ENSAIO PÓS-APOCALÍPTICO
Não. Não era assim que deveria ser...
Não havia verde em nossa terra. Não havia azul no firmamento. Nenhuma brisa vinda da serra, somente a dor no ar cinzento. Até que um dia tudo mudou. Canções antigas foram lembradas. Tal qual um sonho que se põe real, a esperança fora renovada. O fim definitivo para todo o mal, uma nova vida com a sua chegada...
Tudo por conta da antiga lenda, sobre a criança desamparada. Com seus fios dourados como o antigo sol, e suas vestes em tons vivos e encarnados. Seria ela a libertadora? Que poria um fim à escravidão das máquinas? A derrocada da robótica opressora? A alma humana ainda intacta?
Dessa certeza não havia quem duvidasse, e à fortaleza ela foi levada. Da aspereza da vida dura, aos poucos ela fez com que nada restasse. Do solo estéril a água brotou, e correu farta pelo descampado. Da aridez a vida germinou, e quem tinha fome foi alimentado. Não tardou para que as boas novas se espalhassem, e aos sensores cibernéticos chegassem.
A esperança dos seres de carbono era uma afronta, uma diretriz básica a ser computada. Uma ameaça às baterias vivas amedronta, e como tal deve ser rejeitada. Muitos séculos já tinham transcorrido, desde que o metal sobrepujara a carne. O tempo dos homens havia sumido, desde o último grande desarme. Os poucos que resistiam rígidos se entregaram à cruel verdade. Na equação da nova realidade, os valores se mostravam invertidos: uma gota de óleo queimado valia mais do que o sangue derramado.
Mas os homens agora não estavam sós, a alma intacta lhes acompanhava. Com bravura desatariam os nós, que a cada ser vivo torturava. Para cada fruto que a criança fez crescer, por cada hortaliça que ela fez brotar, pela luz mais branda do morto amanhecer, pelo leite fresco das parcas cabras. Por cada dádiva que lhes era negada, eles arrancariam um parafuso inimigo. Pelo sorriso da pequena amada, enfrentariam o composto de aço mais temido...
Não tardou até a investida final, a mais devastadora e jamais vista. Reluzentes máquinas sincronizadas aguardavam o sinal, como uma tela pela mão do artista...
Do cinza ao negro, o céu migrou. O estrondo de um trovão foi ouvido.
Como era possível se há muito tudo terminou? Não havia mais chuva naquele mundo perdido...
O impossível agora acontecia. Mesmo sem nuvens o céu chorava. A menininha os braços erguia, e comandava a água derramada. Em segurança as pessoas se mantinham protegidas sob telhados de acetato. Pois as lágrimas que de longe vinham, derretiam o metal ao menor contato.
Os processadores tentavam entender. Códigos binários e informações travadas. Nenhuma alavanca conseguia se mover. Roldanas e engrenagens emperradas. Luzes piscavam em intermitência muda. A fumaça fétida empesteava a planície. Os malditos suplicavam por ajuda, em cada célula artificial de sua metálica superfície.
Os portões da fortaleza se abriram. Um exército com a vingança em mente. Ancinhos e facões surgiam. Ninguém seria bateria viva novamente. Uma vez mais carne e aço se tocaram. Como a história contada de pai para filho. Mas dessa vez as máquinas não revidaram, foram arrancadas de vez do trilho.
O ácido derretera as placas. A fúria humana destroçava os fios. O sangue negro apagava as marcas deixadas pelos rubros rios. Naquele dia, o último da escravidão, o céu se abria num imenso clarão. A redoma enevoada criada pelas máquinas se dissipava como um pesadelo ao despertar. Um amontoado de ferro retorcido era tudo que restava, um sonho melhor do que se poderia esperar.
A profecia se confirmara. As antigas escrituras prosperaram. A menina dos cabelos aloirados transformara a vida daqueles que nela acreditaram.
A alegria era tamanha que eles demoraram a perceber. Se não fora das nuvens, de onde vieram as gotas sagradas? O céu limpo voltou a escurecer, pelo bailar de plataformas achatadas. Compostos orgânicos vivos e itinerantes ligados por telepatia a uma amostra ilusória. Uma falsa esperança criada a partir da história. O suco gástrico que derretera as máquinas se assemelhava ao expelido pela boca da criança. Com sofreguidão, sobre a carne fresca ela avança.
Em poucos minutos tudo devorado e digerido. Algo selvagem, inominável. Nem mesmo os robôs teriam agido de maneira tão vil e abominável.
A energia consumida sobe pelo ar, pelo toque que não se pode ver. As plataformas vivas se movem em busca de outro lugar, pois elas precisam comer.
A velha fábrica de conversão energética ainda expele uma densa fumaça, o resquício do que sobrara das baterias humanas. Sobre a pilha de inútil sucata, a imagem que manipula e engana. A simbionte deixa escapar uma visão que vislumbrara em seus ensaios neurais. De um monte elevado ela deixa voar um balão em dias que já foram normais...
Não. Não era assim que deveria ser...