Não Era Anjo
 
 
# Noite um

          Os olhos divagavam entre a praça e o álbum de recortes no peitoril da janela. O primeiro recorte era sobre a mulher que envenenara catorze velhinhos. Pena de morte. Era um dos sonhos de Hugo: ver alguém sendo executado na cadeira elétrica. Havia lido que o sangue fervia, que o corpo se retorcia em ângulos impossíveis. Continuou folheando: o sueco que desmembrava corpos. Foto de um homem comum. Podia ser ele daqui a uns trinta anos...

            A caminhoneta passou pela portaria do condomínio e tirou-lhe os olhos da coleção macabra. Apenas ele viu que se mudavam.  Um homem e a filha, uma graça de jovem.  Descalça?

            — Ah! Vocês não trouxeram quase nada.  Serviço fácil. Agora, o horário... Cobro mais — disse o motorista, enquanto o casal entrava no prédio.

            Acabara a distração, a insônia não. Um pavor pegajoso tomava conta do rapaz, mansamente. Era como se algo, ameaçasse engoli-lo. Sentia as paredes se fecharem. Prendeu a respiração e aguçou os ouvidos, o estômago pesado de doces e da consciência. Esperando. Esperando o quê?

          — Grite, menininha. Mais, Bola de Mijo. — sabiam da incontinência. Hugo gritou e gritou, a voz falseada. O nariz começava a sangrar, assim, sem mais nem menos. Isso ajudava, pois os fazia desistir de lhe bater. Encolhido, sangrando e mijando, vazando por todos os buracos do corpo. O êxtase de caçador era dos colegas, o pavor da vítima, dele. Acuado...

            O momento passou. Voltou a respirar. A mãe, do outro quarto, percebera a movimentação e reclamou. Demorou ainda a pegar no sono, o suficiente para ouvir através da parede:

 
— Está com fome?
— Sim.
— Vou dar um jeito... Amanhã, hoje não dá mais.
 
 

# Noite dois

          Depois de cruzar a entrada do bloco de pequenos apartamentos, Hugo estava seguro. Naquele pátio nada de ruim jamais lhe acontecera. No geral. Esperaria a mãe para o jantar. Gostava do parquinho infantil à noite. As janelas ao redor acesas e ele, no escuro. Em segurança e sozinho ao mesmo tempo. Tirou uma faca da bainha, falou com a árvore:

          — O que é que você está olhando, idiota? Quer morrer, hein? — sem resposta enfiou a faca nela, com raiva.

         — É isso que dá. Ficar me encarando. —girando a faca, ainda sussurrou:

           — Agora grite que nem uma menininha.

        Hugo se deteve. Alguém estava ali. Abaixou a faca e olhou para o escorregador. A luz foi suficiente para mostrar a garota nova. Ela pulou do escorrega e aterrissou na frente dele. Um salto de mais de dois metros. Deu um passo na direção dela, que continuou olhando-o.  Deu mais um passo e de repente ficou com medo. De quê? De si mesmo. Com a faca na mão, aproximou-se mais. Como ela não ficou com medo?

           — Oi. — empurrou a faca na bainha.

      — Eu disse oi — repetiu, na ausência de resposta. Observava o cabelo escuro, o rosto pequeno, os olhos grandes, bem abertos que o miravam calmamente.

           — Ouvi.

           — Então, por que você não respondeu?

          A jovem deu de ombros. Estranho. Ela não estava com gorro nem casaco. Apenas uma blusa leve, embora fizesse muito frio. Apontou para a árvore e perguntou o que ele fazia. Hugo desconversou e indagou onde morava.

          —Você sabe.
         
          — Como saberia?


          — Você me viu da janela.

         Um calor subiu-lhe, enquanto tentava pensar em alguma coisa para dizer.

        — Eu não posso ser sua amiga. Só para você saber. — Ela tomou a dianteira.

       — Como assim? — Hugo sentiu debaixo de uma das mãos o contorno do cabo da faca no casaco.

      — É preciso ter motivo? Só estou dizendo como as coisas são. Para você saber de uma vez. — Um dos cantos da boca da menina se levantou, como numa espécie de sorriso.

       — E você acha que eu queria ser seu amigo? Besta, é isso que você é.

