NA ESCURIDÃO
Caboclo amuado andava de mal a pior... Desceu o carreador aos tropeços depois de mais uma noite de porre, bebeu até achar o fundo do copo e do poço. Depois da separação nunca mais achou o caminho de volta para sua antiga vida de roceiro trabalhador e pescador por diversão, a roça perdida em mato condenava o descaso do homem que já exibia os ossos sob a pele devido à farra sem descanso, passava uma noite no bar e outra na zona, já não era jovem e sentia o peso de suas inconsequências.
A lua cheia iluminava o caminho, mas de pouco adiantava, já que mal conseguia se manter em pé, o clarão mais servia para confundir a visão turva do homem, que a essa altura já enxergava vultos e luzes. Desceu ralhando e caiu umas dez vezes antes de chegar ao quintal de terra batida onde estacionava o velho trator enferrujado, três cachorros magros vieram ao seu encontro, pulando e lambendo suas mãos vermelhas de terra. O homem apalpou as paredes de madeira velha e encontrou a porta sem tranca, apenas amarrada com um barbante para evitar que animais entrassem.
Dentro da casa a escuridão era total, no tato achou a tramela que fechava a porta, cambaleou até o sofá velho a caiu desfalecido, como se tivesse andado por dias, deixou o corpo ser vencido pelo cansaço e apenas dormiu... Dormiu um sono conturbado, agitado, sonhando com lembranças do passado... Coisas que há muito haviam apagado da sua cabeça... Coisas que julgava enterradas há muito tempo atrás. Sonhou com seu velho pai... Homem de natureza severa, criação dura, convivência difícil e muitas superstições... Sonhou com as histórias que ele contava, de assombrações e outras coisas sem explicação e sonhou com o dia em que ele morreu...
Era um dia chuvoso, o homem, que agora passava a maior parte do tempo bêbado, naquela época era apenas um menino, foi chamado ao quarto aos gritos, seu pai de cama há dias sofria a agonia de uma doença que desconheciam, fazia seu corpo apodrecer. O menino entrou no quarto onde seu pai definhava, o corpo putrefato exalava um cheiro insuportável, vermes andavam sobre a carne decomposta. Olhar aquilo era realmente difícil... Era quase impossível, o menino franzino fitava a janela aberta tentando se concentrar na chuva e nas gotas escorrendo pelas folhas das plantas como cristais... Brilhando.
Enquanto ouvia histórias desconexas de um passado sofrido, o menino divagava por seus sonhos de criança, de repente a voz de seu pai tornou-se áspera e ressonante e o menino encarou seus olhos fundos e opacos que já não eram tão severos... Pareciam refletir a dor... O medo... E em seus últimos suspiros o velho pronunciou as palavras mais assustadoras que o menino ouviu por toda sua vida, ele disse que podia ver a morte e que ela era negra como a noite sem luar, e disse também que via o dia da morte do menino e que nesse dia ele voltaria para busca-lo e que tocaria sua velha viola como aviso... Em seguida seus olhos tornaram-se bolas vidro e se quebraram...
O caboclo acordou assustado, a voz de seu pai parecia ecoar pela casa, ainda sob o efeito do álcool cambaleou até a mesa em busca da lamparina a querosene, acendeu o isqueiro de bolso e tentou, em vão, acender a lamparina vazia, encostou-se à parede úmida, estava chovendo, a água entrava pelas frestas e nem sinal da luz do dia, concluiu que ainda era madrugada. Enrolou um palheiro no escuro e fumou calmamente recostado na parede, a lembrança do sonho não saia de sua cabeça, mas não sabia dizer se aquilo realmente aconteceu ou era só fruto de sua imaginação. Às cegas e ainda tonto se dirigiu para o quarto, pensou na velha viola que ele guardava em cima do armário... Com certeza daria um fim nela assim que o sol nascesse.
Deitou sobre a cama velha, o colchão era tão fino que podia sentir a madeira nas costas, fechou os olhos, mas tudo que via eram os olhos de seu pai se quebrando e sua voz rouca o chamando para a escuridão... Quando algo quase fez seu coração parar... Era o som da viola... Um som baixo que se foi se tornando ensurdecedor do vibrar das cordas do instrumento... Um dedilhado sem ritmo, com se algo deslizasse sobre as cordas desafinadas. O homem endureceu como pedra de gelo e um arrepio percorreu seu corpo paralisado, o coração saltava no peito tão forte que parecia querer rasgar a sua caixa torácica e o homem suava da cabeça aos pés. Seus olhos se abriram com dificuldade ele encarou a mesma escuridão de dentro de suas pálpebras, nada podia ver, nem um palmo a sua frente. Mesmo com o medo vazando pelos poros o homem precisava dar fim naquilo, os pés descalços tocaram o chão e lentamente ele se guiou em direção ao som, o corpo tremendo o terror pulsando em suas veias, repetia para si mesmo que tais coisas não existiam, seguiu para o quarto onde ficava a viola e tateou sobre o armário velho...
Sobre o instrumento empoeirado a cobra peçonhenta deslizava suavemente em direção ao braço estendido do homem, tocando com o seu corpo frio as notas fúnebres que anunciavam a morte na escuridão.
15/04/2013