O céu não tem favoritos
“Você vai ficar? Você vai ficar longe para sempre?”.
Avenged Sevenfold.
O alvo vestido longo dava-lhe uma silhueta esbelta e aérea. Os longos dedos tamborilavam no tampo da mesa de madeira. Ritmadamente. Devagar, depois depressa. Quebrou uma unha. A seguir esmurrou a mesa, enquanto grossas lágrimas faziam pequenas poças embaixo dos olhos. Num átimo quedou-se muda. Ouvia barulhos próximos e distantes. Alguns vizinhos riam e contavam piadas obscenas. Ao longe cães enamorados uivavam para a lua.
Levantou o busto e limpou o rosto marmorial com as costas da mão. Atentava a antigos conselhos:
-Minha filha, esquece esse homem. Ele não vai voltar.
-Ele volta, mãe. De um jeito ou de outro.
Às sextas-feiras debruçava sobre os arcanos da magia. Há algum tempo acreditava nos sortilégios. Até já conseguira com a insistência da vontade e força do pensamento repetir certas situações, para si mágicas. Certa feita fixou o olhar com tanta calma e prepotência que fez com que um transeunte, que passava de frente a sua casa, se voltasse. A pessoa aparentando desorientação e angústia insinuou dirigir-se a ela. Recebeu um portão fechado na cara. Era muito feio. O único homem que lhe interessava estava agora sob o a bota de outros carrascos.
O bairro tinha violências esporádicas. Pequenos malfeitores e alto consumo de entorpecentes. No entanto, ninguém se aproximava daquela casa de esquina sem ser convidado. Até os convidados rareavam. Exceto a mãe, que é quem carrega os fardos dos filhos:
-Filha vem comigo. Você não possui arma, nem sabe se defender.
-Mas tenho maldade e sei atacar.
O minúsculo quintal, onde praticava suas artes mágicas, abrigava também uma pequena horta. Dali retirava alimentos para o corpo e fabricava compensações para o espírito. E ele estava cada vez mais afoito. Movimentava todo o seu ser que era capaz de, ao mesmo tempo, colher cenouras e aspergir sangue em alguns ídolos de barro no canto do jardim.
As amigas pegaram distância dela. Uma saiu de sua casa prenunciando infortúnios:
-Quem brinca com fogo é para se queimar.
-E quem não brinca com fogo como é que se queima?
Numa noite de sinistra lua enquanto mal passava um bife e esvaziava a segunda garrafa de vinho rosé, ouviu um insistente toque de campainha. Ainda viu pelo olho mágico a portentosa figura. Além do belíssimo uniforme verde-oliva enxergou as medalhas e condecorações que espalhava seu brilho no altivo peito. A voz, a senha que só pertencia aos dois:
-Meu bem o céu não me quis!
-Meu amor, o céu não tem favoritos!
Abriu a porta com ânsia e fogo. Correu em direção ao amado. Os braços abertos e a boca em êxtase. Assim que o alcançou, passou por ele. Voltou imediatamente para abraçá-lo pelas costas. Encontrou apenas a fumaça do vulto que continuou andando, alheio a sua aflição. Estarrecida recostou-se na parede. Tremia tanto que quebrou o salto do sapato. Gemendo e babando não tinha forças para correr, nem para gritar. Sussurrou apenas:
-Te esconjuro. Cadê o meu amado?
-Minha casca jaz nesse momento nas minas angolanas.
Deslizou grudada na parede. O peso do corpo ao bater no chão fez estourar todos os botões do longo vestido. De costas no assoalho frio percebeu que o vulto a cobria com seu fardão. Não tentou se desvencilhar, apenas suportou a frialdade daquela presença. Aos poucos, começando pelas mãos, seu corpo foi enrijecendo. Ainda via indistintamente uma sombra deixar a casa.
Nesse exato momento, há milhares de quilômetros dali, um abutre destrói a bicadas o que outrora foi o corpo másculo de um patriota.