      Imóveis, a meio metro um do outro. Um cheiro estranho exalava do corpo dela. Nauseante. Fazia um ano que o cão dele tivera uma infecção, o mesmo fedor. Outras palavras rudes. Ela, agitada, saiu.

         Hugo ergueu os olhos para as persianas do apartamento da garota. Fechadas, eram retângulos cinza-escuros. A vidraça fosca do banheiro parecia estar coberta do lado de dentro, era mais escura que dos outros. Suspeito. Provavelmente era uma… família esquisita. Viciados. O homem tinha um aspecto incomum, velho. Não era de duvidar que ela fosse doida.
 

           Tobia fizera aquilo mil vezes, nas últimas falhara. Ruim, o suficiente para que eles fossem obrigados a mudar de cidade. Hoje faria tudo certinho... e seria elogiado. Carícias, talvez. 

       Seguiu uma moça na rua. Diminuiu o passo. Não devia aprontar nada. Ela entrou por uma trilha no parque. Como é que andava assim, sozinha? Ele parou, deixou-a ganhar distância e desaparecer no arvoredo. Chegou mais perto e bateu-lhe com força na cabeça. Arrastou o corpo, prendeu-o de cabeça para baixo em um galho alto, furou a jugular com um punhal, o sangue esguichou. Colheu-o no frasco de plástico, por um funil. Garantido. Era apenas descartar o corpo.

 
 

# Noite três

           A menina vestia a mesma roupa e Hugo não conseguia entender como ela não sentia frio. Ele próprio estava ficando gelado ali no pátio, apesar do casaco:

           — Quantos anos você tem? 

           — O que você acha? — desdenhosa.

          — Eu tenho dezesseis. — ele deu de ombros.

          — Também. Estou cheirando melhor?

      A voz dele não era nem sequer um sussurro. Uma exalação. O rosto da jovem estava perto. Os olhos de Hugo não desgrudavam da sua face. Por isso não notou como os olhos dela mudaram, estreitaram-se, assumiram outra expressão. Como o lábio superior se arqueou, mostrando um par de caninos pequenos e encardidos. Via apenas a bochecha da menina. E, enquanto os dentes dela se aproximavam do pescoço, ele acariciou-lhe a face. Ela parou por um instante e recuou. Os olhos reassumiram o aspecto anterior.

           — O que você fez?

           — Desculpe… eu… — Qual… seu nome?

           — Arine.

           — Eu sou Hugo.

          — … é. — a menina estava inquieta. Alerta. Os olhos se moviam de um lado para o outro. Não disse mais nada. Sem alarde, andou em direção ao prédio.
 

          — Nunca mais. Não importa o que você diga.
          — Tobia…
         — Não. Não e ponto final.
         — Eu vou morrer.
         — Então morra.
         — Você quer isso?
      — Não quero. Mas você mesma… pode. É… repugnante, tão…
         — Eu sei.
         — Não, você não sabe. Para você é diferente, é…
         — Você acha que eu… gosto disso?
      — Não sei. Talvez você encontre outro, quem a ajude melhor.
      — …

 
          O homem saiu do bar. No túnel, ouviu uma voz. Seguiu na direção dela. Vislumbrou o corpo no meio das folhas secas.

        — Me ajuda… — estendia os brancos braços. Quase nua, violada?

      — Está ferida? Eu a carrego para o bar e chamo uma ambulância. É.

          Ergueu-a. Quase não pesava. A jovem passou os braços em volta do pescoço dele e encostou a bochecha no ombro. O homem deu o passo inicial, sentiu uma dor como se picado por marimbondo. Quis tirar o inseto, mas não podia largar o corpo; não conseguiu baixar a cabeça, pois o maxilar dela pressionava-lhe a goela. A pegada ficou mais forte e o ardor aumentou. Ele entendeu. Sentia a mandíbula moendo a garganta, para cima e para baixo e o padecimento que aumentava. Um filete quente escorreu pelo peito. Em reflexo, largou-a; ela não caiu. Em vez disso, agarrou-se ainda mais, encavalando-lhe nos quadris. Os caninos não paravam de mascar. Ele cambaleou para trás, tentando respirar. Um ruído suave de algo sendo sorvido, o abraço firme. Luzes distantes dançavam como vagalumes diante dos olhos moribundos. Ele caiu de costas ainda ouvindo as folhas secas se amassarem sob a nuca.
 

