Jogo das máscaras- DTRL31

Leah logo notou que algo estava errado na pequena cidade em que nasceu. Não tão pequena na verdade, a energia elétrica e a internet haviam chegado há alguns anos, juntamente com uma ponte que a ligava a capital, mas as coisas continuavam do jeito antigo. Muitos moradores preferiam continuar vivendo sem esses recursos, de um modo mais difícil.

Achava o local estranho por conta desse e de outros motivos,mas daquela vez estava mais estranho que o normal. Todos pareciam guardar algum segredo. Quando foi comprar frutas na feira do local, notou primeiramente que o local parecia cheio demais. Estranho. Notou entre um sussurro e outro falarem de um jogo das máscaras e de uma data. Uma idosa falou que algo estava diferente da vez anterior. Falavam com certo receio e outros falavam em tom de chacota. Mas havia medo, mesmo que oculto, em todas as falas. No ar.

-Oi, pequena. Onde estava?-perguntou seu tio sorrindo. Ao vê-la com as frutas completou meio com censura- Eu disse que não precisava. Poderia ter mandado alguém ir comprar para mim. Sabe que não gosto de você andando sozinha por aí.

-Eu sei, mas somente eu sei como o senhor gosta das frutas.Não muito maduras. – falou..Enquanto falava notou um embrulho com laço e tudo ao lado do tio.

-O que é isso, tio? –perguntou tentando pegar o embrulho- É para mim?

A menina nunca conheceu seus pais. Morreram quando ainda era bebê. Foi criada pelo tio que a tratava como uma princesinha, mas que por vezes a superprotegia demais. Se sentia meio presa. Ele nunca falava de seus pais.

Nos aniversários anteriores tinha ganhado uma televisão, uma casa de bonecas e outros brinquedos que seu tio comprou na cidade grande. Ficou curiosa sobre o que teria comprado para naquele ano. Faltava pouco para seu aniversário de quinze anos. Uma semana e meia.

-Para quem mais seria, querida? Mas ainda não é o momento. –disse afastando o pacote delicadamente de seus dedos curiosos

Um momento de silêncio se instalou.

-O que seria esse jogo das máscaras que tanto falam? Como começou?- tomou coragem e perguntou ao seu tio de uma vez só, antes que perdesse a coragem. Ele devia saber. Todos pareciam saber menos ela.

- Então, quer saber sobre o jogo das máscaras.? . –começou o tio como se esperasse que ela perguntasse sobre isso uma hora ou outra.- Começou no século passado... Um nobre todo final de ano organizava uma festa em que todos tinham que ir de máscaras e fantasiados. Fazia parte do jogo. As máscaras só iriam cair a meia-noite

-Até aí nada de estranho...

-Mas isso é apenas o começo. Pois diziam que o anfitrião da festa ficava sem máscara a festa toda, até que quando soava as doze badaladas do relógio, quando todas as máscaras caiam ao chão ele colocava a sua. Um artefato decorado a mão que realçava seus profundos e belos olhos verdes. Ele gostava de coisas exóticas. Tinha muito ouro, mandava buscar bebidas e comidas de terras muito distantes. Dizem que a dita máscara veio de uma dessas terras .

-Tudo ainda está normal.

-Você vai continuar me interrompendo ou vai me deixar terminar? –perguntou em tom de brincadeira- Ok, vou continuar. Ninguém sabe ao certo o que ocorreu naquela trágica noite. Tinha um número estipulado de convidados, mas naquele ano parecia que tinha gente a mais no salão de baile, entende? Parecia ter um clima diferente também, mas ignoraram isso e tudo seguiu normalmente. Até que na hora de tirar as máscaras ocorreu...-seu tio fez uma longa pausa dramática para manter o suspense ou seria para tentar encontrar as palavras certas para contar? Parecia meio distante por um momento. Como se tentasse lembrar de algo a muito esquecido.

-Ocorreu o que?

-Todos os convidados perderam a razão... Na verdade, quase todos.

