─ Hei! Me dá um crivo ai!
Para quem não sabe, crivo era uma gíria para cigarro nos anos sessenta.  Era o que o Toninho sempre me pedia toda vez que me encontrava na rua. Fumar não era um comportamento tão execrado como nos dias de hoje. Devia ser. Se fosse eu não teria aprendido a fumar com doze anos de idade, e hoje não estaria contando os dias para deixar esse mundo desgraçado por causa deste maldito câncer de laringe.
É. Não tem coisa pior que sentimento de culpa. Uma cabeça com sentimentos de culpa é mais propícia para a hospedagem de fantasmas do que velhos castelos medievais, ou antigas casas abandonadas,  onde grandes tragédias aconteceram. 
Dizem os entendidos que as almas penadas têm dificuldade de abandonar o local onde desencarnaram, quando suas mortes ocorreram de forma violenta. Acho que foi isso que aconteceu com o Toninho. Por isso, toda vez que passo por aquele bar, onde às vezes (quando consigo alguma graninha) vou para tentar afogar as lembranças do meu passado, tenho a impressão que um vento gélido me cutuca a espinha com um punhal de gelo, provocando um arrepio que vai da sola do pé até a coroa da cabeça, fazendo todos os pelos do meu corpo se eriçarem como se fossem arame farpado. 
 
Tudo por causa da Elzira. Ela era a namoradinha do Toninho e eu um apaixonado por ela. Mas ela gostava dele e não de mim. E então eu armei aquela intriga dele com o Décio. Contei para o Toninho que o Décio andava cercando a Elzira. E ao Décio eu disse que o Toninho estava a fim de dar um cacete nele por causa do assédio que ela fazia à Elzira. Foi uma pitada de pimenta em um cozido já bem temperado. O Toninho era ciumento como um cão de apartamento; o Décio era fusível como leite: bastava por um pouco de fogo que ele fervia.
Não precisou fazer muito mais. O Toninho e o Décio se encontraram e deu no que deu. Os dois brigaram. O Toninho era pequenino, mas muito esperto. Apesar de o Décio ser maior que ele, o Toninho ganhou a briga. Eu sabia que ele ganharia. E sabia também que o Décio não ia esquecer. Que ele era tinhoso, malvado e vingativo. 
Então eu mesmo arrumei aquela navalha para ele. Era uma navalha velha e meio enferrujada. Mas ainda tinha um bom corte. Comprei-a do Waldemar, o barbeiro do nosso bairro. Naquele tempo, arma de malandro era a navalha. Os “bambas” do pedaço tinham que ser bons no aço ou então ser muito bons no pé. Havia até um samba, se não me engano, cantado por Germano Matias, que dizia “ tu és malandro, briga bem no aço, sou baiano capoeira, brigo bem no pé.” O malandro do aço era o Décio, o do pé o Toninho.
Deu exatamente o que eu esperava. Toninho e Décio se embolaram de novo e desta vez não valeu a esperteza do Toninho no jogo de pernas. O Décio cortou a cara dele com a navalha. Um corte feio, que ia desde a orelha direita até o canto da boca. Abriu uma avenida na carinha bonita do Toninho, aquela carinha de menino inocente, que havia encantado a Elzira. 
Bem feito. Agora, com aquela cicatriz em forma de meia lua, a cara dele mais assustava do que encantava. Parecia o Gwimpayne, aquele personagem do romance do Vitor Hugo, O Homem que Ri. Uma cara com um eterno sorriso, constante, horroroso, sinistro, que lembrava também o Curinga, o inimigo do Batman. Aliás, não faltou quem o chamasse de Curinga. E eu tinha certeza que com aquela cara feia, a Elzira logo ia dar o fora nele. 
