O SONHO
I
— Como você pode ter se enganado! — Gritou Lucas num tom ameaçador, intimidando a balconista do aeroporto.
— Eu não vou me atrasar por erro seu. Se não me colocarem neste voo em direção a Londrina, eu vou processar você e está companhia aérea. Me entendeu!
— Senhor se acalme. — Disse Teresa, tentando acalma-lo.
Ele permaneceu indignado, uma face que denotava raiva, frustração e talvez uma fração de ódio. Suas sobrancelhas dobravam-se, inclinadas num ângulo sutil até tocar na pálpebra dos olhos, negros como fundo do oceano. O rosto dele parecia um pimentão, escarlate vivo, o vermelho aparentava inchar por entre suas bochechas e o sangue pulsava.
A balconista era nova, uma novata, não completara nem uma semana no cargo e já tinha levado uma suspensão, faltado dois dias seguidos e ainda prejudicou a viagem de diversos passageiros que saíram insatisfeitos após ela cadastrar seus voos de forma incorreta, contudo, somente homens. Isso mesmo, Homens! Teresa tinha longos cabelos ondulados loiros, lábios carnudos, envolvidos num batom vermelho, olhos marcantes e azuis como a noite daquele dia. Todos os homens que passavam por seu balcão se entusiasmavam, alguns até se excitavam, flertando incontáveis vezes como cachorros no sio. Ela podia não ser a mulher mais sagaz daquele aeroporto, porém, sabia como dobrar um homem. Sempre que era advertida, Teresa jogava o cabelo para trás, enchia os olhos de lagrimas e suplicava, como um gato. Cinco das seis vezes que falou com seu chefe acabou por não levar nenhuma punição, somente quando Rodrigo, seu supervisor não se encontrava, Maria a coordenadora lhe dava uma dura. Com ela era difícil tratar. Até tentou leva-la em sua lábia, no entanto, ela era tão onipotente e implacável como um muro revestido de aço. Não era comum ver uma mulher tão alta como ela, com dois metros de altura, morena, usando um turbante verde-escuro com pintas pretas e castanhas sobre seus cabelos negros encaracolados e em seu rosto, na borda do nariz havia uma verruga, isso mesmo... uma verruga que tentava esconder com uma maquiagem pesada e além disso, tinha um porte quase masculino.
Durante a advertência, Maria disse.
— Ou você faz as coisas certas ou vai embora. — Com ênfase em “Vai em embora”.
— Pelas faltas que tem vai levar uma suspensão de dois dias e da próxima vez está no olho da rua. Me entendeu!
Maria fez que sim, balançando a cabeça.
Teresa nunca foi de levar desaforo para casa, mas com aquilo era melhor não mexer, pensou ela. Quem sabe o que uma pessoa daquela poderia fazer. — Sei lá. — Pensou. Maria tinha um jeito... sabe... de macumbeira... virada na pomba gira, servidora de Exu, Oxóssi e outros seres que nem eis de pronunciar que já fico arrepiado. Enfim, Teresa deu de ombros como quem diz. — Tó nem ai. Se me mandar embora encontro algo melhor. Se não aqui, em outro.
Foi no dia seguinte de sua advertência que tudo ocorreu. O aeroporto abriu como sempre às cinco horas da manhã. A madrugada tênue e gelada desenhava o horizonte com uma malha fina de garoa. As gotas de água eram tão gélidas que pareciam congelar-se sobre a pele. Um alvorecer desdenhoso. O sol nem ameaçou nascer e o dia já começara turbulento. Um dos voos com direção a Salvador teve problemas na decolagem por uma falha no motor detectado por um técnico chamado Carlos da Costa Henrique. O avião que ia decolar às seis horas da manhã abruptamente não decolou. O piloto, Sandro Dias, avisou a base que havia algum problema, pois, os motores não ligavam. Carlos, o técnico responsável, foi o primeiro a analisa-los. Quando chegou no local notou um som esguio e percebeu que algo estava errado. Alguma coisa estava dentro da turbina esquerda, se mexendo, movendo-se com cautela e de forma ágil. Aquilo não possuía forma, no entanto, pulsava e crescia, inflando como um balão. Carlos puxou um rádio do bolso do calção estilo militar com faixas pretas e verdes em diagonal e ligou para seu chefe, Marcelo Duarte de Almeida.
— Chefe. Tem alguma coisa aqui em baixo. Dentro da turbina. Alguma coisa no escuro.
— Como assim Carlos. Como assim.
Carlos gritou, um grito forte e assustadoramente terrível. Não respondeu por cinco minutos e então o rádio de Marcelo começou a vibrar incessantemente. Marcelo atendeu. Carlos surgiu em choque.
— Socorro. Socorro. Ele rasgou minha perna. Meu deus ele rasgou minha perna. Ele está... ele está... não pode ser. Não. Socorro! Socorro!!!
Em seguida um guincho ecoou, ruindo do Walk Talk. Marcelo ficou imóvel com o rádio encostado na têmpora esquerda, ouvindo um som nojento, um som cortante de algo mastigado qualquer coisa e fazendo um eco rígido e molhado, como quem come enquanto lambe os beiços. Logo em seguida aquilo cessou, com um gorgolejo final. Ele suplicava para deus e para todos os santos na terra que pudessem lhe ouvir, para que aquele som não fosse... você sabe... de algo devorando Carlos.
— Carlos! Carlos... — Gritou Marcelo.
— Carlos. — Repetiu, mais uma vez sem sucesso e tudo ficou em silencio.
Vieram mais uma dúzia de sons ensurdecedores, como ossos quebrando e pele sendo rasgada. Um sentimento de agonia lhe acometeu, no amago da alma e um medo fulminante lhe abraçou. Marcelo estava em sua sala, sentado na poltrona preta ao lado de uma mesa de madeira escura com as bordas riscadas, velhas e meio raladas. Sua reação fora postergada, e ficou ali parado na poltrona com o rádio no ouvido, esperando que algo acontecesse. O minuto seguinte pareceu durar uma vida. Uma vida inteira...
Teresa havia ouvido a história de seus colegas no almoço durante uma conversa. Todos não paravam de falar de um técnico que havia sumido dentro do motor de um avião. Contudo, a conversa que seguia naquele Break era mais cômica do que alarmante. As pessoas riam, riam como porcos guinchando enquanto saboreavam seus pratos de comida. Eles nem sabiam, mas Carlos havia sofrido um destino muito pior do que a morte.
Enfim, Lucas veio em seguida, quando o turno de Teresa começou, era quase uma hora e meia. Ela olhava para os relógios com um enorme receio. Estava naquele emprego a menos de uma semana e já não suportava mais trabalhar. Só sabia reclamar de como era chato isso, chato aquilo, as horas demoravam para passar, essas e muitas outras. Ainda assim era o centro das atenções, tão popular como uma barata quando surge numa sala de estar no meio de uma reunião de mulheres no domingo à noite.
— Como posso ajuda-lo senhor? — Perguntou Teresa.
Lucas chegou por volta das cinco horas da tarde, usava um sobretudo negro, com o cabelo penteado para trás e uma pequena corrente ao redor do pescoço com uma cruz no centro. Levava uma mala, daquelas executivas, caras de deixar seu rosto caído no chão, revestidas de couro escuro com duas trancas de combinação e uma série de pastas brancas, as quais envolvia no braço.
Teresa reparou no rapaz como uma leoa. O homem bem-apessoado e vistoso, lhe acometeu um sentimento insólito de êxtase frenético que fez seu sangue ferver. Literalmente ela babava com os olhos.
— Eu quero uma passagem para Londrina. Preciso para ainda hoje! — Falou Lucas olhando para as horas do relógio de pulso.
Teresa olhou para o monitor, ela ficara perplexa com a beleza devastadora dele. Ficou até vermelha de vergonha.
— Senhor, todos nossos voos da tarde já foram encerrados, podemos colocá-lo no voo da noite que sai às oito e meia, no entanto, só temos assentos na primeira classe. — Soltou ela, com um sorriso de orelha a orelha e uma voz encantadora, fina, esbelta e cheia de charme.
O homem nem reparou nela, na verdade, nem olhou para seu rosto, apenas tirou um cartão Mastercard Platinum da carteira e a entregou, como quem diz. — Tanto faz!
Teresa não notou naquele momento, porém, confundiu os dados de Lucas com os do cliente anterior, como fizera outras vezes e acabou agendando a viagem para o voo errado. Ela lhe entregou o comprovante e a passagem aérea e ele se distanciou do balcão e caminhou até área central do saguão.
A porta do aeroporto se abriu indiscretamente sem que ninguém entrasse. O vento penetrou dentro do saguão principal rugindo e esvoaçando tudo como turbilhão, intrínseco a um frio devastador. Teresa sentiu um formigamento intenso, como se algo farfalhasse por entre sua pele e o frio começou a congelar seu corpo, que em resposta parou de responder, como se seus nervos tivessem se tornado gelo. Ela ficou sem ar e alguma coisa lhe impedia de pedir socorro. Seus lábios se dobraram e o vermelho vivo dos lábios, rubro como o sangue esmaeceu e ficou azul. Seus olhos viraram por um instante e ela ficou pálida como um cadáver.
— Eu quero você! — Gritou uma voz putrefaça no seu ouvido. Um eco pairou dentro de sua mente.