*

Era meia-noite. Hora de se retirar as máscaras. As doze badaladas anunciavam isso. Sentia que algo estava terrivelmente errado. Sua cabeça doía. Teria sido algo na bebida servida? Não... Já havia exagerado na bebida uma vez, mas a sensação era totalmente diferente.

Sentia que se tirasse a máscara algo ruim iria ocorrer. Com dedos trêmulos a retirou mesmo assim. Gritou. Um grito de desespero que se perdeu entre risos dos outros convidados.

Estava sem seu rosto! A sua face havia ficado grudada na máscara e o restante se derretia entre seus dedos como cera de vela. O que estava ocorrendo? Porque os outros não gritavam de terror também? Todos estavam sem seus rostos, mas não percebiam.! Um grito mais alto anunciando esse fato fez todos despertarem de um transe. Eles viam a verdade agora! Seus belos rostos derretidos e escorrendo por seus dedos desesperados. O caos logo começou. Todos gritavam por suas faces perdidas, menos o anfitrião da festa.

Olhou para o alto da escada. Viu o sorriso. Não do anfitrião, mas da máscara que se deformava em deboche. Tomava conta de todo o rosto do dono. Como se o próprio acessório fosse o dono da festa. Como se o desespero servisse de alimento para o objeto e seu dono.

*

-Como assim?

-Um dos convidados, ninguém sabe se era homem ou mulher, gritou que estava sem seu rosto, depois disso todos passaram a acreditar também terem perdido as faces.

-Parece um caso de histeria coletiva.

-O que é isso?

-Histeria coletiva. Quando um grande grupo de pessoas sofrem tipo de sintomas estranhos. Aconteceu na França uma vez, passou no jornal, a mulher atacou o próprio marido achando que ele era algum tipo de entidade, de alguma forma isso fez todos do prédio entrarem em pânico.

-Talvez ou talvez não, pois isso é apenas o começo.

*

Estava pegando fogo! Alguém no desespero por recuperar a face perdida derrubou uma vela que incendiou as cortinas. O desespero mudou de face. Todos queriam salvar o que restava de seus corpos, mas nem todos conseguiram. Os que conseguiram não entendiam o que tinha ocorrido na dentro. Com as roupas chamuscadas pareciam mais preocupados em conferir se seus rostos estavam realmente inteiros. Estavam.

Nos destroços da mansão queimada acharam somente cinzas. Mas o mistério estava apenas começando. Haviam pessoas a mais naquela festa. Todos no salão de baile pareciam notar isso, mas ignoraram. Pessoas que não estavam na lista de convidados e que ninguém lembrava de terem visto entrar. De alguma forma sabiam que elas haviam saído no lugar das pessoas que morreram. A cidade parecia com o mesmo número de pessoas exercendo as mesmas funções. Pior de tudo, ninguém conseguia lembrar das pessoas que viraram cinzas. Era como se os convidados fantasmas tivessem saído usando seus rostos como máscaras.

O anfitrião da festa e a primeira pessoa que percebeu seu rosto supostamente derreter se perderam no tempo. Teria sido um homem ou uma mulher a dá o grito inicial? Seria um anfitrião ou uma anfitriã afinal de contas? Como ele havia chegado na cidade? Ninguém lembrava. Até porque o mistério dos convidados fantasmas tomou todo o tempo deles. Mistério que aumentou quando os convidados que perderam suas vidas e identidades passaram a voltar. Usando um tipo especial de máscara até a meia-noite... O jogo havia se tornado mais complexo.

*

-Como apenas o começo?

-É nessa parte que as coisas começam a ficar interessantes... Mas isso é assunto para outro dia. –disse seu tio se levantando, levando com ele o seu presente de aniversário. – Até porque você tem que ir para aula agora. O motorista já está lhe esperando.

-Tio?

-Sim?

-Porque a gente não se muda dessa cidade? Está todo mundo muito estranho...-“Estou com medo dessa cidade” pensou a menina, mas não disse.