Tudo bem que não foi por causa da cara horrenda dele que ela o largou. Foi por causa da vida dissoluta que o Toninho adotou depois daquele incidente. Não sei se em consequência disso, mas a verdade é que ele começou a beber e a fumar maconha e a arrumar encrenca de tudo quanto era jeito. Foram brigas e mais brigas na rua, conflitos com a polícia, trapalhadas e mais trapalhadas que acabaram levando-o á prisão mais de uma vez, e por fim, a um hospital para tratamento de drogados, de onde ele saiu, um ano depois, mais pirado do que quando entrou. 
Alguns meses depois que ele saiu do hospital recebemos a notícia de que ele havia sido morto numa briga em um bar. Aquele mesmo do qual eu já falei. Aquela cicatriz horrenda na cara havia acabado com a vida dele. 
 
Para encurtar a história, eu casei com a Elzira. Mas o nosso casamento não chegou a durar dois anos. Logo descobri que ela me traia, justamente com o Décio, o cara que havia cortado a cara do Toninho. E desde então eu carrego esta dúvida: será que, por vias tortas, eu não tinha razão quando falei que ele estava cercando a Elzira? Mas mesmo que tivesse, a minha consciência não ficaria aliviada. Quando é o diabo que inspira nossos pensamentos, não há justificativa que alivie.
Bem, é uma história besta, eu sei. E eu teria superado tudo isso, e sido feliz de novo, e talvez esquecido essa história escabrosa se não fosse esta maldita cicatriz que eu também trago na minha cara. Ganhei-a no mesmo dia em que matei a Elzira com a navalha que eu usava para fazer a barba. Depois do crime eu fui ao banheiro lavar a "bichinha", tinta com o sangue dela. E não sei por que me cargas dágua me deu  uma vontade incontrolável de fazer a barba naquele justo momento. Ensaboei a cara e quando comecei a descer a lâmina pelo lado direito dela, tive uma visão de que o rosto no espelho não era o meu, mas sim, o do Toninho. Era um rosto demoníaco, rancoroso, sinistro, que me sorria com aquele sorriso horrendo de uma cara com duas bocas. Com o susto que levei, a navalha escorregou e deu um talho profundo na minha cara, secciononando-a desde a ponta da orelha até o canto direito da boca. 
Foi um acidente horrível e doloroso. Mas de certa forma me ajudou, pois o advogado que me defendeu usou esse fato como argumento de defesa. Disse que eu havia matado a Elzira em legítima defesa por que ela havia me atacado com a navalha. Cortara-me a cara daquele jeito. A cicatriz estava ali para ninguém contestar. Depois havia o fato de que ela estava me traindo. Naquele tempo ainda não havia a tal lei Maria da Penha. Mulheres adúlteras não despertavam a simpatia de um júri formado por uma maioria de porcos chauvinistas, como hoje eles seriam chamados. 
Fui absolvido. Mas desde então a minha vida virou esse inferno. Tornei-me alcoólatra e viciado em drogas. Um amigo meu, médium em um centro espírita, disse que era o espírito do Toninho que estava encostado em mim. Como nunca acreditei nessas sandices, não dei nem bola. Deixei crescer a barba, e há anos não olho mais em um espelho. Tenho medo de ver outro rosto que não o meu. Um rosto horrendo, deformado, cheio de aterrorizantes cicatrizes. Aliás, nem me lembro mais como era o meu rosto anterior. Nem sei mais qual é o meu aspecto. Sei apenas que deve ser horripilante, assustador, monstruoso. Pois essa é a impressão que passo ás pessoas que  olham para mim. Uma imagem de medo, terror, repusa. Essa é a imagem que também faço de mim mesmo.
Hoje sou um morador de rua. Apesar das minhas fartas barbas, que escondem a totalidade da minha cara, todos só me conhecem pelo meu apelido: O Cicatriz. E sempre que me lembro do motivo pelo qual eu carrego essa maldita marca de Cain, ela começa a arder como se tivesse sido queimada com um ferro em brasa, esquentado no fogo do inferno. É a marca do Diabo.