OLHOS

Existe um velho ditado popular em que diz que as paredes tem ouvidos, no meu caso, elas possuem olhos. O fato é que tudo pode acontecer dentro de quatro paredes, mas ninguém imagina o que pode existir embaixo do concreto.

Em 1985 me mudei para Baltimore, havia conseguido meu primeiro emprego em uma corretora de imóveis na cidade. Morei por um mês em um hotel vagabundo no centro da cidade. Não me importava muito com o lugar, as únicas horas que passava lá eram o tempo que eu tinha pra dormir, o que raramente eu conseguia fazer. Quando não eram drogados alucinados esbofeteando a parede do quarto ao lado, eram prostitutas gritando com alguém que não queria pagar pelo serviço recebido.

Consegui encontrar uma casa que estava dentro do que podia pagar, afinal, era só uma estagiária e não ganhava muito. O valor das casas cai bastante de acordo com seu histórico, embora aquela estivesse bem abaixo do que valia, nada de terrível havia acontecido ali. O que levou o preço a cair foi o fato de que era num bairro mais afastado e ao lado da casa havia um pequeno córrego, por onde passava todo o esgoto da cidade, o cheiro não era lá dos mais agradáveis. E isso, pra mim, era muito bom, eu não ficaria muito tempo ali mesmo.

A casa era pequena, tinha apenas um quarto que possuía uma varanda voltada diretamente pro córrego, uma sala minúscula, cozinha, banheiro e uma garagem perfeita pro carro que eu ainda não tinha. Ela havia sido construída a pelo menos 20 anos, teve um único dono. As paredes da casa possuíam muitos buracos e marcas de pregos e conversando com uma vizinha, descobri que o antigo morador era um pintor, atribui os buracos e marcas a isso, quadros pendurados por toda a casa.

Semanas após a mudança resolvi desencaixotar algumas coisas, ainda havia várias caixas empilhadas, em uma das caixas encontrei um quadro com uma foto da minha família tirada no ultimo natal e resolvi colocá-lo na parede. Como já tinham muitos buracos na parede, seria desnecessário fazer mais um, escolhi um que ficava bem de frente pra minha cama. Era um pouco alto, então peguei uma cadeira para que pudesse alcançá-lo, de cima da cadeira fiquei exatamente da altura do buraco. Percebi que ele era um pouco mais fundo do que imaginava e que bem lá, onde eu imaginei que fosse o fim, havia alguma coisa. Aproximei-me um pouco mais da parede, colocando o rosto colado no buraco para que pudesse enxergar e vi que diretamente olhava pra mim um outro olho.

O susto foi tão grande que me joguei para trás, e por sorte, cai de costas na cama. Fiquei ali deitada por uns minutos tentando entender o que eu havia visto, e alias, o que havia me visto. Aos poucos a razão foi voltando e passado o susto, cheguei a conclusão de que aquele não seria um verdadeiro olho humano. Mesmo com uma má impressão sobre aquilo, resolvi apenas tampar o buraco e esquecer essa história.

Tudo continuou bem e normal por vários dias. Até que um dia, depois de sair de um barzinho com colegas do trabalho, eu voltava pra casa, era por volta da meia noite quando entrei na rua de casa, e assim que entrei, avistei um homem alto e magro que andava vagarosamente pela rua, ele estava a vários metros na minha frente e continuava andando, até que ele parou, exatamente, na porta da minha casa. Alarmada e com medo, continuei andando até chegar a ele. De frente pra ele notei que era um homem já com certa idade e de aparência cansada, ele não disse nada, apenas ficou olhando fixamente para a casa.

“Senhor”, chamei lhe algumas vezes sem resposta, até que ele se virou pra mim, seu rosto expressava grande horror e então ele disse: “Eles te observam, não é?”

Eu não entendi a pergunta de imediato e nem fiz questão de entender. Entrei pra dentro da casa e tranquei tudo, quando voltei a olhar pela janela, ele já havia partido. Tomei um banho e resolvi preparar algo para comer, e enquanto isso, aquela pergunta não me saia da cabeça, parece que eu podia ouvir a voz daquele homem, isso me deixou perturbada. Mas assim que deitei na cama, peguei no sono.

No dia seguinte quando sai para trabalhar, minha vizinha levava seu Dobermann para passear como de costume, ainda intrigada com o homem da noite anterior resolvi perguntar se ela havia visto alguma coisa, perguntei como se fosse só por curiosidade, não fiz menção alguma sobre a pergunta que me assombrou. Ela me disse então que o homem que eu tinha visto era o antigo morador da casa, o Sr. Beneke, e que era de costume que ele aparecesse enfrente a casa, disse-me que ele era um velho solitário e havia se apegado a casa, mas que de não devia me preocupar, tratava-se de um homem inofensivo. Mal sabia ela o que estava falando.