— Socorro. — Sussurrou ela, desbaratada.
Ela sentia uma mão apalpar seu rosto, conduzindo-se dos lábios a testa, num toque gélido, úmido e viscoso. Seus olhos ainda se moviam, mas ela nada vira. Era como se uma penumbra lhe acobertasse. Ninguém notou sua situação. Até Cíntia, a atendente que trabalhava no balcão ao lado a ignorava.
Dois guardas, Kevin e Marcos se dirigiram a porta. Eram dois armários vestidos de preto. Kevin o mais alto, com dois metros de altura e um rosto repulsivo com linhas de expressão falhas e uma cicatriz ao lado da testa. Marcos, diferente de Kevin era mais baixo, porém, muito gordo, com uma papada feia e braços grossos e musculosos. Seu rosto era talvez mais repulsivo do que Kevin, pois, este era cego de um dos olhos, ao qual não se importava de mostrar o globo branco, com a íris esbranquiçada. Muitos não tinham estômago suficiente para manter uma conversa olho a olho com ele por mais que alguns minutos. Marcos também era careca e tinha uma cicatriz no queixo, uma pequena queimadura.
— Vamos fechar logo essa merda. Me ouviu Kevin. — Falou Marcos.
Finalmente haviam conseguido fechar a porta, o frio se tornou um ar quente e caloroso, Teresa tomou controle novamente de seu corpo. Ela deu um grito tão forte, tão forte que todos do saguão se assustaram. Momentos depois ela caiu no chão e foi acudida por seus companheiros. Erik foi o primeiro a chegar. Ao toca-la sentiu sua pele gelada, quase como a de um cadáver. Porém, de repente ela acordou.
— Teresa. Está bem? O que aconteceu? — Perguntou Erick.
Uma multidão a cercou, entre funcionários e passageiros curiosos, com o coração disparado pensando que iam ver uma cena “entusiasmante”. Após acordar, Teresa não se recordava de nada. A última coisa que lembrara era de quando atendeu Lucas a alguns minutos.
— Vamos. Vamos. Alguém chame uma ambulância.
— Não por favor. — Disse Teresa. — Eu estou bem.
— Você desmaiou e, além disso quando caiu deve ter batido a cabeça no chão, afinal sua testa está vermelha! Não está. Pode ter tido uma concussão. O melhor a se fazer é ir para o hospital.
— Não Erick. Por favor, eu estou bem, eu estou bem... — Insistiu ela quase que em pânico.
Erick achou estranho. A expressão de seu rosto era pávida, com uma lividez sem preceitos, contudo, sem demora tornou-se tão inexpressivo, como se nada houvesse ocorrido. Ele a levantou, levando-a para uma cadeira atrás do balcão. Sarah correu com um copo de água na mão, balançando-o e chacoalhando-o. David que via a cena de longe gritou.
— Não corra! Vai acabar caindo.
— Desculpa chefe, é que eu estou levando esse copo de água para uma atendente que está passando mal.
David a entreolhou e depois apontou para uma placa na parede dizendo, “não corra”.
Sarah diminuiu a velocidade, mas quando cruzou o corredor e ficou fora do alcance da visão de David, correu como uma doida desajeitada novamente. Chegando no local, ela enfiou a água goela abaixo de Teresa, que quase golfou, ficando com olhos vermelhos.
Lucas acompanhou tudo de longe, mas com a multidão cercando sua visão, acabou não entendendo muito bem o que havia acontecido. Sentado em uma mesa no centro do saguão, ele resolveu se levantar, como quem não consegue ficar muito tempo parado e foi na direção das lojas, não as lojas baratinhas daquelas que é tudo um e noventa e nove, não... Lucas se dirigiu para a cafeteria World Cofe, aonde um expresso poderia custar até vinte reais e matar uma pessoa de classe média de enfarte. Lucas não se importava com o preço, o café deles sempre foi o melhor que tomara quando ia para este aeroporto.
A primeira vez que experimentou foi numa segunda-feira, dezessete de maio de 1999. Ele chegou adiantado, seu voo estava marcado para às duas horas e ele chegara uma hora antes, então pela primeira vez notou a cafeteria, localizada na ala leste do saguão, com painel dizendo. — World Cofe, café de hoje e de todos os dias. Lucas se sentou no balcão da cafeteria e pediu um expresso com uma gota de leite. Seus lábios sentiram o calor suave e o gosto doce com um toque amargo desceu por sua garganta. Manjar dos deuses celestiais, pensou ele, sem outro adjetivo para descrever aquela iguaria.
Nesta época, a World Cofe era uma cafeteria menor, não haviam aonde os fregueses sentarem, eles apenas se apoiavam no balcão, tomavam seu café e depois iam embora. Porém, Leonardo Neri, um aprendiz que ganhava menos de um salário mínimo teve uma ideia de expandir o lugar criando uma área para que as pessoas se sentassem e saboreassem o café. Além de que quando o balcão estivesse cheio, eles poderiam preencher os pequenos quiosques, envolvidos de bancos, cadeiras e mesas de quatro acentos. Em meados dos anos de 2003 e 2004, Leonardo conseguiu convencer seus chefes desta ideia, nesta época ele já era ajudante geral e logo na primeira semana que estreou sua ideia, foi um sucesso, as vendas duplicaram e chegaram até triplicar num dia. Quatro meses depois foi promovido a gerente.
Depois daquele dia de 1999, Lucas nunca mais deixou de ir ao estabelecimento, para ser franco havia virado rotina. Sempre que viajava, ele ia até a World Cofe para tomar um café.
Aproximando-se da cafeteria, uma mulher cruzou seu caminho, era morena de cabelos lisos negros, usava um chapéu Floppy marrom, trajava um vestido bege, com detalhes dourados e sapatos com detalhes em cetim. Tinha cerca de um metro e setenta e parecia estar com pressa, tanta pressa que nem notou que sua carteira havia caído.
Lucas se abaixou, apanhou a carteira e correu para alcança-la. A mulher entrara na cafeteria World Cofe. Ela foi até o balcão e pediu um café forte. Ele chegou em seguida, puxando a mala e quase derrubando as pastas do braço, segurando a carteira na ponta dos dedos.
— Senhora! Senhora! — Repetiu encostando a mão em seu ombro.
A mulher se virou e no momento que o fez, deu de cara com Lucas. O rapaz se intrigou, franziu a testa e olhou fixamente para seu rosto, como quem observa o inobservável, algo tão singelo que não poderia existir mais belo. Percebeu sua formidável beleza que parecia até sobrenatural. Sua pele tinha um tom rosáceo que envolvia os olhos castanhos claros uniformemente tornando-os vivos como ígneo, a boca revestida de bege parecia brilhar, combinando com seus volumosos cabelos acastanhados com mechas escuras.
— Me desculpe, a senhora deixou cair sua carteira.
— Nossa. Muito obrigado, estou sendo muito desajeitada hoje. — Falou Olivia em cortesia sorrindo.
— Você por acaso toma café aqui na World também? — Perguntou Lucas a entreolhando e sorrindo como um tolo.
Ela fez que sim e respondeu.
— Desde sempre. — Respondeu ela.
Olivia demonstrava estar com presa, como alguém atrasado para um compromisso, mas sempre arranjava tempo para experimentar uma xícara ou duas de café. Ela se aproximou do balcão, espalmou o cabelo com a ponta dos dedos e chamou o atendente. Um jovem chamado Denis, vestido em um uniforme marrom com o logo da World Cofe desenhado no peito, uma xícara de café com uma colher a frente e grãos sendo despejados dentro da xícara.
— Por favor. Pode me servir um expresso com uma gota de leite.
Lucas aproveitou e disse.
— Dois, eu também vou tomar um...
— Eu não acredito, de que lugar você vem! Eu achava que era a única neste mundo que tomava café expresso com uma gota de leite.
Lucas sorriu novamente, tremendo os lábios. Em seguida aproximou-se, encostou a mala no balcão e colocou as pastas sobre o mármore.
— Me chamo Lucas. — Disse ele estendendo a mão na sua direção.
Olivia o desafiou com um olhar desconfiado, virando o rosto dois graus para a esquerda. Após analisa-lo bruscamente ela estendeu seu braço receosa.
— Olivia. — Disse ela.
— Muito bem! O que uma mulher como você faz num lugar como este.
— Hum! — Respirou ela. — Eu que pergunto.
— Tuche! — Respondeu ele, olhando para baixo, como quem se arrepende momentaneamente.
Denis trouxe os expressos em seguida. Lucas tirou a carteira do bolso e... Olivia sacou o cartão de débito mais rápido.
— Guarde essa carteira querido. Deixe-me pagar este café para você.
Lucas deu de ombros e deixou-a pagar.
— Julgo que agora devo ser chamada de cavalheiro, não acha! — Insinuou ela.
Ele achou aquilo tão “sexy”, Lucas tinha um fetiche enorme por mulheres decididas, que tomavam a frente do homem.
— E eu sou o que? — Perguntou ele.
— Não sei. Veremos...
Olivia que estava atrasada acabou perdendo o compromisso, pois, a companhia de Lucas fora de uma certa forma, agradável e interessante. Após horas conversando, Lucas deixou a passagem aérea cair sobre o balcão. Olivia arregalou os olhos e falou.