 
# Noite quatro

          As mechas brancas do cabelo de Arine haviam desaparecido. O aspecto era mais saudável. Nas bochechas redondas apareceram covinhas. Conversaram e resolveram quebra-cabeças. Dois amigos comuns. Hugo contou dos maltratos na escola e ela disse que deveria reagir. Animou-o. Ela o ajudaria. Ele riu amarelado. Despediram-se.
 
       
Arine pressionou o indicador, sentindo o tique-taque. Moveu, com cuidado, a cabeça da mulher para os joelhos. Um assobio fraco, a respiração. Debruçou sobre ela. Sabonete, suor, cheiro de pele velha — de hospital… Perpassando tudo: o sangue. Desceu até a língua tocar a jugular e mordeu. Trincou o maxilar. A mulher estremeceu. O corpo se abriu todo e os pés socaram o ar com força. A jovem abafou os gritos com a outra das mãos, à medida que se colava ao pescoço, sorvendo goles profundos. A velhota se debatia, acabou pegando a bolsa com que bateu na agressora.  Neste instante, a cabeça se afastou — o sangue tinha mau gosto. Morfina. Câncer.

          O estômago revirou. Em jatos cada vez mais fracos, o sangue jorrava, escorrendo por detrás do banco de madeira. Arine deslizou para o gramado, com a morfina em disparada pelo corpo, ria de figuras que se dissolviam na mente atordoada virando apenas cores e mais cores. Não aguentou. Desmoronou vomitando...

 
 

# Noite cinco

        — Quer… fazer um pacto comigo? — Estavam no porão do prédio.

     Se Arine tivesse perguntado “como?”, talvez tivesse explicado. Mas ela apenas disse “quero”.  Hugo engoliu a saliva com força, pegou a lâmina fazendo a parte cortante da faca descansar na palma, fechou os olhos e passou a lâmina na mão. Ardência, pontadas de dor. Sangue brotando, formando uma linha grossa e irregular.

         — O que você está fazendo? — Arine levantou a cabeça. Os olhos dela aumentaram. Sacudia a cabeça sem parar enquanto recuava lentamente.

        Ele balbuciava explicações, indicava a faca. O rosto de Arine ia desfigurando. Ficou de quatro, o sangue gotejante, deu um passo à frente, trincou os dentes, falou silvando:

           — Saia daqui! Senão vai morrer!

          — Pare com isso. Pare de brincar. —O medo encheu os olhos de Hugo.

       A criatura avançou, de quatro. Estacou. Abaixou-se, esticou a língua e lambeu o sangue no cimento sujo. Não parava de lamber o chão. Tinha uma mancha cinza na ponta do nariz, ao levantar a cabeça.

           — Vá embora… por favor… vá… — O fantasma passava-lhe pelo rosto de novo, mas, antes que conseguisse se apoderar dela, a figura se levantou e correu pelo corredor, abriu a porta e desapareceu.

         Hugo ali parado. A ferida foi mais profunda do que ele queria. Experimentou lamber um pouco do sangue da palma da mão, mas cuspiu. Pensava em todos os cadáveres dos noticiários nos últimos dias...
 

         — Tobia. Imprestável... Ajude aqui! —Vestia ainda a máscara horrenda.

             — Só tem uma coisa que ainda posso fazer por você — estendeu-lhe os braços para ser abraçado e deixou a cabeça pender para a esquerda. A sanguessuga atacou-o sem remorsos.

 
 

# Noite seis

         Um assobio baixo do lado de fora da janela. Ele se levantou da cama e encostou-se e no batente. No ar, Arine:

              — Hugo, você precisa me convidar.

          — Mas… a janela. Você já… É vampiro? — Ele entendeu. Entendeu tudo. Queria confirmação. Todas as reportagens, a falação, o medo todo… Arine enxergava no escuro, tinha alergia à luz, precisava de sangue… Vampiro.

          — Tobia se foi.

        — Seu pai a abandonou? Vamos entre, antes que alguém a veja aí fora.

      — Não era meu pai. — mostrou uma foto antiga. Hugo reconheceu o casal, apesar da juventude. Silêncio. Bem longo.

         — Você gostaria de… virar o que eu sou?

          —… não. Eu queria ficar com você, mas…

         — É. É claro que não quer. Aceito. Você gosta de matar, não é?
 
          — Mas não matei, e isso conta.


          — Conta. Só quis matar.

