A Última a sentar-se
Quando a Morte bateu a porta eu, já sabendo quem era, a abri. Lá estava ela, com sua face antiga e tão cansada quanto a minha.
- Chegou tarde – disse eu.
- Os homens de hoje não sabem esperar mais – respondeu ela.
Sem pedir permissão ela entrou em minha sala e sentou-se na poltrona, suas costas curvaram, carregadas com todo o peso de gerações e mais gerações ceifadas.
- O que te aborrece?
A Morte olhou pra mim, em seus olhos nada se via.
- Hoje levei mais 160 mil, a maioria velhos, mas muitos jovens também, o número só aumenta. Minhas rondas são cada vez mais difíceis e demoradas. Há mais guerras, há mais tempestades, há mais doenças, há mais homens e menos amor entre eles. Não sei se consigo mais fazer isto.
- Então quer desistir?
- E quem faria meu trabalho? Quem mais carregaria a foice? Não, não posso parar. Já imaginou um mundo sem mim?
Logo passou a imagem pela minha cabeça, como seria um mundo sem a morte?
- Seria um mundo doente – disse o espectro como se adivinhasse meus pensamentos – Imagine pessoas vivas, mas sem vida, meros recipientes de sofrimento humano, presos a um corpo que tende a apodrecer, degenerar e sofrer. O que seria do mundo sem mim? Seria apenas uma esfera de sofrimento eterno, sem renovação, sem vida, pois se não existisse a morte, a vida também não existiria.
- Saber de tudo isso, saber de toda a sua importância, não te deixa orgulhoso?
- Sim, sinto orgulho do que faço, mas assim mesmo é cansativo. Infelizmente agora devo ir, os tiros não param, as doenças se multiplicam, o mundo se enche de espasmos febris querendo eliminar a praga humana de sua superfície. Precisam de mim.
- Te vejo na próxima semana então? – perguntei.
- Infelizmente não, essa é nossa última seção. Entenda, eu não queria isso, mas faz parte do meu trabalho, e já lhe dei muito do meu tempo.
- Acho que entendo, eu já estou muito velho, e também doente, você é meu único paciente e, posso dizer, aquele por quem mais me afeiçoei. Obrigado por ter me poupado até aqui, por ter me dado mais tempo.
- Dei-lhe apenas o tempo que precisava, e do qual eu também necessitava. Eu quem devo lhe agradecer. Adeus.
- Adeus.
Assim, a Morte, que seis meses antes viera me levar, finalmente pode continuar seu trabalho. Baixou sua foice sobre minha alma e eu parti feliz por ter tido em meu consultório o ceifador como meu último paciente. E mais feliz por ter ajudado a prosseguir seu caminho na eterna colheita de homens.