A batida

Paul acordou às três da manhã, incomodado pelas batidas que vinham do banheiro. Resmungou e virou-se para o outro lado na cama, puxando o travesseiro ao redor de sua cabeça para cobrir os ouvidos. Tinha que acordar às seis e meia para trabalhar e aquele som já lhe perturbava há semanas. Raramente acontecia no meio da noite - o acordara só duas vezes até então - mas ele não tinha idéia da causa.

O rapaz mudou-se para aquele apartamento há dois anos. Era um prédio de dois andares, quatro apartamentos. Ele morava no segundo andar e não conhecia seu vizinho de baixo, apesar de saber que ele existia. Talvez o barulho viesse de lá, mas ele não tinha certeza. O prédio fora construído na década de 70 e tudo era velho: o encanamento, as fiações problemáticas, a fachada encardida. Para Paul, os canos estavam congelando e descongelando intermitentemente por conta daquele inverno. Era o mais frio dos últimos quinze anos e isto podia causar o barulho, ele teorizava.

A sexta-feira correu normalmente no trabalho. No horário de almoço, Paul tentou ligar para o senhorio para discutir o encanamento, mas não teve resposta. Ao chegar em casa e abrir sua porta, foi abordado pelo vizinho do apartamento ao lado.

“Boa noite,” disse o aposentado.

“Noite,” disse Paul. “Como vai?”

“Tudo bem. Me diz uma coisa: tá tendo alguma reforma no seu apartamento, por acaso?”

“Não.”

“Não sei se você ouviu um barulho, uma batida…”

“Sim, ouvi. Inclusive me acordou essa noite passada.”

“Ah, então não sou só eu ficando maluco,” o senhor riu.

“Não. Eu tentei ligar pro dono, mas nada dele.”

“É, desse jeito não dá.”

Paul sorriu, pediu licença e entrou em casa. Tomou um banho quente e fez a janta, e teve uma noite tranquila. Na verdade o fim de semana inteiro foi calmo. Ele não saiu e não ouviu mais nada, mas não declarou vitória ainda. O som sumia por dias e voltava depois, e no geral era ignorado. Só o incomodava mesmo quando era à noite, ou quando estava ao telefone. Certa feita, uma amiga sua perguntou-lhe o que era aquilo. “Sei lá,” foi a única resposta que ele pôde dar. “Talvez seja o vizinho,” ele arriscou. Não deu detalhes à garota, mas o senhor que morava ao lado já havia reclamado do outro vizinho recluso. Ninguém conhecia o sujeito, mas ambos já o viram em raríssimas ocasiões. Também sabiam que ele tinha um gato, pois já flagraram o pequeno felino nas escadas um dia. “Não pode,” o senhor ao lado reclamou para Paul. “No contrato diz que não pode animal nesse prédio. E esse fedor que fica na escada?” E o rapaz só pôde rir. O cheiro era ruim mesmo, todos os amigos que o visitavam faziam esse comentário. “Pois é,” ele dizia e dava de ombros. O gato, o fedor, nada disso incomodava muito. Contudo, se o vizinho estava a martelar qualquer coisa à noite, isso seria um problema.

Novamente o rapaz acordou de supetão, desta vez na madrugada de segunda-feira. Ele não sabia se havia sonhado, ou se foi despertado outra vez pelo maldito som. Levantou-se grogue e arrastou os pés pelo chão até o banheiro, ligando a luz. Ele levou um tempo para acostumar-se à claridade e puxou a cortina da banheira. Onde o ralo deveria estar, havia outra coisa. Ele não conseguiu entender o que via até piscar algumas vezes, e de repente foi tomado por um desespero confuso. Ali estava uma cabeça viva e sorridente, a cena mais horrenda que Paul já viu na vida. De orelha a orelha, a cabeça exibia um sorriso de dentes longos e amarelos, e uma gengiva cavalar vermelho sangue. Os olhos, tão abertos, pareciam bolas de bilhar e quase saltavam das órbitas com suas pupilas minúsculas. Cabelos longos e pretos escorriam como uma catarata de piche daquele escalpo úmido, formando uma poça escura no chão branco. A criatura o encarava num júbilo macabro, como se estivesse orgulhosa de pregar-lhe uma peça, porém entalada e tentando descer de volta para o inferno de onde surgiu.

Paul berrou e fugiu. Suas mãos trêmulas levaram algum tempo para destrancar a bicicleta e puxá-la para fora do prédio, porém ele pedalou com uma urgência sem precedentes até chegar no departamento de polícia da sua cidade. “Um intruso na minha casa,” ele disse. Se contasse exatamente o que aconteceu, ele já sabia qual seria a reação dos agentes. Prontamente eles o seguiram de volta até o prédio, e ele só explicou o ocorrido após entrarem no apartamento. A cabeça não estava mais lá. Os policiais se entreolharam e sugeriram que Paul poderia ter tido um pesadelo. Ele não ficou surpreso com a reação e, de fato, perguntava-se se não era somente fruto de um coquetel de estresse e sonhos ruins. Ficou grato com o modo simpático com que lidaram com a situação. Não pareciam irritados, nem fizeram pouco da preocupação dele, mas ele sabia que seria motivo de piadas para os dois.

Sem conseguir pregar os olhos, ligou para seu chefe às sete e avisou que estava doente. Conseguiu um atestado para uma semana após contar seus sintomas e exagerar mais alguns. As alucinações podiam ser por conta do estresse e privação de sono, o médico disse. Prescreveu-o uns medicamentos leves para ajudar no sono e Paul os comprou porque sabia que, apesar de não ter tido problemas para dormir antes, os teria agora. Além disso, comprou soda cáustica para entornar no ralo da banheira, só para garantir que não havia nada entupindo o encanamento. A entrada para o banheiro ficava em seu quarto. Por isso, Paul passou a trancá-lo e dormir no sofá da sala. Pelo menos durante aquela semana ele não queria passar perto do banheiro e, de fato, sequer tomou banho. Sua sorte é que a privada era separada, num lavabo no corredor que dividia o apartamento. Ainda assim, não levava o celular para lá e não passava mais tempo que o necessário sentado nela.

A semana passou e um banho foi preciso para que Paul voltasse com dignidade ao trabalho. Passou-se o mês e, depois, mais seis. O barulho nunca mais foi ouvido por ele e, supostamente, pelo vizinho ao lado. Ele não ousava perguntar, pois o homem passava seus dias em casa após uma vida de labuta e decerto tinha mais tempo para ouvir qualquer coisa que fosse. Paul não queria saber, pois já não tinha mais pesadelos com aquela coisa que pensou ter visto um dia. O tempo curou sua paranóia e ele voltou até mesmo a cultivar um costume que tinha de ler seus livros na hora das necessidades. Sentava a aliviar-se enquanto folheava quadrinhos, contos, poesia parnasiana. Vez ou outra ele não conseguia permanecer sentado sem olhar uma ou duas vezes para baixo por entre as pernas, mas estava tudo sempre normal. Até o dia em que Paul desapareceu. Foi um braço longo e pálido que saiu da privada, do meio do mijo e das fezes, e envolveu seu pescoço com dedos esqueléticos, puxando-o com tanta violência que seu corpo foi estraçalhado e desceu pelo encanamento como se fosse líquido.

Esta foi a última vez que o vizinho ouviu as batidas.

Felipe Tavares Teixeira
Enviado por Felipe Tavares Teixeira em 03/10/2017
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