-Talvez um dia, mas não agora. .. Ainda não é o momento.

*

Leah andava a passos lentos para a sua sala. Como se anda em um sonho. Depois de saber da história sinistra por trás daquele baile,ficou até sem vontade de ir para a aula. Na verdade ela nunca gostou muito. Gostava de aprender, mas não gostava de ir para a escola. O pior de tudo era que começou a compartilhar do sentimento de todos na cidade, mesmo sem saber toda a história. Era como se o desconhecido e sobrenatural fosse algo palpável. Estivesse ao alcance de sua mão. Se sentia doente... Todos na cidade pareciam meio adoentados.

Estudava na capital por isso tinha que sair cedo de casa. Era uma das primeiras a chegar. Sempre sentava na frente, mas naquele dia quis se sentar na última carteira. A aula começou.Seus olhos começaram a pesar. Mas tinha que prestar atenção na aula. Outro dia teria conseguido se manter acordada, mas naquele não. A sensação de estar febril aumentava. Adormeceu.

Quando abriu os olhos novamente viu que todas as cadeiras estavam vazias. Pensou que deviam ter ido para o intervalo e a deixado sozinha. Mas não era isso. Gritou ao ver que em cima de cada cadeira vazia havia uma máscara de baile chamuscada e cinzas. Mas estranhamente não se sentia mais doente. A sensação febril havia passado. No quadro negro estava escrito em letras desenhadas: “Cai a primeira máscara”. Caminhou até o quadro. Tocou nele. Estava como que hipnotizada. De costas sentiu como se as cadeiras estivessem ocupadas novamente e olhos lhe encarassem. Fechou os olhos

Quando abriu os olhos realmente no mundo real encontrou as cadeiras igualmente vazias e a professora sentada na mesa lendo. Mas nenhum sinal das máscaras. Se sentia novamente febril.

-Professora, posso lhe fazer uma pergunta?- perguntou aproveitando que todos estavam no recreio.

-Pode, senhorita Leah.

-O que a senhora sabe sobre histeria coletiva?

-Porque dessa pergunta?

-Vi algo no jornal sobre...

A professora falou o que Leah já sabia. Basicamente o que havia explicado para seu tio. Talvez fosse falar mais, porém pareceu preocupada:

-Você está se sentido bem? Parece pálida e distante. Não acha melhor ir para sua casa?

Ela achava realmente melhor ir. Não estava bem.

*

Lembrava do fogo e do baile. Quanto tempo teria passado? Não sabia. Quando abriu seus olhos novamente tocou em sua face como para se certificar que estava mesmo lá. Porém aquele não era seu rosto. Aquela não era sua época. Aquela não era sua vida. Andou pela rua e viu que tudo estava diferente. Essa época era ainda mais estranha que a em que acordou 50 anos atrás. As lembranças do dono do rosto que usava o guiavam. Sabia que tinha até a meia-noite...

Viu outros como ele. Conseguia os reconhecer, ao contrário dos vivos. Não pretendia fazer mal a ninguém. Nenhum deles pretendia. Apenas queria jogar um pouco com os vivos. Será que algum deles iria desconfiar? De qualquer forma no fim do dia tudo voltaria ao normal... Pelo menos da parte deles.

O perigo não era eles. Nunca foi. O perigo era o anfitrião da festa e as criaturas que saíram das cinzas disfarçadas de humanos. Principalmente o anfitrião e sua máscara. Sentiu no ar a mesma coisa que sentiu naquela noite momentos antes da meia-noite: Fome. O anfitrião estava com fome.

*

Teve que acessar as memórias do motorista para saber quem era a menina.

“Leah, o nome dela é Leah”

-O que o senhor sabe sobre o jogo das máscaras?-perguntou a garota ao motorista durante o percurso. Ela parecia não ter notado nada. Ou teria percebido e por isso a pergunta?

Ficou em silêncio sondando.

-Por favor, meu tio nunca vai ficar sabendo. Me fale o que sabe.-falou Leah achando que o silêncio dele era por medo do tio dela.