— Uhm-m-m-m! Para aonde será que um homem como você vai?
Lucas permaneceu enigmático.
Ela puxou a passagem, arrastando-a pelo balcão com o indicador, até que chegou próximo suficiente, podendo leva-lo às mãos e durante isso, ele a observara com um certo grau de excitação.
— Então, veremos agora! Posso acabar até indo te visitar.
Olivia abriu a passagem frente ao rosto e disse.
— Então o seu destino é Brasília.
Um silêncio pairou pelo ar.
— Como assim Brasília? — Perguntou Lucas pensando que era uma brincadeira.
— Não é isso que está escrito aqui!
Ele puxou a passagem de sua mão com ignorância.
— Nossa! Calma... Calma... O que aconteceu...
Lucas segurou a passagem contra a mão, observou-a com prontidão e disse.
— Desgraçados.
Uma sensação de desespero o abalou, fazendo-o suar frio. Ele ficou pálido, tão pálido que poderia morrer a qualquer momento, tão pálido que parecera ver o próprio inferno com os olhos e ter cumprimentado o diabo erroneamente e ele lhe arrancara o coração puxando-o do peito com a mão.
Ele nem se despediu. Apenas pegou a mala com a mão direita, ajuntou as pastas e colocou abaixo do braço esquerdo e voou, correndo com pressa e nervoso em paços rápidos e pesados.
Olivia ficou sem palavra, apenas terminou de tomar o drink em cima do balcão, se levantou e foi embora.
— Essa gente!
Eram oito e meia em ponto. Haviam se passado mais de três horas do ocorrido e Teresa voltara a trabalhar em seu pequeno cubículo no último guichê ao lado da parede. Lucas chegou no balcão de atendimento dela como um trem, cortando a fila e provocando um imenso tumulto.
— Meu voo! Meu voo! — Gritava Lucas nervoso empurrando as pessoas e tentando chegar até o balcão.
Teresa viu de longe o homem que vira tão belo se tornar um lobo carrancudo e nervoso, quase espumando.
— Vocês trocaram meu voo. Trocaram meu voo. E agora meu deus. Eu preciso ir pra Londrina. Sua idiota, não era pra Brasília. Puts! e agora o que eu vou fazer. E agora o que vou fazer meu deus. — Falava Lucas intimidando-a.
— Acalme-se senhor, por favor. O que aconteceu? — Perguntou ela tentando lhe acalmar.
— O que aconteceu. Você ainda pergunta. Eu comprei uma passagem para L-O-N-D-R-I-N-A! — Soletrou ele aos berros, jogando sua passagem aérea no balcão.
— Olha isso! Olha isso! Essa passagem é para Brasília, não para Londrina. — Continuou.
Teresa voltou-se para o monitor ao seu lado, buscou pelos seus dados e percebeu que havia confundido sua passagem com a de outro passageiro.
— Me desculpe senhor. Parece que houve um equívoco e sua passagem foi trocada.
— Equivoco. — Repetiu de forma ignorante e ríspida.
— Equivoco não...
— Me perdoe senhor. Me perdoe... acredito que tenha me enganado. — Cortou ela.
— Como você pode ter se enganado!
— Senhor se acalme!
Três minutos se passaram e chegou o supervisor de Teresa, Rodrigo de Alcântara Júnior. Um homem de trinta e oito anos, com cabelos castanhos e olhos negros. Trajava um uniforme azul com o símbolo da companhia em seu peito, dois aviões partindo de uma linha linear para as diagonais e um horizonte com um sol ao fundo.
— O que está acontecendo aqui? — Perguntou Rodrigo para Teresa.
Antes mesmo que ela pudesse responder Lucas tomou a frente e disse.
— Essa atendente incompetente cadastrou minha passagem com o destino errado e agora vou perder meu voo e meu compromisso por causa dela.
As pessoas na fila começavam a ficar impacientes.
— Ei você ai, tem gente que quer comprar passagem também.
— Libera a fila ae. — Gritou alguém no meio da fila.
— Anda logo mano. Não para a fila. — Falou um homem ao lado de Lucas.
Lucas se aproximou de Rodrigo e disse num tom mais baixo, porém, mais intimidador.
— Eu quero que você me escute muito bem. Ouviu. Se eu não chegar no meu destino, eu vou processa-los.
Rodrigo viu seus olhos, duas orbitas lampejantes de raiva. Sabia que se o deixasse sem resolução imediata acabaria por processar a companhia e iria ser responsabilizado de alguma forma. Portanto, buscou no computador de Teresa e encontrou um voo para Londrina. O último voo.
— Olha! Temos um último voo saindo às onze e meia com destino a Londrina, podemos transferi-lo.
Lucas que estava em ponto de ter um treco se acalmou ao ouvir aquilo.
Foram cerca de meia hora para conseguir transferi-lo, pois, o sistema deu pau, parou de funcionar durante uma hora e teve de aguardar apreensivo e impaciente. De alguma forma estranha o destino não queria que ele viajasse naquele dia...
O tempo passou mais rápido do que ele pode notar, Lucas aguardou sentado nos bancos próximos ao portão de embarque e estava chocado com o atendimento daquele lugar. Ele olhava para o relógio a cada vinte segundos, às vezes um pouco mais. Conforme o tempo passara ele vira as pessoas virem e irem embora com frequência, contudo, quando completou onze horas não havia mais ninguém na ala de embarque, todos já haviam embarcado ou ido embora. O mais estranho foi o que ocorreu na sequência. Dois homens negros com aparência fantasmagórica e vestidos com roupas pretas como de velório, foram até uma sala próxima dali e trouxeram um caixão. Os homens lhe empurravam-no com força como se estivessem empurrando cem toneladas. Uma brisa entrou pela janela acima de sua cabeça. Quando um dos homens passou por ele, Lucas o encarou. Algo se movia dentro de seu rosto, como se estivesse rastejando por debaixo de sua pele. No mesmo minuto que viu aquilo ficou com ânsia de vomito e seus pelos do corpo se arrepiaram.
— Mais que merda é essa! — Disse Lucas num tom inaudível.
Recuperando-se da visão chocante, ele olhou para o caixão e notou uma fresta. Lucas sabia que havia algo errado, não só com os dois homens, mas com o próprio caixão. Era possível notar que dentro da fresta havia algo se movendo. Um olho apareceu, um olho humano. Lucas se afastou repugnado e em seguida aquilo saltou para fora, algo tão horrendo como o que se vira no rosto daquele pobre homem. Um tipo de gosma amarela, com tons alaranjados escorria pela fresta da tampa, tremendo e se esgueirando como uma lesma. A gosma tinha um pequeno buraco na parte superior de onde saiam dentes, fileiras e mais fileiras de pequenos dentinhos que até pareciam alfinetes afiados. E quando a gosma se movia, os dentes se contorciam, como se estivessem mastigando alguma coisa.
Lucas apertou a visão. O suor desceu por sua testa e seu sangue inflamou, a agonia se tornara insuportável a um nível excruciante.
Logo a gosma se virou e os dentes apontaram na sua direção, como se além de dentes eles fossem pequenos olhos que o observavam e foi em seguida que ele percebera que dentro daquela coisa havia um olho. Um olho humano. Seus olhos se prenderão naquela cena e seu coração palpitou tão forte que quase voou pela boca.
— Mas que porra é essa? — Questionou Lucas aos homens de preto, após levar a mão a boca com extremo nojo.
Ambos o ignoraram, e continuaram a arrastar o caixão, com força e sem ceder. A gosma viajou rastejando pelo caixão e foi até a mão de um dos homens, o mais velho com barba rala e subiu por entre seu braço, aumentando a velocidade a cada instante e ao chegar na cabeça virou-se e grudou os dentes no rosto dele.
— Puta que pariu! — Falou ele levantando-se em choque.
Aquilo cravou seus pequenos dentes no rosto do sujeito e começou a literalmente comer sua face. Conforme ela se alimentava, um som se dispersava no ar, a criatura inflava e em seguida apertava fazendo um barulho vibrante como de bolhas estourando, misturado a um som de alguma coisa sendo moída e a cada vez que repetia aquele processo, ela crescia, até que assimilou toda sua cabeça.
Lucas não sabia o que fazer, ou melhor... ele não conseguia fazer nada. Inconscientemente estava preso num tipo de hipnose. Mesmo tendo plena consciência da situação, seu corpo não respondia, seus braços e pernas estavam duros como pedras, ele tentara se mover, mas uma pressão verossímil o impedia. Ele assistia aquele homem ser devorado vivo. O sangue escorria da cabeça, descia pelo peito e respingava no chão. O piso branco seguia um rastro escarlate, pedaços de carne e cabelo caiam grudando no chão sobre o sangue que começara a coagular. E aquele homem varapau, andava despreocupado, como se nada estivesse acontecendo, como se não sentisse aquela coisa arrancar a pele de seus ossos.
Tendo terminado, a gosma saiu de sua cabeça, escorrendo pelo ombro e revelando um rosto descarnado, com os ossos brancos a mostra. Depois desceu pelo braço donde vira e voltou para o caixão, entrando novamente na fresta da tampa ao qual teve dificuldade de entrar por conta de seu tamanho ter aumentado. Lucas estava tão hipnotizado por aquilo que nem ouviu lhe chamarem...
— Senhor! — Chamou pela primeira vez com um tom mais fraco e com cortesia.
