ELA VEIO POR VOCÊ
O machado cortou o ar num movimento semicircular e horizontal acertando o corpo espesso do jequitibá-rosa exatamente onde deveria. Lascas da madeira nobre desciam espiraladas de encontro ao relvado ainda úmido por conta da tempestade.
O suor escorria farto através dos sulcos cada vez mais profundos do rosto do homem. Ele se sentia tão velho quanto a árvore plantada por seu bisavô quando criança, árvore essa que sua filha, sua joia mais amada, tanto gostava e a mesma que ele golpeava com violência na ânsia de retirar os elementos fundamentais para tentar salvar a menina de um destino inominável.
O jequitibá não tombou, pois era forte como deveria ser, mas cedeu um pedaço de si, uma parte importante que o homem carregava como um tesouro. Postado na varanda, defronte ao mesmo jardim de onde viera, ele olhava para o por do sol com temor e aflição. O tom avermelhado que dominava o céu trazia contornos de inegável fascinação para os olhos de qualquer mortal, mas tudo o que ele conseguia enxergar naquele firmamento encarnado era a lembrança da dor através da cor que remetia à morte.
À medida que a noite lançava seu manto escuro sobre aquele triste pedaço de chão, mais a melancolia preenchia cada recanto de sua alma perturbada. Nos últimos dez dias ele envelhecera mais do que os quarenta anos de até então, pelo menos era isso o que sua fisionomia sugeria. Mas quem o poderia culpar? Afinal perdera sua esposa de maneira cruel e sórdida, um modo que nenhum ser temente a Deus mereceria. E, para piorar, sua menina corria o risco de sofrer um destino semelhante.
Mas isso ele não admitiria, de modo algum. Sua filha seria salva, mesmo que ele tivesse de morrer para isso. Só de pensar nessa possibilidade, a de perder seu tesouro, o temor e a aflição que lhe atormentavam o espírito e roubavam o seu sono se convertiam em raiva. Um ódio cego que parece lhe conceder um fio de vitalidade para forçar com determinação a lâmina em sua mão direita. Aquele fragmento de jequitibá precisava ganhar a forma correta, uma configuração aguçada e fatal o suficiente para salvar sua garotinha.
Nos últimos malditos dez dias a morte em forma de demônio tinha visitado a menina duas vezes, e em cada uma delas roubara um pouco de sua essência vital, poderia tê-la matado, mas não o quis. O objetivo seria bem maior do que torná-la exangue até ceifar sua vida. Da primeira vez o homem nada pode fazer, a não ser tentar superar o horror que assaltara seus olhos e desaparecera pela janela na noite fria. Na segunda ele estava preparado, ou pelo menos assim pensou, e tentou lutar da melhor maneira que pode contra a ameaça que espreitava sua filha, mas, daquela noite pouca coisa restava em sua mente, a não ser a lembrança de acordar com a cabeça ensanguentada no último degrau da escadaria.
Muitos na sua situação sumiriam no mundo. De certo, tomariam a menina nos braços e fugiriam sem olhar para trás. No entanto, mesmo com a mente perturbada, ele se lembrava do que diziam as antigas lendas, o demônio viria três vezes para sacramentar a conversão de sua vítima, e, retirá-la do local do primeiro ataque seria assinar a sentença de morte da infeliz. Nenhuma pessoa, uma vez atacada, resiste se levada do local da investida contra a sua vida. Era difícil, mas ao mesmo tempo fundamental, aceitar a realidade, não haveria como sobreviver depois que o demônio prova o sangue da pessoa escolhida. A partir desse momento ele se apodera de sua alma e tem o poder de decisão: ou sorve até a última gota, ou a traz para o submundo. O único jeito de evitar tal fatalidade seria destruindo o demônio.
Ainda recorrendo aos ensinamentos das narrativas que costumava ouvir, o homem sabia que a ameaça só poderia ser contida através de uma arma produzida com uma lembrança boa da vítima, com algo especial, como o jequitibá que a menina tanto adorava. Agora, o pedaço extraído da velha árvore se apresentava como uma estaca meticulosamente afiada pelo aço frio de um pai desesperado.
A noite alta se mostrava, e com ela a passagem livre para toda a sorte de criaturas que não ousam revelar suas faces hediondas sob a luz do astro-rei. A claridade trazia bênçãos e proteção, ao passo que as trevas tratavam de ocultar os passos daqueles que buscam ocupar um espaço que não deveriam possuir.
