi Jorge indo a um dos corpos carbonizados e o abaixando.

- O que você está fazendo? – perguntei, sem entender nada

- O que... foi? – perguntou Vagner, tentando desencostar o rosto de minhas pernas. Com a mão livre, juntei seu rosto novamente às minhas pernas.

- Não veja. – eu disse.

- Essas pessoas... precisamos tirá-las daqui.

- Vamos chamar a Polícia quando retornarmos à cidade. Não há nada para fazermos e aqui não há sinal de celular.

- Certo. Vamos. – disse o rapaz. Parecia contrariado.

Saímos do interior da clareira a passos largos. Olhamos para trás uma última vez e deixamos os corpos em chamas no local onde estávamos. Não havíamos o que fazer e não queríamos lhes fazerem companhia. Ultrapassamos a residência em ruínas e adentramos no interior da floresta, iluminando-a novamente com nossos celulares. Estávamos apressados e pouco nos preocupávamos em fazer silêncio – somente em não cairmos, principalmente porque, agora, descíamos o morro.

Jorge continuava a fitar o seu celular constantemente.

- Na internet, há inúmeros relatos da aparição do Saci pela cidade. Fotos, imagens, pessoas desesperadas em busca de seus parentes... só que, do nada, ninguém mais postou mais nada...

- Porque o Saci já estava no seu ritual final. Então, ele não apareceu para mais ninguém. Você viu que os corpos já estavam carbonizados quando chegamos...

- Sim, mas... postou nada mesmo... ninguém mais... nem mais pedidos desesperados de socorro, nem outras coisas normais... eu tenho mais de mil pessoas no Facebook. Era para ter pelo menos um post por minuto, como sempre tem.

- Vamos nos apressar. Talvez descobrimos alguma coisa quando voltarmos.

- OK. – ouvi Jorge falando atrás de nós. Como descíamos às pressas o morro, Jorge acabou ficando para trás.

Continuamos a descida, à frente de Jorge, durante um ou dois minutos. Estávamos descendo tão depressa que Vagner, certa hora, diminuiu a caminhada e comentou comigo:

- Cadê o tio Jorge?

Parei naquele instante. Realmente não ouvia mais os passos de Jorge logo atrás de mim. Não sei porque mas, naquele instante, um frio intenso subiu por minha espinha. Fiquei com medo do pior, embora imaginei que o mesmo ou se atrasou com o incessante costume de andar olhando o celular ou se perdeu da rota improvisada.

- Amor? – perguntei. Minha pergunta ecoou aos quatro cantos, mas não obtive resposta

- Amoor! – novamente não obtive resposta. Fiquei enfezada. – Só me faltava essa... – deixei escapar

Voltei em direção à rota que havíamos acabado de passar.

- Onde você vai? – perguntou Vagner

- Só vou ver onde está Jorge. – disse. Comecei a subir. Subimos – eu e Vagner – um minuto inteiro, enquanto chamava por Jorge, sem sucesso

- Onde será que ele foi parar? – me perguntei. Postei a continuar minha subida quando, repentinamente, senti uma pedra maior que o comum no caminho do meu pé. Chutei-o e percebi que o barulho da tal pedra era diferente de uma pedra comum. Abaixei o feixe de luz do celular em direção ao chão. Sobressaltei-me.

- PUTA QUE PARIU!! – gritei, aos quatro cantos

Havia um celular caído ao chão, semelhante ao de Jorge. Ao lado dele, havia uma poça de sangue que fazia um caminho à minha esquerda. Virei rapidamente o celular em direção ao caminho de sangue. Meu coração saltitava nervoso dentro do peito e parecia que o mesmo iria rasgar minha pele e sair entre meus seios. Minha mão tremia e eu suava de nervoso. Na direção do feixe de luz do meu celular, caído entre duas árvores, jazia o corpo inerte de Jorge, com parte da cabeça desfigurada e vertendo generosas quantidades de sangue.

Vagner soltou um grito em silêncio do meu lado e eu não fiz nada. Como irmã mais velha, não deveria deixar o pobre garoto fitar aquela cena, mas eu me encontrava paralisada. Meu coração parou de saltitar nervosamente dentro do peito e parecia que congelara. Meu corpo inteiro parecia que congelara. Sentia que iria desmaiar em breve.