— Senhor!! — Chamou pela segunda vez, agora com mais força e menos cordialidade.
— Senhor!!! — Chamou pela terceira vez, agora um grito alto, totalmente descortês e com um soar meio agressivo.
O som latejou em sua mente e o libertou daquela hipnótica cena repulsivamente macabra. Ele se virou, portanto, em resposta e olhou de soslaio na direção da voz. Viu uma mulher no portão de embarque acenando para ele.
— Venha senhor, o embarque já começou.
Lucas olhou para o relógio. Já eram onze horas e trinta e cinco segundos. Virando o rosto novamente para os homens que vira a pouco, reparou que haviam sumido, tão brevemente como chegara, como se nunca os tivesse visto. Ele não queria acreditar, portanto, se esqueceu subitamente, ou pelo menos limpou a mente das cenas mais execráveis, levantou-se e embarcou no avião.
— Já era hora. — Disse Lucas a aeromoça.
Ao entrar no avião ele logo notou que não havia muitos passageiros, porém, pensou.
— Melhor assim!
Seus passos seguiam o corredor tenso, tremendo e ameaçando tropeços. Ele se sentou na poltrona de numeração doze na ponta para o corredor, não gostava muito de ficar na janela. A primeira coisa que Lucas fez foi apoiar sua cabeça na poltrona e dormiu. Dormiu como se não dormira a tempos, louco para esquecer os desprazeres daquele dia estressante. Contudo, ele não conseguira se esquecer do que viu no portão de embarque, mesmo vendando a mente com outras memórias.
Seu sono durou cerca de três horas e neste período teve um pesadelo um tanto peculiar. Lucas corria numa esteira, aquelas aonde são colocadas as malas no aeroporto, corria sem folgar, fugindo da gosma, a pequena criatura gosmenta que vira antes do embarque, mas que não tinha coragem de acreditar. Em seu sonho a gosma possuía dois metros de altura, era verde e tinha um olho imputado no centro de seu corpo gelatinoso. E aquilo o perseguia sem cessar, falando repetidas vezes...
— Lucas... Lucas... me espere... eu quero comer seu rosto... comer seu rosto... comer seu rosto com meus dentinhos. Rasgar bem devagar sua pele e depois mastigar tudo e deixa-lo dentro de mim. — Não fuja. Eu só quero comer.
Lucas gritava, mas ninguém o ouvia, exceto aquela coisa que não parava de persegui-lo. De repente a gosma sumiu e quando ele olhou para frente havia um enorme paredão e tudo ao seu lado ficou escuro, coberto por uma nevoa negra que nublava sua visão. Ele finalmente desceu da esteira e quando se aproximou do muro, um líquido mucoso verde caiu no ombro e escorreu pelo seu braço. Automaticamente como por reflexo ele olhou para cima e no alto do muro estava a gosma que se atirou de súbito contra sua cabeça e em seguida começou a comer seu rosto, rasgando as orelhas, arrancando a pele facial, dissolvendo os olhos e o descarnando por completo até sobrar um crânio branco.
— Ah-ah-ah-ah... — Gritou Lucas, acordando de repente, felizmente ninguém próximo ouviu, todos dormiam.
— Urr-Urr-Urr — Um ronco ressoou do seu lado.
Lucas reparou que agora havia um homem sentado na poltrona do lado da janela. Mas, àquela silhueta não era estranha. Ele se lembrara de algum lugar, porém não sabia onde. O velho, vestia uma série de trapos, um sobretudo antigo, pequenas latas de cerveja penduradas no pescoço, vários anéis, um em cada dedo, menos no mindinho da mão direita, suas calças fediam a peixe e seu hálito fumegava o ar, enquanto roncava, babando na própria barba. Estava escuro, pois, haviam desligado a luz do corredor para que as pessoas pudessem dormir.
— Como? — Perguntou-se.
— Ele não estava aqui quando cheguei! — Pensou Lucas.
— Deve ter chegado depois que dormi. — Respondeu para si mesmo, para não ter que aguentar mais um fenômeno pavoroso na consciência.
Lucas fuçou o bolso e tirou uma bala de menta forte. Desdobrando sua embalagem ele percebeu um vulto no escuro, espreitando por entre seus pés. Era algo molenga e roliço, num formato esférico. Lucas o chutou e aquilo caiu sobre a perna do velho.
Ele não conseguia ver o que era por conta do escuro. Mesmo tendo se esquecido do que acontecera no portão de embarque, algo fazia sua pele se arrepiar.
— Sangue.. Sangue... Sangue... — Dizia uma vozinha fina e grave no chão, atrás das pernas do senhor.
— Sangue.. Sangue... Sangue... — Repetiu com um tom mais sombrio e engasgado.
Seu estomago se contraiu e sua cabeça latejou intensamente. O rapaz amedrontado fechou os olhos e quando abriu não viu e não ouviu mais nada. Uns momentos mais tarde por volta das três da madrugada da quinta-feira, seu celular tocou, vibrando em seu bolso. Já estava praticamente voltando a dormir, só não ignorou, pois, poderia ser sua esposa. Ele levou a mão ao bolso e num movimento rápido e furtivo pegou o celular.
Uma mensagem sobrepôs-se.
— Querido está tudo bem.
Lucas abriu os olhos bocejando e notou que era de sua esposa, então respondeu, escrevendo com presa para voltar a dormir.
— Claro, mas porquê?
A resposta demorou cerca de dez minutos e ele não dormiu até que ela respondesse.
— Não estou conseguindo dormir. Tem alguém lá em baixo. — Surgiu a resposta deixando-o preocupado.
— Como assim alguém.
— Já chamou a polícia. — Enviou duas mensagens seguidas.
Novamente ouve outra pausa e desta vez fora mais longa, demorando cerca de trinta minutos. Lucas não sabia o que fazer. Estava aflito, desnorteado, porém, não podia fazer barulho, todos dormiam.
Raquel morava na capital de São Paulo, em Alphaville, numa casa grande com dez quartos, três salas, diversos banheiros e uma piscina que media aproximadamente vinte metros. Ela tinha dois filhos com Lucas, eram eles Laura e Nicolas. Laura já tinha dez anos, seus cabelos eram como os da mãe, longos e claros e os olhos azuis acinzentados. Já Nicolas tinha dezoito, era pardo, com cabelos negros e olhos azuis. Lucas viajara a serviço, ele era dono de uma empresa do ramo tecnológico, chamava-se Lucas Desenvolvimento e Estruturação tecnológica Ltda.
Lucas enviara mais de uma centena de mensagens para Raquel, mas ela não respondera.
— Socor... — Surgiu uma nova mensagem em seu celular incompleta.
Lucas se levantou eufórico e foi até o banheiro no final do corredor. Ele não sabia o que fazer. Encarou-se no espelho com as mãos em volta da cabeça em pânico e começou a ofegar.
— Eu não vou pirar. Eu não-o-o-o vo-o-o-o-u-u-u pirar. Respire Lucas, respire... ela deve estar bem, não adianta se desesperar, você vai ver! Vai ficar tudo bem. Quando chegar em Londrina vou retornar e tudo não terá passado de um mal-entendido. — Tentou se acalmar.
Ele somou o celular nas mãos novamente e...
— Mas que merda aconteceu. — Disse ele ao olhar para o celular.
A caixa de mensagens do celular estava vazia e a última mensagem mandada por sua mulher fora a quase seis horas. Ele esfregou os olhos e voltou a olhar o celular e quando o fez o mesmo desligou-se repentinamente. Lucas tentou liga-lo novamente, mas ele parecia descarregado. Se aproximando do espelho, ele abriu a torneira da pia, girando-a no sentido horário, cerca de trinta graus, esperou com os olhos até o fluxo de água permanecer fraco e constante e ateou-lhe um borrifo de água no rosto. Quando a visão desembaçou, pensou ter visto alguma coisa no teto, algo gosmento escorrendo. O pânico congelou-o não queria se virar, tinha medo de que seus olhos não estivessem enganados, ainda assim ele se virou, virou-se num girado rápido sem demora, girou pensando que ia ver a última coisa da sua vida, girou com o coração tão palpitante que se visse algo poderia ter mal súbito e morrer na hora, só para evitar o horrendo destino que podia lhe aguardar. Não havia nada... nada nas paredes, nem no teto, nem na privada, nem atrás do vaso, nem na própria pia e no chão. Seus olhos tremulantes se acalmaram e um brilho silvou, lacrimejando a ponto de chorar inconscientemente.
Alguém bateu na porta. Duas batidas, a primeira com força e abrupta e a segunda abafada e lenta, como se arranhassem a porta.
— Já vai. — Disse Lucas.
Uma segunda batida ocorreu.
— Eu já disse que estou saindo. — Falou Lucas impaciente.
Por fim houve uma terceira pancada na porta, essa com mais força e fez um barulho alto que sibilou em sua cabeça como um zunido ensurdecedor que despertou raiva imediata. Lucas se irritou e de supetão abriu a porta agressivamente. Não havia ninguém. Não havia ninguém, ninguém, ninguém, ninguém... aquela palavra parecia não ter fim, como se continuasse se repetindo sem fim.
Lucas saiu do banheiro cético com o que acontecerá, olhou para a frente e depois para trás e pensou.