A menina, um reles arremedo de quem costumava ser, permanecia imóvel. A alvura de sua tez chegava a se mesclar com os tecidos do leito que a resguardava. O arroxeado ao redor de seus olhos era o diferencial a quebrar a monotonia monocromática de sua existência. Ela sofrera bastante e ainda sofria. Em diferentes fases, era verdade, mas cada uma com sua própria dose de perversidade. Choro e gritos. Desespero e dor. Febre e convulsão. Cada etapa a levava rumo ao desejo mais legítimo que já tivera: a vontade de morrer. Mas, a morte não a visitara, ainda, e em seu lugar apenas o sentimento irreversível e paralisante da resignação surgira.
O pai, como todo bom protetor, defendia a entrada do quarto. Em seus braços a estaca de jequitibá aguardava pela oportunidade de ação. A ponta aguçada fora devidamente embebida no sangue inocente das feridas expostas no pescoço da garota. Uma vez que o líquido inocente tocasse o corpo mortalmente ferido do demônio, a criança estaria a salvo. Sua alma seria purificada e seu corpo se tornaria livre para crescer.
A janela acima da cabeceira da cama estava cerrada com trancas adicionais. Tábuas espessas de madeira reforçavam a proteção contra qualquer coisa que ameaçasse atravessar o vão. O silêncio da noite hipnotizava, chegava ao ponto de torturar até a mais disciplinada vigília. As pálpebras pesadas do homem estavam prestes a se render quando um ruído perturbador o tirou do transe no qual estivera mergulhado. Parecia que a porta principal da casa estava sendo forçada.
No emaranhado desconexo que refletia seus pensamentos, ele vislumbrou a possibilidade de enfrentar a criatura o mais longe possível da menina, de modo que descer e interceptá-la seria a melhor possibilidade. Então, pé ante pé ele venceu os degraus e permaneceu diante da folha de madeira que lacrava a entrada da sala de estar.
Pancadas intermitentes marcavam o ritmo no outro lado da porta. A cada batida parecia que seu coração explodiria em mil pedaços. As dobradiças não resistiriam por muito tempo, o tremor não abalava apenas as paredes, mas também a confiança que até então demonstrara. Uma...duas...mais três investidas e a porta veio abaixo.
Diante do pórtico de entrada, em meio às trevas exteriores, apenas duas órbitas avermelhadas se mostraram. Porém, não tardou até que um sorriso de adagas brancas e afiadas surgisse indicando o tortuoso caminho que aquele pai teria de trilhar para devolver a liberdade à sua filha.
Mas ele não teve muito tempo para pensar, pois o enorme cão negro cruzou o ar num salto improvável em sua direção. Os dentes do animal cravaram-se em cheio em seu ombro esquerdo. Filetes espessos de sangue escorreram pela rigidez de seu braço, o qual tentava com todo o esforço empurrar a cabeça do bicho para longe de si.
Com muita determinação e fazendo uso de toda a força que dispunha, ele conseguiu girar e se sobrepor ao cão. No entanto, a estaca, a arma letal e definitiva, saíra de seu domínio com o movimento.
A mandíbula da fera trabalhava incessantemente abocanhando o ar e vertendo uma saliva farta e fétida com o ato. Garras afiadas estampavam riscos escarlates na pele no homem, o qual, mesmo sofrendo com a dor lancinante conseguia reter o pescoço do animal sob seu domínio, torcendo para que fosse capaz de mantê-lo assim até que conseguisse alcançar a faca em sua cintura.
As mãos tateavam em busca da salvação em forma de mogno e aço carbono. A criatura se debatia incessantemente, tornando a tarefa ainda mais árdua. Os dedos tocaram o cabo e conseguiram puxá-lo até a palma da mão. Uma vez em posse da faca, o braço girou com velocidade em busca do alvo, mas a intenção fora desfeita por conta da mordida certeira no pulso armado. Os dentes perfuraram pele, carne e músculos, mas a dedicação daquele pai não o permitia regredir, e sua mão mesmo ferida seguia pressionando em busca do ataque. Ele forçava ao máximo, mas a pressão contrária não o deixava avançar por um milímetro que fosse. Ele sentia que seu pulso estava sendo destroçado e que precisava tomar alguma atitude, ou todo o esforço para salvar a menina teria sido em vão.
De súbito, uma ideia surgiu. E sem dar tempo para uma mudança de planos, ele abriu mão da faca, deixando-a cair para que a outra mão largasse o pescoço do cão e interceptasse o instrumento no ar. Mais rápido do que um novo e possivelmente definitivo ataque do cão, o homem conseguiu introduzir a lâmina no dorso do animal, que uivou de dor e de raiva. Aproveitando-se do momento favorável, ele golpeou repetidamente contra o oponente, causando-lhe ferimentos em diversas partes do corpo, de modo que não pudesse mais se recuperar.
Ele jogou a carcaça do inimigo vencido para o lado, como se aquele peso deslocado representasse o livramento de todo o fardo que o acompanhara nos últimos dias. Mutilado, ensanguentado e cansado, esse era o seu estado. Mas estava de pé. Ele sabia que o demônio poderia assumir a forma de animais noturnos, contudo, conforme a adrenalina baixava, algo passou a perturbá-lo...