Naquele mesmo dia, ao voltar do trabalho, resolvi levar as caixas da mudança para a garagem, pois eu não tinha intenção alguma de arrumar aquilo tudo tão cedo. Ao colocar uma pilha de caixas pesadas no chão, a ponta de uma tabua do assoalho se levantou e percebi que ela estava totalmente solta. Empurrei as caixas para o lado e levantei a tabua, encontrei lá várias molduras e ao tirá-las do assoalho, notei que eram pequenos quadros pintados a mão. Todos eles eram rostos de pessoas e havia uma pequena peculiaridade. Todos, sem exceção de nenhum, não possuíam olhos.

Alguém por motivo desconhecido poderia tê-los guardado ali, aquilo seria uma coisa normal e que não deveria me amedrontar se aquilo não coincidisse tão macabramente com os outros acontecimentos. Juntando tudo o que tinha acontecido, aquilo era realmente muito estranho e me deixou apavorada. No frenesi do medo, tudo que consegui fazer foi juntar todas aquelas molduras e atirá-las na lixeira da rua. Depois de me acalmar resolvi que estava na hora de descobrir quem realmente era o Sr. Beneke.

Fui até a casa da minha vizinha e disse a ela que havia encontrado alguns objetos numa prateleira na garagem e que talvez, o Sr. Beneke ficaria feliz em tê-los de volta, mas que não sabia onde poderia encontrá-lo. Ela me disse então que como o Sr. Beneke não tinha nenhum parente vivo, nunca se casou ou teve filhos, quando a velhice chegou ele foi levado para um lar para idosos e residia até então na instituição Sta. Apolônia de Baltimore.

Como eu estava aflita por entender o que estava acontecendo fui no mesmo dia até lá. O Sta. Apolônia de Baltimore era um lugar pequeno, com poucos residentes, era uma instituição publica que sobrevivia de um pequeno orçamento mandado pelo governo e doações dos moradores de Baltimore. Na recepção, perguntei por Beneke e a enfermeira me disse que único Beneke que residia ali, era Richard Beneke e que no momento eu não poderia visitá-lo. Ela me informou também que o Sr. Beneke sempre foi um paciente lúcido e calmo, mas que a meses vem tendo crises e saindo as escondidas do Sta. Apolônia. Insisti para que pudesse vê-lo, mas isso me foi negado, entretanto, ela notou o meu desespero em vê-lo e me cedeu o arquivo do Sr. Beneke. Na ficha não havia histórico familiar algum e nenhuma informação útil e tudo que a enfermeira sabia me dizer era que Richard Beneke era órfão desde os 10 anos de idade, os pais haviam sido assassinados. Sai de lá e fui até a biblioteca de Baltimore procurar por registros do acontecido, não foi difícil encontrar. O nome Beneke era conhecido em Baltimore, Martha Beneke, mãe de Richard Beneke, era uma famosa pintora da região. Robert Beneke era o delegado da cidade, e depois de uma operação e de ter visto o que não deveria ver, o casal foi assassinado na casa da família e tiveram os olhos arrancados, deixando assim Richard Beneke órfão. O assassino logo foi encontrado, preso e anos depois morreu na prisão.

Conversando com a velha cuidadora da biblioteca, ela me disse que Richard presenciou tudo e não se sabe o motivo do assassino tê-lo deixado vivo, ele foi mandado para um orfanato, e apesar do trágico destino dos pais, Richard cresceu bem e se tornou um pintor como a mãe, mas que pouco era visto em Baltimore pois se mudou e só voltou quando já tinha certa idade, construiu sua casa e ali viveu por vários anos.

O trauma de Richard Beneke explicava os rostos sem olhos nos quadros, mas ainda não explicava um olho na parede do meu quarto, mas em todo caso, não havia mistério, era apenas um homem abalado por uma infância destruída, eram apenas marcas de uma tragédia.

Naquela tarde quando voltei pra casa me senti mais tranqüila, pois apesar do passado horrível do antigo morador da casa, tudo havia acontecido longe dali e pelo que parecia estava tudo explicado. Mas quando a noite chegasse aquela tranqüilidade acabaria.