— Só pode ter sido uma brincadeira de mau gosto! Malditos...
Ele voltou para o seu assento, em passos largos e objetivos, sem desviar o caminho. Em menos de dez segundos já estará sentado no seu lugar, mas logo percebeu que não conseguira voltar a dormir. O sono tinha desaparecido por completo. Sua mente pairava sobre as lembranças de quando viu aquelas mensagens de sua mulher no celular. Naquele momento não havia notado, mas o ronco senil que ouvira desde quando tinha acordado, agora cessara. Lucas olhou para a janela do avião ao seu lado direito e percebeu que o homem velho e sujo que estava ao seu lado tinha sumido. Uma aeromoça passava pelo corredor, Michele andava com ar de cansaço, como se estivesse com muito sono, ela terminara de se certificar que todos estavam confortáveis e ele a chamou, num tom baixo, quase como um sussurro inaudível para não acordar os outros.
— Ei... o que aconteceu com o senhor que estava sentado ao meu lado.
A aeromoça lhe encarou com indiferença e soltou uma resposta.
— Senhor! Deve estar equivocado, ninguém se sentou ai.
— Espere, você é que deve estar equivocada, havia um homem ao meu lado, um senhor com pouco mais de sessenta anos, um tanto sujo e mal vestido... é... é... é... — Engasgou-se na discrição, como se as lembranças daquele velho desaparecessem pouco a pouco.
Ela o fitou, com um olhar de estranheza.
— Vou verificar isso senhor.
— Então verifique. — Respondeu Lucas soando rude.
Lucas viu a aeromoça cruzar o corredor até próximo dos banheiros e começou a conversar com Adelaide, a outra aeromoça, uma morena com cabelos curtos que não batiam o ombro, olhos verdes e um pequeno sinal de nascença na testa, parecida com uma pinta, mas se olhar de longe era idêntica a um pequeno carocinho.
— Aquele passageiro está agindo estranho.
Michele notou que ele olhara para elas, então fechou uma cortina que havia ao seu lado.
— O que aconteceu? — Perguntou Adelaide.
— Ele disse que tinha um homem sentado ao seu lado. Ao seu lado. — Respondeu-lhe a com veemência.
— Mas ninguém se sentou ao lado dele. — Lembrou-se Adelaide. — Ninguém mesmo, porque quando fui lhe servir uma bebida um pouco depois de decolarmos, ele estava dormindo e não havia ninguém ao seu lado.
— Agiremos normalmente, se ele começar alguma coisa... falamos com Richard. — Alertou Michele, vibrando os cabelos ruivos ao ar.
Lucas não conseguiu ver mais nada, a cortina azul escura tampou sua visão. Sua impaciência envergava a ponto de estourar. Não era possível ter visto um fantasma, ou ilusão, ou qualquer coisa que pudesse ter lhe confundido, mas a certeza talvez tivesse se enraizado na sua mente. Suas pernas se agitaram e ele não parava de bater a ponta do sapato social de couro preto no chão formando um barulho chato.
— Ei, você pode parar com isso. — Disse Pedro, um passageiro sentado na fileira ao lado na poltrona da ponta do corredor.
Lucas virou os olhos na sua direção.
— É com você mesmo que estou falando. Não sabe quanto me incomoda isso. — Reiterou.
Ele ficou sem palavras, mirando seu olhar como se falasse.
— Puta merda, porque você não vai sentar em outro lugar então.
Ameaçou falar, mas queria evitar uma discussão. Lucas nunca gostara de discussões, ele dizia que sempre que entrava numa não conseguia sair até que a outra saísse primeira e ainda se desculpando.
— Não me ignore. Tenha respeito. — Falou o homem num tom elevado, mas não tão alto.
Lucas parou de bater o pé e Pedro se acalmou.
Foi neste exato momento que algo começou a cutucar seu ombro, dedos... dedos lhe tocavam na nuca.
— Eu você ai! — Disse uma voz vindo de trás dele.
— Este cara é chato, é melhor não mexer com ele. — Continuou.
Seu rosto subiu, olhando para cima. Um rosto pequeno surgiu. Era um moleque, vestido de vermelho, tocando seu pescoço com seus dedos que pareciam pequenas faquinhas com aquelas unhas mal cortadas.
— Este ai é o meu tio. Ele é chato sabe. Muito chato. Uma vez, nós estávamos na casa da minha mãe e ele...
— O que você pensa que está fazendo! — Cortou Lucas. — Nunca ninguém lhe disse para não falar com estranhos.
— Acho que meu pai, uma vez ou duas antes de morrer. Meu tio ficou com ela... sabe... minha mãe. — Disse ele com uma expressão de desapontamento.
— Mas não chamo ele de pai. Apenas de tio... tio Pedro.
— Tá! Agora volte pro seu lugar garoto. — Falou Lucas rispidamente.
O garoto deu de ombros e continuou.
— Ah! É verdade... esqueci de me apresentar. Papai não ficaria feliz, ele sempre me fez me apresentar. Me chamo Edu. Abreviação de E-D-U-A-D-O. — Soletrou errado. — Sabe, uma vez meu pai me fez cumprimentar varias...
— Olha garoto, eu sei que gosta de conversar e blábláblá, mas não tó com vontade de falar. — Cortou Lucas novamente com um olhar ameaçador e repulsivo.
Edu persistiu, continuou falando por uma hora inteira sem tardar, até que por fim lhe irritou a um ponto que queria arrancar a língua daquele garoto fora. Lucas se levantou estupefato e, ao mesmo tempo irritado, até já havia esquecido do velho que sumira, então foi na direção dos banheiros aonde Adelaide estava. O corredor encontrava-se calmo e passivo, um casal de idosos dormia, eram eles dona Celia e José Moura que roncavam feito porcos, cobertos em mantas antigas do tempo do onça com bordados rústicos de gatinhos, correndo num pasto verde, sob um céu azul forrado de nuvens bem desenhadas e pássaros voando para o horizonte. A sua esquerda um adolescente, este chamava-se Jonathan, estava acordado, ouvindo Castle of Glass de Linkin Park e jogando Zombie Slasher V em seu celular, um Samsung Galaxy S6. Jonathan entreolhou Lucas quando ele passou ao seu lado e disse. — O que tá olhando!
Lucas o ignorou. Viu um casal lésbico logo quando prosseguiu, estavam se beijando, Julia não parava de literalmente chupar a língua de Rosana, fazendo um som estranho e molhado. Rosana olhou para ele e fez uma expressão de deboche, uma risada forçada enquanto beijava sua namorada. Ambas tinham cabelos pretos, vestiam preto sem nenhuma estampa na camisa, suas unhas estavam pintadas de preto, enfim elas estavam completamente vestidas de... preto. Porém o preto quase que dançava em seus corpos, ambas eram brancas como a neve, chegando quase a parecer cadavéricas.
— Esses estilos de hoje em dia! — Disse Lucas.
Lucas nunca foi homofônico, preconceituoso, racista, ou zombava da religião dos outros, não que ele ligasse, mas para ele, se você quer ser de um jeito, então seja. — Siga o que gosta. — Dizia ele a si mesmo. Mas Lucas nunca foi de defender também, se via alguém zombando de outra pessoa por conta de uma peculiaridade, Lucas dava de ombros e fingia que não via.
Bem, naquele corredor, mesmo não estando cheio como um voo normal, haviam bastantes peculiaridades. Desde músicos amadores carregando violões nas malas que levavam pelo mundo espalhando sua cultura, como esqueitistas, muçulmanos, empresários, como ele, jogadores de vôlei, escritores, professores, estudantes, crianças, jovens, adultos, velhos, muito velhos, só não haviam cadáveres porque eles tinham que ficar no compartimento de carga.
Ao chegar no final do corredor aonde ficavam os banheiros, ele passou a cortina com a mão, afastando-a e entrou no convés. Adelaide estava parada imóvel soluçando angustiadamente, com a mão na boca, olhando para a frente, num ângulo posicionado na direção do chão.
— Ai meu deus. Ai meu deus. Ai meu deus. Ai meu deus. Ai... meu deus... — Dizia Adelaide sem parar.
— Ei! — Chamou Lucas. — Está tudo bem!
Lucas sentiu alguma coisa tocar seu sapato, algo grudento e pegajoso. O lugar não tinha iluminação suficiente, a penumbra cobria quase toda sua visão. Ele se agachou, ficou de cócoras e tocou o chão, virou-se abriu um pouco a cortina e a luz das lanternas laterais do corredor iluminou sua mãe. Um silvo vermelho brilhou entre seus dedos, escorrendo até pingar no chão. O vermelho era vivo, tão vivo, tão vivo que após analisar com calma ele soube que era sangue. Virando-se novamente, Adelaide surgiu em sua frente inesperadamente, cerca de cinco centímetros dele.
— É sangue! — Falou ela com. É sangue. É sangue...
— Acalme-se. O que aconteceu.
Adelaide estava em choque, Lucas precisou de cinco minutos para conseguir acalma-la a ponto de dizer uma palavra que fosse a não ser sangue.
Adelaide acendeu a luz do convés...
No começo não acreditou no que viu. Ele levou abruptamente a mão a boca e acabou vomitando na própria mãe. Vomitara tudo que tinha comido, no almoço e no jantar e até o café que tomara de tarde.