De tão paralisada meu corpo estava que meu celular foi ao chão, caindo e desligando a lanterna, imergindo eu e Vagner na mais completa escuridão. Percebi meu irmão desesperado se abaixando, enquanto falava algo que meus ouvidos não quiseram ouvir. Repentinamente, a luz do meu celular voltou a brilhar, apontada em direção aos meus olhos – que pareciam não se importar em querer fechar e não ficarem ali, se queimando.

- Eita... – gritei meu irmão, desesperado. Eu não havia lhe ensinado ainda a soltar um bom “Puta merda!” nos momentos em que nos assustamos. – Atrás de você!! – gritou, retirando-me de meus devaneios

Virei o corpo para trás, o mais rápido que pude. Percebi o Saci a centímetros de mim, com seu sorriso malévolo, que talvez jamais esquecerei e ainda me assombra em meus pesadelos. Ele se encontrava atrás de mim, com um pedaço de pau em punhos. Tentei me mexer, mas senti uma imensa dor na minha cabeça, que me fez perder por completo minha consciência.

Acordei de inopino. Minha garganta estava completamente fechada por algo. Tossi consideravelmente, até conseguir expelir por completo o que a tampara – terra fresca. Minha cabeça girava e doía consideravelmente, como se eu tivesse sido acordada repentinamente. Minhas vistas estavam embaçadas, o que me impedia de ver por completo a situação à minha volta. Percebi apenas que me encontrava no meio da clareira, entre os corpos carbonizados, jogada no chão e de costas para o pelourinho. Não havia mais fogo que consumia os corpos, que estavam ali, dependurados e parcialmente enegrecidos, com a pele e parte dos nervos e carne destruídos.

Tentei me levantar, mas não obtive êxito. O corpo doía incomensuravelmente e qualquer movimento era impossível. Tinha a sensação que somente dois ou mais pontos do corpo doíam e o restante era reflexo destas dores, mas não conseguia descobrir se era verdade. Tentei novamente me levantar, porém percebi que algo mais me impedia: cordas. Pernas e braços estavam amarrados e eu me encontrava amordaçada. Percebi que seria bastante dificultoso sair dali.

Estava bastante frio – possivelmente por causa da floresta ao redor e de um rio que passava aos fundos e que dava para ouvir dali – e o frio só aumentava em meu corpo por parte do vestido que usava. Sentia-o levemente rasgado, ou faltava algo em minhas vestimentas, pois me sentia mais nua do que antes.

Com bastante empenho e em um só impulso, levantei, ficando sentada no local. Minha cabeça rodou novamente e eu me forcei para não tontear. Não queria voltar para o chão depois de tanto esforço para conseguir me fazer de pé. Olhei ao meu redor. Haviam outras sete mulheres caídas no chão, dentro da clareira e ao redor da pira de fogo. Suas posições – somadas à minha – simbolizavam alguma coisa, mas não dava para adivinhar o quê. Tinha certeza disso, pois todas pareciam ter sido colocadas exatamente no local onde se encontravam – não era ao acaso.

Repentinamente, eis que sinto uma pungente dor vinda de minha barriga. Parecia uma cólica menstrual comum, mas depois foi aumentando de tamanho até parecer que algo iria me rasgar por dentro. De fato, sentia algo se mexer dentro de mim violentamente, que parecia rasgar meus órgãos por dentro. Fui ao chão e passei a contorcer completamente o meu corpo, tamanha a dor que sentia naquele momento.

De um instante para o outro, eis que algo salta para fora do meu corpo, saindo para além da barriga sem, contudo, romper a pele da região. Era um ser de diminuta forma humana, de pouco mais de meio palmo de altura, com um pequeno gorro na cabeça e tendo uma perna ausente. Este ser pareceu que pulou para fora do meu corpo enquanto gritava algo e, em seguida, voltou para dentro. Eu fiquei ali no chão, completamente exausta, suando frio. Percebi que o monstro caminhava em direção ao meu útero.