-Senhorita Leah... Eu... - o motorista sentiu as palavras morrerem em sua boca. O retrovisor mostrou algo aterrador. No banco de trás junto com a menina estavam várias máscaras chamuscadas. Ela não via. Não poderia ver...Reconheceu a máscara que usava naquela noite. Assim como a de alguns que tiveram o mesmo destino que ele... As máscaras agora tinham novos donos.

Dirigiu em silêncio todo o resto do caminho. Quando foi abrir a porta para ela, sussurrou de forma misteriosa a segurando pelo braço:

-Você corre perigo, criança.

*

Entrou em sua grande casa ainda meio fraca. Mais assustada que nunca. O que o motorista quis dizer com aquilo?

-Leah, o que ocorreu? Não se sente bem, princesa? Sua professora me ligou.- perguntou seu tio preocupado ao vê-la entrar- Porque você não se deita um pouco antes do jantar?

Não queria dormir. Tinha medo de ter aquele pesadelo com as máscaras. Mas seu corpo parecia pedir por isso. Seu tio parecia realmente preocupado. Deitou no sofá confortável da sala pensando em apenas descansar os olhos. Adormeceu. Para sua felicidade não teve sonhos.

Acordou em sua cama. Não lembrava de ter ido para lá. Era noite. Todas as luzes do quarto estavam apagadas. Seu despertador digital registrava vinte para a meia-noite. Ouviu vozes pela casa que pareciam vim de todos os pontos. Falavam dela. Todas as vozes falavam dela! Se levantou sobressaltada e correu do seu quarto. Chamava pelo tio.

Ouviu as vozes, mas a casa parecia vazia. Os corredores estavam fracamente iluminados, mas viu mesmo assim. Máscaras caídas pelo chão. Chutou as que estavam no seu caminho. Desceu correndo as escadas. Nenhum sinal de ninguém. Onde estava seu tio? Os empregados? O que estava ocorrendo?

Estava perto da porta quando ouviu passos atrás dela. Mordeu o lábio. Não iria se virar.

-Leah, querida, quer abrir seu presente de aniversário?- perguntou uma voz muito familiar

-O que fez com meu tio?- gritou a menina recuando e caindo ao tropeça em algo. A figura que se apresentava a sua frente usava uma máscara sinistra dourada e preta e falava com a voz de seu tio. Segurava um embrulho.

-Cuidado, querida.- a voz pareceu verdadeiramente preocupada com a queda dela- Sou eu, seu tio, pequena. Na verdade estou mais para pai. Em tantos séculos nunca pensei que encontraria alguém com quem realmente me importasse até quando lhe encontrei. Pegue seu presente. Confie em mim, princesa

Pegou com dedos trêmulos. Tinha alguma escolha? Rasgou o embrulho já sabendo em seu intimo do que se tratava. Dentro da caixa havia uma máscara. Igual a do tio. A única diferença que era um modelo mais delicado.

-Demorei muito tempo para encontrar outra igual. Procurei em terras distantes. Sempre compro seus presentes em lugares distantes, já reparou nisso? Coloque a máscara e será como eu.

-O que o senhor é?

-É uma longa história, querida Leah. Coloque a máscara. Estou ficando com fome.

A menina ouviu passos na escada. Viu várias pessoas mascaradas descerem as escadas. Os donos das máscaras que estavam jogadas no corredor e nas carteiras.

-Eles lhe assustam, querida? –perguntou seu tio ao vê-la tremer- Vocês estão assustando a Leah. Deixem-nos a sós.

Ao falar isso, as pessoas evaporaram no ar. Ficaram somente as máscaras que caíram suavemente no chão.

-Os perdoem, querida Leah. Estão apenas curiosos para lhe conhecer melhor. –disse seu tio colocando a máscara nela. –Como se sente, filha?

Está com fome?Vamos aguardar. Ainda não é meia-noite...

Temas: Fantasmas/Assombrações

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 10/09/2017
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