Uma poça de sangue se estendia donde eles estavam até um corpo no meio do convés. Um corpo rasgado pela metade, com as tripas a mostra, metade do intestino estava estendido no chão e o rosto fora completamente desfigurado, algo parecia tentar descarnar sua face, mas não conseguiu terminar o trabalho. O maxilar caído e distendido tinha levado o que parecia ser uma mordida, as marcas de dentes tinham um formato pequeno pela espessura e bem afiados. Sua bochecha direita nem mais existia e seu quepe estará manchado de sangue, rasgado no ponta e amassado próximo dali na parede abaixo de um gabinete. Uma fumaça cobria o corpo, uma fumaça clara e quente, como se o corpo evaporasse.
Lucas olhou para aquilo e acabou vomitando novamente, o gosto do vomito era horrorosamente ácido. Adelaide se afastou e se sentou encostada numa parede com a cabeça para abaixo.
— Foi tudo culpa sua. Culpa sua.
— Minha culpa! — Falou ele limpando os beiços com a gola do braço.
— O piloto não respondeu. Nós tentamos nos comunicar, mas ele não respondeu. Michele tinha acesso. — Falava Adelaide chorando como uma criança.
— Michele tinha acesso. — Repetiu.
— Acesso a que? — Perguntou Lucas.
— A cabine do piloto. Ela não deveria ter entrado lá.
— O que tinha lá dentro! — Questionou-a.
Seus olhos se arregalaram, ela parou de chorar.
— Quando ela abriu a porta aquela coisa saiu. Uma coisa horrível, um monstro. Era isso um monstro.
Lucas não conseguia acreditar em seu relato, era um homem cético para estas coisas. Mas como ser cético neste momento, quando existe um cadáver bem na sua frente cortado ao meio.
— Aquilo a pegou. Aquilo a pegou com força. Não consegui segura-la. Ele começou a derreter seu corpo.
Lucas sabia que se as pessoas do avião soubessem daquilo, elas poderiam entrar em pânico, portanto, foi até a cortina e a fechou.
Dois minutos depois o adolescente chegou, espiou pela fresta da cortina até ver o corpo no chão. Lucas percebeu que ele observara e o puxou para dentro da cabine.
— Mas que merda é essa. Porra meu. Um cadáver. — Falou Jonathan quase mijado de medo.
Jonathan queria correr, queria correr gritando e espalhando o caos, mas Lucas o segurou, segurou firme como quem segura um porco para o abate.
— Fique quieto viu. — Disse ele com a mãe fechando sua boca.
— Você precisa ficar quieto, se as pessoas souberem, vai haver caos.
Jonathan fez um sinal com a mão batendo em seu braço, um sinal mudo que dizia. — Eu entendi! Eu entendi!
Quando Lucas o soltou ele andou três passos para trás e disse meia dúzia de palavrões.
— Vocês mataram ela!? — Disse Jonathan chocado.
— Está louco. Como faríamos isso. — Respondeu Lucas num tom agressivo.
— Eu não sei, mas nós filmes é assim que uma pessoa fica quando a esquartejam.
— Por favor, não me matem. — Suplicou, quase que correndo.
Adelaide ficou histérica e seu choro tomou força.
— Você acha que uma pessoa assim iria matar! Hein! Hein! — Falou Lucas.
Jonathan começara a acreditar, mas ainda não tinha desistido da ideia deles terem matado Michele. Lucas correu em dois passos até Adelaide e colocou às duas mãos nos ombros dela, dizendo.
— Deve existir algum meio de pedirmos ajuda.
Adelaide fez que não, balançando a cabeça.
— Pensamos nisso antes de Michele entrar. Mas, os comunicadores estão mudos. Ai meu deus eles estão mudos.
— Espere um pouco! Se o que diz é verdade, quem está pilotando o avião.
Adelaide balançou a cabeça novamente.
— Quando a porta se abriu, não havia mais ninguém na cabine, só aquilo.... Aquilo, Aquilo, Aquilo. Ele pode ter acionado o piloto automático, mas ainda assim...
Lucas correu até a porta da cabine do piloto e colocou o ouvido na porta, começou a ouvir um som baixo, mas nítido, um som febril de algo se alimentando, alimentando-se provavelmente do resto do corpo de Michele. Ele continuou a ouvir, até que inesperadamente houve um impacto, algo se chocou contra a porta, bem na direção aonde seu ouvido estava posicionado. O susto lhe fez cair para trás, seus pés que queriam evitar a queda brusca ainda conseguiam caminhar dois metros, mas logo seu corpo envergou e não conseguia mais ficar ereto, o que levou-o ao chão.
— Aquilo quer mais. Mais, mais e mais. Se ele chegar aqui. Oh! Meu deus. Estaremos todos mortos. — Falou Adelaide desatinada.
Jonathan que estava eufórico a ponto de não conseguir respirar, falou.
— Vocês tentaram na calda?
— Na calda? — Repetiu Lucas.
— Esse é um Boeing 737-700. Certo! Uma vez ouvi alguém dizendo que existia um transmissor de emergência na cauda para se caso a comunicação do avião falhasse. — Sugestionou Jonathan.
— Isso mesmo. Isso mesmo. A cauda tem um rádio de ondas longas que pode nos ajudar, foi instalado a dois anos, para o caso de emergência, mas quase nem foi usado, isso se nem foi usado. O comunicador fica dentro de um compartimento de metal, vocês saberão quando vir, é como um armário grande, daqueles de cozinha, só que de metal. Chegando lá é só abrirem uma escotilha na base central a esquerda que encontraram, mas vão precisar da chave... há uma tranca! — Explicou Adelaide. Em seguida tirou um molho de cinco chaves do bolso, selecionou uma com a ponta circular prata e deu-lhe para Lucas.
— Precisamos impedir que as pessoas saibam disso. — Completou Adelaide.
— Deixe que eu vou! — Voluntariou-se Jonathan.
— Vamos nos dois então. Adelaide, você precisa se recompor. O sangue está começando a escorrer para fora da cabine na direção do corredor. Alguém tem que impedir que isso aconteça.
Adelaide se levantou firme com os olhos vermelhos, incrédula que aquilo estivesse acontecendo.
— Deixem comigo. Vão que cuido disso. — Disse ela ainda muito relutante.
Lucas e Jonathan cruzaram o limite da cabine e foram para o corredor. João estava sentado na quarta poltrona, próximo da cabine. Quando Lucas passou por ele, João segurou seu braço, interrompendo seu caminho.
— Você. O que está acontecendo ali. Eu ouvi alguém chorando. — Questionou-o, franzindo a testa e falando com uma voz rouca e senil.
— Não é nada senhor. É só uma passageira que passou mal, mas já está tudo bem. Não precisa se preocupar.
— Tem certeza! — Salientou.
Lucas fez que sim. João se acalmou e voltou a sua poltrona. Mas, ele ainda desconfiava de algo.
Um minuto depois já haviam chegado na cauda, contudo, algo havia acontecido, uma tubulação de ar estava aberta, aberta com a tampa escancarada, dentro do buraco negro como breu saia uma fumaça acinzentada e sob o metal, vindo de dentro das instalações escorria um líquido amarelado que fedia, um odor forte e intenso, como se tivessem fervido ovos podres dentro de uma panela com esterco de cavalo, queijo estragado e meia fedendo a chulé.
— Nossa... — Repugnou-se com nojo.
— Mais que cheiro é esse. Morreu outra pessoa aqui! — Indagou-se Jonathan.
Jonathan viu o compartimento. Lucas tentara acender a luz, mas no momento que o fez levou um choque, fazendo seu corpo inteiro tremer e seus cabelos se arrepiarem. A eletricidade transpassou seu corpo como fogo e ele pode senti-lo na carne e no sangue, uma pequena corrente elétrica nadando da ponta do dedo indicador até a ponta do dedão dos pés.
— Droga. — Gritou, balançando a mão.
— O que foi? — Perguntou Jonathan abrupto, num susto.
— Esse interruptor está danificado.
Lucas analisou o interruptor e viu que existia um cabo decapado saindo de uma pequena tubulação de fios que haviam sido danificadas por alguma coisa. Algo que tinha derretido a tubulação.
Jonathan pegou a chave do compartimento que havia caído no chão quando Lucas tomara o choque e se aproximou da instalação. Conforme se aproximava a luz do corredor que quase nem iluminava metade do caminho começara a acabar e ele era envolto por sombras e pela fumaça que escapava pela tubulação aberta. Lucas viu ele entrar na escuridão até que não conseguisse ver mais nada. O simplório rapaz sumira, sumira primeiramente por alguns segundos, depois os segundos foram se alargando e o que eram um curto período se tornou três minutos, quase quatro dentro daquela escuridão.
— Jonathan. Está bem! — Chamou-o, mas sem sucesso. Sua voz se perdeu no vácuo, como se nunca tivesse o chamado.
— Jonathan... — Gritou mais alto. E novamente foi ignorado.
— Jonath...
Antes que pudesse gritar pela terceira vez, a voz de Jonathan surgiu. Fina e quase inaudível.
— Calma. Já vou.
E em seguida Jonathan apareceu, mas antes de sair das sombras, por um momento seus olhos brilharam na escuridão, como duas obsidianas amarelas, silvando na sua direção, emergindo insalubre como se o próprio diabo saltasse do inferno. Lucas deu dois passos para trás, com medo. Mas, quando confirmou visualmente que aquele que espreitava das sombras era Jonathan, se acalmou e disse.