          — Eu não sou como você!

        — Venha comigo. Não posso ficar aqui. — pediu a jovem, colocando-lhe no ombro a mão trincada de sangue coagulado.
 
      Hugo adormeceu no apartamento de Arine; ficaram a madrugada inteira com ela guardando o que havia para ser guardado. Teria que partir. Presságios.
 
       Quanto tempo se passara? As janelas estavam tapadas com cobertores, nos cantos podia ver uma moldura suave de luz cinza. A cabeça lhe doía e a luz machucava. Sugou o nó do dedo, passou a língua nele. O beijo. E… os dentes. Os dentes de predador. Tateou o pescoço com ambas as mãos. Não. Claro. Ela prometera que…

        Mas onde ela estaria? Viu a porta fechada e o papel colado: “Não entre”. E se ela estivesse mesmo… deitada num caixão? Besteira. A campainha soou. Pelo olho mágico viu o policial. Ofegante, escondeu-se na cozinha. O estrondo indicava que a porta fora arrombada. O guarda ia examinando cada cômodo. O bilhete atraiu a atenção. Abriu a porta.

        O corpo no fundo da banheira parecia totalmente débil. Não respirava. O policial esperava algo… medonho, na mesma medida do horror que viera dos telefonemas assustados. Mas essa criaturinha suja parecia que nunca mais se levantaria. Uma criança machucada. O coração batia como… de um animal em hibernação. Olhou para o rosto recoberto por uma película de sangue e achou que exibia um… sorrisinho.
O detetive não quis esperar o reforço. Levantou a arma, afastou um pouco as pernas para poder concentrar todo o peso na empreitada e…

        —Aaaahhh! — o monstrinho saltou da banheira, puxou-lhe a cabeça como se fosse dizer carinhos ao ouvido e colou-lhe os dentes no pescoço.

        Arine não tinha visto Hugo que, aturdido, retornava de costas para o corredor. Ele cantarolava baixinho procurando abafar o fragor dos corpos conflitantes. O rapaz fechou a porta escancarada e saiu, avaliando: Arine teria que partir mesmo.
 
 

# Noite sete

          Todos os olhares acompanhavam Hugo. Sim, ele temia o pior: conseguira reagir à provocação, com a régua cortara uma orelha do agressor.

           Seguiu para a sala de musculação. Cadê todo mundo? O professor? Hugo fechou os olhos e cerrou os punhos. Ouviu o virar da chave. Corredor polonês. Surra de bando. Tapas, socos, empurrões.

           — Soltem... Socorro... — vociferava com o rosto colado no cimento, tentando fingir que era uma pedra, insensível a pancadas. Respirava fundo até onde dava com o peso do outro em cima dele.

          Uma mancha clara surgiu no vitrô estilhaçado. O vidro de segurança se quebrou como se fosse comum. Centenas de fragmentos minúsculos arredondados explodiram tilintando. Hugo se apercebeu arrebatado.
 
 

# Dia oito

        Três jovens tinham sido assassinados na noite anterior. Um terceiro… estava desaparecido; a mãe desesperada. O policial chegara à conclusão de que o desaparecido, Hugo Macedo, era o rapaz que respondera à pergunta sobre heroína três semanas atrás. Havia drogas envolvidas. Releu os apontamentos de testemunhas e uma palavra aparecia o tempo todo: anjo. Um anjo buscara o jovem. Demasiado trivial. Um filme. O perito que fotografara cabeças e membros espalhados pela quadra contestou:

          — Muito improvável que seja um anjo celeste.
 
 

# Dia nove

         — Por que não deixou a mala no bagageiro?

         — Não é tão pesada quanto parece. — O rapaz balançou a cabeça e mostrou as passagens para o cobrador do ônibus.

         — Não, é claro. Sem querer me intrometer, o que tem aí? Deve ser um tesouro já que comprou um bilhete só para ela.

          — Um pouco de tudo.

          — Já será noite quando a gente chegar.  — E as caixas?

          —Também são minhas.

          — Eu não estou intervindo… Mas como é que você…

        — Eu vou ter ajuda depois — respondeu Hugo com uma expressão nova.

        — É diferente quando se é jovem — ainda comentou o cobrador ao se afastar.
 
 

 
Tema: Vampiros
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 08/09/2017
Reeditado em 04/10/2017
Código do texto: T6108447
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