Depois de tomar um longo banho para tirar o estresse daqueles dias, deite-me em minha cama e adormeci, dormi por várias horas seguidas, até que fui acordada por um barulho, parecia que algo tinha sido atirado no chão. Despertei num pulo, e ao sentar na cama, fui tomada pelo pânico, havia um homem sentado numa cadeira aos pés da cama. Era Richard Beneke, ele estava com uma tela nas mãos e o barulho veio de um pincel que ele havia arremessado na parede. Ele estava nervoso, suas mãos tremiam, ele suava e parecia muito irritado.

No momento, eu fiquei sem reação, não consegui gritar e nem me levantar, pensei estar em um sonho. Mas tudo se tornou muito real quando com uma voz terrivelmente embravecida ele falou comigo: “Eles vêem tudo, expressão tantas coisas! Além do que eles vêem, muitas coisas podem ser vistas através deles! Muitas coisas que se escondem no fundo deles. Eu não consigo suportar! Eles são terrivelmente difíceis de se pintar!”

Obviamente, eu entendi perfeitamente do que ele estava falando: Os olhos. Consegui então me mexer, levantei rapidamente e me dirigi até a porta, estava trancada. Richard nem se quer se mexeu e meu corpo inteiro foi tomado por calafrios quando ele gritou para mim: “Estou tentando pintá-la. Fique quieta se não terei que arrancá-los!”

Fiquei ali encostada na porta sem saber o que fazer enquanto ele se levantou e percorria pelo quarto, olhando cada buraco na parede e repetindo: “Verde, azul, castanho, preto...Mas os seus são mais escuros.”

Ele foi até mim e me pegou pelo braço, fez com que eu olhasse cada buraco e no fundo de cada buraco havia um olho. Eu estava aterrorizada, por mais que tentasse falar, nenhum som saia da minha boca. Ele me arrastou até a garagem e puxou a tabua do assoalho onde eu havia encontrado os quadros, ele se virou pra mim e gritou: “Onde estão os quadros?? Eram perfeitos! Agora só sobraram rascunhos!”

Eu não entendi o que ele queria dizer até começar a tirar mais tabuas do chão, haviam vários corpos por baixo de todo o assoalho. Naquela hora eu comecei a chorar, eu sabia que ser deixada ali embaixo do assoalho seria meu destino. Ele me deixou trancada dentro da garagem e saiu. Tentei sair de lá, mas estava tudo trancado. Tentei gritar, mas parece que ninguém me ouvia.

Quando ele voltou, trazia consigo tela e pincel. Ele virou a tela para que eu pudesse ver e era meu rosto ali pintado e como já era esperado, faltavam-me os olhos e o foi o que ele disse: “Faltam os seus olhos.”

Ele me jogou sentada em uma cadeira e veio em minha direção apenas com o pincel na mão, passou o pincel pelo meu rosto, enfiou-o na beirada do meu olho e depois cravou-o no fundo, fazendo com que meu olho saltasse da órbita. A dor que senti era terrivelmente profunda, é indescritível a sensação de ter um olho sendo jogado pra fora.

Com o olho que ainda me restava vi que ele havia deixado a porta aberta ao entrar, empurrei-o com toda a força que consegui reunir jogando-o pra longe de mim. Qualquer um quando se encontra em uma situação terrível como a minha, descobre uma força que não sabia que existia antes. Eu corri o mais rápido que pude, e ao passar pela porta, a fechei. A ultima imagem que eu pude ver antes da porta se fechar por completo, foi de um homem totalmente calmo, que não fazia menção alguma em tentar me perseguir, ele apenas ria.

Corri pra fora da casa, naquela hora, minha voz parece ter voltado, porque tudo que eu ouvia eram meus gritos desesperados. Vários dos meus vizinhos saíram pra fora das casas, um deles me acolheu. Além de gritos, eu não disse palavra alguma até chegar no hospital. Perdi um olho, mas continuo viva.

Dei meu depoimento aos policiais que foram chamados, contei tudo como aconteceu. Entretanto, na casa não havia mais ninguém além dos corpos no assoalho. Na instituição Sta. Apolônia, eles foram informados que o Sr. Beneke havia tido uma grande melhora, em que em momento algum dessa noite ou das anteriores ele havia saído de lá. Os corpos, me disseram, eram recentes, estavam ali não tinha mais que dois meses, o que não coincidia com a moradia de Beneke ali e nem com a minha história.

Eu, fui dada como louca e internada em um hospital psiquiátrico.

Aqui, as paredes não possuem olhos, mas sim bocas, pois posso ouvir elas gritarem toda noite.