— Porque demorou! Achei que algo pudesse ter acontecido.
Jonathan não falou nada. Somente surgiu com o comunicador nas mãos, um rádio, com vários circuitos que mais parecia uma caixa de som. Uma caixa de som dos anos 80, ou 70, nem sei.
Ambos voltaram para o convés principal, Jonathan não disse uma palavra sequer, ele andava inexpressivo e desconexo, muito diferente de quando entrara lá. Mas, seus olhos, eles tinham um brilho, um brilho diferente agora, um brilho maligno.
— Algo poderia estar errado? — Perguntou Lucas a si mesmo.
Chegando no convés, Adelaide terminara de limpar o sangue e havia enrolado o resto de Michele em vários lençóis verdes que encontrara no compartimento de um passageiro qualquer.
— Conseguiram? — Perguntou Michele quando os viu chegar.
Jonathan se aproximou dela, deixou o comunicador em suas mãos e se afastou para próximo do banheiro.
— Um dos passageiros veio aqui!
— Quem? — Indagou Lucas.
— O cara sentado na quarta poltrona da fileira direita. — Acho que o nome dele era João. Ele tentou entrar. Graças a deus eu lhe impedi.
— O que ele queria?
— Disse que queria ir ao banheiro. Mas eu inventei uma mentira, disse que os banheiros estavam em manutenção e poderia demorar algumas horas para consertarem. Acho que ele engoliu, mas saiu morrendo de raiva. — Contou ela.
— Bom. Bom... com isso não temos que nos preocupar com ele por enquanto. Agora! Você sabe como usar isso. Não é mesmo.
Michele colocou o comunicador em uma mesa na lateral da cabine e o ligou. Começou a sintonizar a frequência. O sinal estava fraco. Não me estranha, já que estavam numa altura de quase onze mil metro de altitude.
Após um curto período de tempo, Adelaide conseguiu estabelecer conexão com uma torre de rádio. O suor escorria da testa, pingando sobre sua mão, um sentimento de alivio fascinou-a, como se a primeira esperança tivesse surgido até que Jonathan que observara tudo se aproximou por trás dela, num vulto. Adelaide o notou de relance, mas já era tarde demais, ele puxou seus cabelos, virando sua cabeça para trás e cortou sua jugular com um estilete que surgira de dentro do bolso esquerdo de trás da calça jeans. Um jato de sangue voou e acertou a parede a sua frente. O sangue respingou em sua mão e caiu no chão. O corte fora tão profundo que havia aberto o pescoço em duas partes. A cartilagem surgiu e um emaranhado de veias pulsantes. Adelaide caiu da cadeira e começou a se retorcer no chão, tentando vendar a fenda no pescoço com as próprias mãos. Quando notou que não conseguiria estancar o sangue, ela tentou gritar, mas engasgou-se com o próprio sangue, Gorgolejando palavras incompletas e espirrando sangue para todos os lados. Lucas abriu os olhos em espanto. Não acreditara no acontecera. Ele via Jonathan parado a frente de Adelaide, segurando o estilete encharcado de sangue e de olhos vazios fixados nela e depois olhava para ela agonizando numa poça feita de seu próprio sangue. Tudo em menos de um segundo.
Lucas correu, empurrou Lucas e tentou ajudar Adelaide, estancando o ferimento com um pedaço de pano que rasgara da gola do braço. Porém, ainda assim a hemorragia não cessava. Adelaide sentia medo, como nunca tinha sentido antes, o frio tomou seu corpo, parte a parte. A única coisa que ela pensara era. — Vou morrer. Vou morrer. Vou morrer. Vou morrer. E estas palavras continuaram em sua mente, pairando, como se elas se aproximassem dela. Um minuto se passou, aquele foi o minuto mais longo que teve em sua vida. Quando perdeu as forças para resistir, ela começou a se lembrar do passado, de como podia ter feito as coisas diferentes, de como poderia ter feito uma faculdade de administração como queria, ter namorado um homem bom e gentil e vivido num lugar agradável, ter tido dois filhos amáveis e um cachorro, ai meu deus, como ela queria ter tido um cachorro, um Golden Retriever ao qual poderia levar ao parque como desculpa para sair com seu marido perfeito, espairecendo-se dos problemas pessoais e do trabalho. Ela também queria ter se formado, feito um estágio em uma multinacional no setor comercial, ter sido efetivada, subido de cargo até se estabelecer profissionalmente em um cargo que a mantivesse em um nível financeiro estável. Queria também ter viajado para Rússia, Canada, Ásia e índia e por fim ter se aposentado e envelhecido, passando seus últimos dias ao lado de seu marido e de seus filhos.
— Não. Não. O que você fez. — Gritava Lucas olhando para Adelaide.
Adelaide viu a escuridão envolver seus olhos que perderam a luz por completo. Seus braços caíram sobre seu ventre, imóveis. A boca estará paralisada numa expressão de dor, com os lábios manchados de sangue, ainda golfando. Lucas pós sua cabeça no peito e depois tocou seu pulso, mas infelizmente não ouviu nada. Ela morrera ali em seus braços, banhada de sangue, o fitando, esperando esperançosamente que ele a salvasse. Lucas só sentiu uma pancada na cabeça, forte e destrutiva e em seguida desmaiou. Desmaiou em cima do corpo dela, com a cabeça caída sobre as mãos, como se ela o confortasse.
Ele acordou momentos depois, estava com uma enxaqueca que parecia estourar sua cabeça. Ele levou a palma da mão na nuca e quando voltou-a para os olhos, viu que estava molhada de sangue. Lucas então levantou tonto, caindo para os lados como um bêbado. Agora, não vira mais o corpo de Adelaide. Então, saiu do convés, arregaçando a cortina com as mãos. Lucas olhou da frente do corredor escuro às duas fileiras paralelas em perspectiva. Alguma coisa lampejava na penumbra. Alguma coisa não, várias luzes foscas. Ele ouviu uma risada, o avião tremeu como se tivesse sido bombardeado. A força do impacto o derrubou e ele caiu de bunda no chão. O avião virara num ângulo de quarenta e cinco graus. As bolsas se desprenderam dos guarda-volumes e caíram sobre ele, acertando-o diversas vezes e lhe machucando, desde ferimentos leves como arranhões a cortes profundos feitos por objetos cortantes que voavam sem direção escapando das bolsas. Então a luz do corredor piscou e uma imagem paralisou sua mente, uma imagem infeliz e, ao mesmo tempo intrigante, todos os passageiros jaziam sentados em seus devidos lugares, sentados de cabeça erguida na sua direção, fitando-o, sem demonstrar nenhuma reação, o que era estranho já que deviam estar num estado perplexo de pânico generalizado, gritando e chorando euforicamente, rezando e orando para seus deuses, suplicando e pedindo exaltadamente uma esperança, algo que pudesse lhes livrar daquele destino indubitável, enquanto submergiam na sombra da mais profunda escuridão, a morte. Contudo, quando a luz do corredor piscou, ele observou seus rostos e indiscretamente não viu faces de terror, nem assustadas, nem com medo da morte, pelo contrário, o que viu foram rostos descarnados, com o crânio branco como leite e dentro da órbita dos olhos surgia uma luz amarelada que lhe fitava. Todos ali o encaravam com indiferença, enquanto riam, riam batendo o maxilar ossudo entre os dentes podres num estalar grave. Ao mesmo tempo, que riam, um líquido preto viscoso como piche escorria pelos dentes, circundados por uma fumaça débil que cheirava a morte, um cheiro forte e pesado de algo morto. Ele não tinha notado, mas a frente de todos no final do corredor havia uma sombra, alta e circular que se esgueirava de dentro da cabine do piloto. A sombra se contrapôs, hasteando-se e cobrindo as fileiras do corredor durante a sinfonia mortal que o riso dos passageiros entoava. A coisa mórbida se aproximou e quando chegou próximo suficiente da luz do corredor, Lucas percebeu que aquilo era a gosma. A mesma que havia visto antes, no aeroporto. A mesma gosma que comera a cara do homem que levara o caixão. A mesma gosma que agora se prontificava para destroça-lo com aquela boca medonha cheia de dentes que pareciam serras. Ele tentou correr, mas algo se enrolou no seu pé direito. Seus braços tentaram se agarrar em algo, pregando as unhas nas poltronas, mas não adiantou, aquilo lhe puxou, lhe puxou, lhe puxou, lhe puxou mais duas ou três vezes até que seu corpo desistiu de aguentar a pressão exercida, que parecera tornar seu braço um cabo de guerra e então algo o levou.... Levou-o para dentro... para dentro das sombras.
II
Lucas acordou, seus olhos fitavam o teto de seu quarto. Estava ao lado de Raquel, coberto por um edredom branco de veludo, muito macio e confortável.
— De novo! — Disse em voz baixa.
— Querido, já acordou? — Perguntou Raquel ao ouvir sua voz.
Ele permaneceu perplexo encarando o teto, franzido e com o coração acelerado. Mas, essa não era a primeira vez. Lucas tinha este pesadelo horrendo já fazia duas semanas, desde que voltou da floresta amazônica com sua família. Aquele homem que lhe advertiu. — Não vá para Londrina!