O demônio não poderia ser morto por uma lâmina simples como aquela, entretanto, definitivamente o cão havia sido vencido, o que o levava a crer que aquele animal não era o inimigo afinal. Com isso, outro ensinamento assaltava suas memórias, a de que a criatura da noite, a verdadeira, poderia dominar a mente fraca de outros seres e fazê-los objetos de sua vontade, como aparentemente fizera com aquele pobre cachorro...
Então um sentimento ruim o dominou, algo que o fez tremer dos pés à cabeça: a menina estava só!
Com o desespero a lhe açoitar, ele recolheu a estaca no chão e subiu as escadas de forma rápida e atabalhoada. Com um chute, abriu a porta do quarto. O horror estava espalhado em todas as direções. Ali, diante dos seus olhos, com sua menina nos braços, estava a criatura, o demônio que os visitara por duas vezes anteriormente e que retornava pela terceira na ânsia de cumprir sua missão.
A vampira estava empoleirada na cabeceira da cama. Como uma ave de rapina, as garras que ornavam seus pés cravavam-se firmes nos adereços da madeira. A despeito da palidez mórbida, ela parecia não ter mudado absolutamente nada desde que morrera, pelo contrário, parecia mais vívida, renovada. E era justamente isso o que mais doía no coração do homem. Vê-la daquele jeito, como se estivesse viva, trazia à tona tudo o que nunca mais poderia ter. Ele sabia que aquela não era mais a sua esposa, mas os seus olhos insistam em mostrar-lhe o contrário.
Ele não conseguia se perdoar por não ter sido capaz de proteger a esposa, de ter evitado que fosse levada. E, uma vez longe, de ter sido mutilada, torturada, sugada por três vezes e morta, para depois ser revivida não mais como um ser humano, mas como um demônio hematófago.
Ele não sabia se o que movia as intenções da vampira eram os antigos sentimentos de mãe, a vontade de trazer sua cria para perto de si, ou se era apenas um mesquinho desejo de torturar sua alma, de eliminar do mundo tudo o que ele mais amava.
De qualquer forma, ele sofria. E ver sua filha semimorta, nos braços daquilo que ela costumava chamar de mãe, mas que estava naquele momento a um passo de matá-la e amaldiçoar para sempre sua alma infantil, o atormentava mais do que tudo.
Mas era preciso aceitar os fatos, não havia mais como ter a esposa de volta, mas ainda poderia salvar sua menina. E, para tal, não poderia perder mais tempo.
Com a estaca nas mãos, ele correu de encontro a vampira, que deixou a menina cair sobre o colchão e saltou rumo ao embate definitivo. Mais uma vez marido e mulher encontravam-se como num abraço, mas desta vez não havia volúpia ou paixão, cada movimento que executavam era manipulado pelas mãos frias da morte.
Os lábios no pescoço não traduziam um beijo tórrido, mas uma mordida raivosa capaz de rasgar a carne e roubar sangue e sonhos. O homem gritou, enquanto a escuridão dominava sua visão. Ele sentia que todo o seu liquido vital escapava pelo vão aberto em seu corpo, e à medida que enfraquecia, sua esposa-vampira se tornava mais forte.
A estaca caiu, e seu braço dilacerado pelo cachorro era incapaz de alcançá-la. Mas mesmo assim, ele se esforçava para recuperá-la. O demônio exibia um sorriso ensanguentado enquanto o prendia com as pernas e se preparava para destroçar de vez seu pescoço.
Ele resistia, tentava esticar o braço o máximo que podia, mas os dedos que antes raspavam na madeira do jequitibá simplesmente não o sentiam mais, pois a estaca não estava mais no chão.
Foi quando ele olhou por detrás da mulher e viu sua filha, de pé, com a arma na mão. Ele tentou esboçar um sorriso, o qual perdurou apenas por uma fração de segundo, pois a estaca cravada com violência nas costas da vampira transpassou não apenas o coração seco do demônio, como também a fonte metafórica de todo o amor de um pai.
A menina retirou a estaca e a jogou para o lado, para em seguida afastar a mãe para longe do pai. Lentamente, ela pousou o ouvido no peito do homem, nenhum som se fez ouvir. Com repulsa, olhou para o sangue que vertia farto do pescoço retalhado e se lembrou do que o pai lhe dissera dias atrás, “filha, ela veio por você”. Mas para a menina, nada disso importava, ela não precisava mais de pais. A terceira mordida agira antes da estaca de jequitibá. Ela estava livre. Não para crescer como uma criança, pois era agora um demônio sedento. E, como não poderia beber de um morto, saiu pela noite em busca de alimento.