Cântico
8/9/2017
A madrugada chegava às três horas da manhã, quando mais uma vez a canção começou. Atordoada Luciana despertou, com uma pontada funda no peito, daquela que vem quando o medo e o susto e a incerteza juntos disparam algum hormônio nada agradável. Luciana deixou-se ouvindo aquilo e tentando entender o que era cantado, mas não era possível distinguir. Aquilo acontecia a mais de um ano, e ela nunca conseguia entender o que era cantado.
No começo o estranhamento era algo mais de fascinação, pois não fazia mais que tentar voltar a dormir, e como acontecia algumas vezes por mês, não deu muito crédito, no entanto... passara a semana toda despertando com o som.
Buscou informações com sua filha, Marina, mas a criança não tinha nenhuma ideia do que ela estava falando. Nenhum dos vizinhos ouvia aquilo, e na terceira noite ela levantou-se e foi buscar a fonte do som, que era relativamente baixo, mas não mais baixo o que alguém falando. Andou pela casa e chegou à porta do quarto de Marina, abriu a porta devagar, mantendo o maior silencio, pois não queria despertar a menina, e com a luz do celular ela vasculhou o quarto pela fresta.
A boca de Marina se mexia, mas o som não havia aumentado. Não dava para entender o que ela cantava, e nem mesmo ler seus lábios, não era como se fosse outra língua, era como se fosse ininteligível. Desde então Luciana passou a observar a menina a cantar por horas. Etnão, mais uma vez ela se levantou, levou uma pequena lanterna e um banco, posicionou-se na porta, e pela pequena fresta focou a luz nos lábios da criança. Dessa vez ela passou duas horas cantando. Luciana sentia cada vez mais raiva, e cada vez mais medo.
Voltou a dormir, era um sábado e ela dormiu até mais tarde. Marina a acordou com o café da manhã: cereais com leite. O que mais uma menina de nove anos poderia fazer? Luciana ainda não permitia que cozinhasse. Elas passaram a tarde juntas, no parque, mas Luciana olhava para ela e não sabia o que sentir, mas sabia que sentia um frio gelado em sua espinha. Ela perguntou à Marina se ela tinha tido um sonho diferente esta noite:
- Ah, não lembro, acho que sonho sempre com a mesma coisa, mas quando acordo não lembro de mais nada.
Elas decidiram retornar para casa, e foi quando Luciana começa a ouvir o som novamente, um canto, ela não tem coragem de olhar para Marina, sua mão começa a soar, sente muito medo e acaba desmaiando de tanto terror. Quando acorda já está em casa, pois a menina ligou para a tia Luana, que foi socorrê-las de carro, elas estavam abanando Luciana. Luana fala com ela e ela ouve o som do canto, e Marina está com a boca mexendo, com um leve sorriso, enquanto os olhos não condizem com aquela boca e aquele som.
- Marina! O que está fazendo? – grita Luciana. A garota se afasta assustada e sua oca não mexe mais, o som parou.
Luana foi embora e Marina foi banhar-se, no início da noite, e o canto começou, Luciana não suportou o que estava acontecendo, entrou no banheiro e gritando começou a sufocar Marina, que tinha a boca mexendo e o leve sorriso, mas os olhos esbugalhados, até que a língua e os lábios pararam e a boca estava roxa. Luciana enterrou Marina sob o assoalho da sala, e foi dormir, imaginando que agora estava livre do inferno que vinha vivendo.
Quando chegou as três horas da manhã, o cântico iniciou-se, tudo de novo, Luciana entrou em pânico e reabriu o buraco que cavara para enterrar o corpo da filha, e desenrolou o corpo do lençol, que acabou de bruços no chão, e o som continuava, sem parar, Luciana olhava para o corpo sem acreditar, pois não respirava, aquilo era loucura, agachou-se lentamente e tocou, o braço estava frio, não era possível, aquele som... Luciana virou o corpo de Marina, os cabelos estavam sobre o rosto, e pareciam mexer-se levemente, os olhos de Luciana queimavam com as lágrimas, ela afastou os cabelos da menina de seu rosto, e sua boca estava se mexendo, apesar de seus olhos estarem fechados.