Seus pés desceram da cama e tudo pareceu frio, gelado como se fosse inverno. As solas de seus pés beliscaram o chão e ele saltou em direção ao chinelo do lado direito de onde estava, dois passos à frente. O quarto agora parecera uma imagem, um retrato desenhado no tempo. As mobílias paradas, a escrivaninha aberta, escancarada com um livro dentro, 1808 de Laurentino Gomes. A luz ainda apagada salientava o brilho dos raios solares da manhã que perpetravam a cortina e iluminavam o repartimento.
Lucas caminhou esfregando os olhos. Com a memória do ocorrido no sonho. Havia sido tão vivido que ele realmente acreditava que poderia ter sido de verdade. Logo seu pensamento se distanciou e sua mão foi de encontro a porta do banheiro. Ele estava aliviado, seu pomo de adão subia e descia, aliviado por saber que tudo não passara de um terrível pesadelo. Mas, tinha de terminar, não conseguia mais aguentar aquilo, dia após dia, o mesmo sonho. Sentado na privada, fazendo suas necessidades, ele pensou, pensou em algo que não tinha feito até agora, conversar.
Neste mesmo dia ele procurou seu pai, morava na rua Antônio Vargas de Milelie, na altura do número 12, próximo a uma palmeira, tão alta como nenhuma outra. A casa era grande, tinha duas piscinas, uma paralela a outra, cada com vinte metros de largura. No quintal havia uma pequena horta, seguida de arbustos que cercavam um chão gramado bem aparado. Havia um cajueiro no centro do quintal, se estendia numa altura de cerca de quinze metros. Seu tronco era bem dobrado, dividindo-se em dois, um subia reto para o alto, enquanto o outro se inclinava e caia quase que encostando no chão. Quem via imaginava que era uma balança de madeira. O vermelho que decorava as paredes da casa fazia Lucas se lembrar dos pesadelos que tivera. E então o vermelho se tornava sangue e era como se as paredes estivessem sangrando.
— Pai! Está ai? — Gritou Lucas do portão branco, apertando o interfone.
Não demoraram cinco segundos e o portão se abriu. Ele entrou, a trilha de tijolos marrons cortava o quintal até a varanda. Paulo estava lá, sentado numa cadeira, fazendo um bom trabalho manual, estava esculpindo um boneco de madeira, dizia ele quando Lucas o vira na semana passada que seria um boneco estilo militar, com arma e tudo. Ele ria em pensar num soldadinho de madeira, parecia que os índios tinham invadido um exército e empalhado os soldados um a um até se tornaram soldados de madeira.
A sombra do cajueiro lhe seguiu pela trilha, protegendo-o do sol incessante. Ele se aproximou, subiu os degraus e se apoiou na viga de sustentação da varanda.
— Continua com esse soldado pai!
Paulo não respondeu, continuou talhando. Lucas sentou-se na cadeira ao lado de seu pai.
— Sabe. Preciso falar com você.
— O que um filho tolo quer com um pai decreto e ranzinza. Não foi isso que me disse da última vez que veio falar comigo.
Lucas mordeu a língua, pensou em responder, mas não queria começar uma briga, estava lá por um único motivo.
— Pai... meu pai... Me perdoe se isso que quer ouvir.
Paulo riu. — Moleque. Sempre me surpreende. Achei que nunca se desculpava.
Na verdade Lucas nunca se desculpava por algo que estará certo, mas aquilo era uma exceção, algo excepcional.
Eram quatro e dezesseis da tarde, o sol vivo no céu como uma bola de fogo ofuscava lhe os olhos com uma pequena linha de luz que cortava da altura dos olhos até a ponta da cabeça. Ele se abaixou, envergando a coluna.
— O que você quer? — Perguntou Paulo sem olhar momento algum para ele.
Paulo era um senhor de idade, com setenta e nove anos, era calvo, com pequenos tufos de cabelos grisalhos nas têmporas, aos quais coçou num movimento circular, deslizando suas unhas como se momentaneamente não se lembrasse do que estava fazendo.
— Se lembra de quando fui para a floresta Amazônia. — Começou a contar.
Paulo fez que sim e Lucas continuou.
— Não pudemos lhe levar conosco, acho que na verdade eu que fui um tanto egoísta e não quis te levar. Enfim, chegamos no aeroporto internacional de Manaus ao meio dia. Neste dia chovia muito e acabamos dormindo em um hotel próximo durante dois dias. As crianças já estavam impacientes, elas queriam se divertir — Titubeou colocando as mãos no rosto.
— O sol nasceu no terceiro dia e eu inventei de ir numa excursão para Piracatuba. O primeiro trajeto ocorreu de barco, pegamos uma balsa na cidade em Compensa e atravessamos o rio negro. Foram quase duas horas de discussão, as crianças gritando, Raquel gritando também pedindo para acalmar as crianças. Nós podíamos ter ido só pra Disney e pronto, mas não eu tinha que pensar em outra coisa, uma coisa diferente...
As nuvens passearam, sendo assopradas por uma brisa vinda do leste, o sol foi encoberto naquele momento e luz do sol incomodamente chata sumiu, ele agora podia voltar a olhar para o céu. Um avião migrava de norte a oeste, veio cruzando e cortando o ar, fazendo aquele barulho chato estridente que ninguém gosta.
— Em Piracatuba aquelas crianças malditas me importunaram o caminho inteiro querendo fazer trilha para a Pousada de Selva Jacaré, junto a um grupo de outras pessoas liderados por um guia chamado Henrique Susares que ficou atiçando as crianças até que elas ficaram loucas querendo ir. Henrique ficou dizendo, a não mais esta será a melhor experiência da família, um dia na mata resistindo a natureza. Sabe como o Nicolas é com essas coisas, aquele moleque só sabe fazer arte o tempo todo. Acabamos indo e novamente essa foi a pior escolha.
Paulo rio de novo.
— Você só faz escolhas erradas filho.
Lucas fingiu que não lhe ouviu e continuou.
— Andamos cerca de dois quilômetros dentro de uma trilha, depois a trilha acabou e tivemos de adentrar na mata fechada. Só em pensar nas moscas, pernilongos, nos bichos que ficavam me picando e arranhando minha pele. Sempre que piscava sentia alguma coisa caminhar sobre minhas pernas. O sol logo foi coberto por nuvens negras e uma chuva desabou sobre nós. Passamos três horas dentro de uma caverna escondidos d chuva e com frio. Eu já queria arrebentar a cara daquele guia filho da puta, ele não parava de dizer. A força de natureza isso, a força de natureza aquilo, que nós venceríamos a natureza uma outra ou outra e muitas outras besteiras. Já estava ficando extremamente chamado e piorou quando acabei me perdendo de todos após cair de um declive de uma altura de cerca de cinquenta metros. Por sorte escorreguei no terreno molhado e fui descendo. Lá eu dei de cara com uma casa. Estava mais para uma cabana velha. Na queda havia perdido a blusa que se desprendeu e estava quase morrendo de frio. Foi quando ouvi a voz do grupo, lá no alto da colina gritando. Eles gritavam falando que me salvariam, que achariam um meio de descer o barranco. — Lucas deu uma pausa.
— Vai achar que sou louco, mas continue ouvindo.
— Naquele fim de mundo, literalmente num buraco, percebi que as coisas que aquele homem dizia poderiam fazer sentido e que agora a natureza estava lutando contra mim, como se eu fosse um tumor maligno. Eu corri para a cabana, abri a porta e entrei como se estivesse em casa. Lá dentro havia um lampião aceso e um velho de bruços numa mesa de pau-brasil bem velha e caindo aos pedaços. A mesa parecia até um púlpito, com várias estatuas do que pareciam deuses pagã, além das velas apagadas ao seu lado e um crânio, um crânio de verdade. Nunca tinha visto um crânio humano na minha frente, não um de verdade pelo menos, mas quando olhei para aquilo, soube que era real. Me aproximando o velho acordou de repente. Por um momento eu vi os olhos dele brilhar num tom amarelo, mas pensei ser maluquice. O velho acordou dizendo. Ostende Mihi Veritatis. Pesquisei isso quando cheguei em casa, na tradução livre é mostre-me a verdade. O homem soltou um berro e falou. Maldito, o homem maldito chegou, ele está aqui, vejam, vejam... fiquei pasmo com aquilo até pensei em correr, mas ele falou algo que me prendeu. Ele disse. Não vá para Londrina. Não vá para Londrina. Londrina, este é o lugar. Sua família corre perigo, precisa terminar com tudo se não eles vão se ferir e de jeito nenhum vá para Londrina, se não aquilo estará lhe esperando. Aquilo que come homens e mulheres a noite. O velho se aproximou de mim, balançando as latas de refrigerante e cerveja que carregava como um colar ao redor do pescoço. Ele tirou alguma coisa debaixo da mesa, não consegui ter coragem suficiente e corri, corri o mais rápido que pude, atravessei o mato até chegar numa trilha e continuei correndo até encontrar minha família...
Lucas parou de contar abruptamente.
— E você acreditou nele filho? — Perguntou Paulo depois de finalmente terminar de entalhar o soldadinho de madeira e o girando na mão para verificar se não havia nenhuma falha visível.
— Não. É claro que não. — Respondeu Lucas atônito. — Mas... amanhã terei de partir para Londrina.