Seu Pequeno Segredo...
 
O quarto da mãe de Sarah ficava no quarto andar. Eu passei meses contendo minha ansiedade de saber como ela era. “Por favor, esse é o único... ÚNICO assunto que não vou querer discutir com você, Pablo... nunca... você pode fazer isso por mim?! ”. Eu estava completamente apaixonado.
Sarah era uma mulher linda, sua pela era negra, ela era magra nas partes certas, com músculos nas partes certas e curvas nas partes certas. Alguma mistura distante em seu DNA a fez ter cabelos bem lisos e curtos. Seu sorriso era largo e jovial... um tanto moleque. Eu tinha vontade de ficar encarando ela o tempo inteiro. 
“Olha... minha mãe vive lá em cima, no último quarto. Ela fica lá e não sai nunca, e NINGÚEM pode ir lá... só eu, quando é preciso. Não posso te explicar direito o porquê, por favor você pode tentar esquecer isso e não tocar no assunto?!”, ela implorou, assim que a pedi em namoro. “Claro, não se fala mais nisso...”. Respondi de pronto.
 
Um Ano Depois... Curiosidade exacerbada...
 
Era o namoro mais feliz que eu tivera. Eu me sentia cuidado e ao mesmo tempo podia me sentir só em meu espaço. Um humano, separadamente. O que é bem difícil nos relacionamentos em que se ama demais. Mas ela tinha a vida dela, trabalhava muito, e se sentia responsável por seu irmão jovem e com uma personalidade complicado. E eu... tinha ainda juventude para trabalhar por muitas horas e achar isso divertido. Quando nos encontrávamos, – APENAS aos finais de semana – estávamos loucos de saudade um do outro e tudo corria muito bem.
Mas eu sempre entrava naquele casarão, olhando pra cima... era inevitável. Desde quando vinha andando pelo início da rua ele estava lá, imponente... e enorme. Eu subia olhando a janela, afim de ver mesmo que de relance... o rosto da velha mulher. Dona Eva (era o seu nome) não fazia o menor barulho. Muito raramente eu a escutava tossir fracamente, como se estivesse apenas coçando a garganta, mas só isso.
Um dia encontrei o irmão de Sarah, Pedro, sentado no meio fio em frente à casa. Ele fumava um cigarro de maconha em plena luz do dia e estava nitidamente alterado. Seus olhos flamejavam, suas pernas tremiam como se fizesse frio e tinha um sorriso cansado no rosto.

- Olha ele... – Ele disse num tom amargo. – E aí Romeu. A Julieta não está em casa.
Ignorei a tentativa de me provocar e sorri amigavelmente.
- Eu sei, Pedro... não estou vindo para cá agora... só de passagem. Só venho de noite...
Ele se levantou nervoso.
- Cara, você é psicopata? É um maldito robô? Ou só é LERDO mesmo, hein?? Como é que você não tem o mínimo de curiosidade?! – Ele bradou em voz alta, indignado.
- Não entendi... – Respondi. Mas eu tinha entendido.
Ele deu um muxoxo ridicularizando minha atitude de escoteiro. Até eu estava começando a me sentir ridículo. Até eu estava começando a achar que aquele mistério todo estava indo longe demais.

- O que sua mãe tem...? – Perguntei num tom quase de cobrança.
- Ah... finalmente... – Ele riu. – Mamãe é uma velha desgraçada e mal-educada. Só a presença dela deixa qualquer salão lotado de pessoas, num estado de tensão e irritação insuportável. Uma verdadeira bruxa mal-humorada, isso que ela é... não consegue passar um minuto numa conversa sem ofender alguém. Quando a trancamos lá, ninguém sentiu falta da velha..., mas ela é ainda muito pior do que isso tudo...
Fiquei parado olhando pra ele. Estava tentando parecer firme... parecer macho... idiotamente tentando me impor diante das acusações anteriores. Mas agora eu estava me sentindo arrependido de perguntar. Porque por mais antipática que uma pessoa possa ser... cárcere privado é crime.
- Você provavelmente está achando que a trancamos apenas por isso. – Disse uma voz atrás de meu ombro.
Era Sarah... e ela tinha lágrimas nos olhos. Eu olhei com raiva para Pedro, como quem diz
“viu o que você fez? ”. Mas ele deu de ombros e começou a enrolar outro cigarro.
- Eu não queria...
- Agora você vai deixar eu terminar de contar a história. –
Ela me interrompeu com uma voz firme e raivosa que fez meu coração se partir e quase entrar numa crise de ansiedade. A vontade que eu tinha era de tapar os ouvidos e sair correndo. Quem sabe voltar uns quatro ou cinco dias depois e encontrar o meu amor já calmo e sereno. Ela segurou a minha mão, de uma forma não muito carinhosa. E com os olhos molhados, mas firmes, me encarou enquanto contava a história.
- Ela não é só uma mulher desprezível. A mamãe tem um poder... que na verdade é uma maldição. Isso começou a acontecer quando ela completou setenta anos.
- O q...
- Cale a boca agora, querido. Deixe-me contar...

Emudeci me sentindo uma criança que foi levada a sala do diretor da escola.  Pedro deu uma risadinha escarnecida. Até então eu não tinha reparado que ele não gostava de mim.
- Ela vê uma pessoa... qualquer pessoa... e ela pode fazê-la ver... quando e COMO, essa pessoa irá morrer. É uma coisa terrível! Nos primeiros dias, ela fez cinco pessoas se suicidarem e deixou outras muitas arrasadas, traumatizadas e revivendo a visão em suas mentes. Muitos adoeceram e morreram muito antes do período em que minha mãe os fez ver. Por algum motivo, comigo isso não funciona... mas eu não deixo o Pedro subir...
- E então... você a prendeu lá?

- Sim, claro! – Disse Pedro. – Foi fácil decidir, pra falar a verdade! Por mim eu prendia ela muito antes de ter os poderes... ela era uma força do mal, muito antes de seus poderes.
Suspirei olhando o chão. Depois fechei os olhos por alguns instantes. Desejei acordar em meu quarto, percebendo que tudo isso se tratara de um sonho. Mas quando abri os olhos vi Pedro sentado no meio-fio, chapado... E Sarah com um olhar ansioso me olhando. O afeto parecia ter voltado às suas feições. Eu voltei a sentir um calor no peito diante de seu rosto.
 - Eu não sei o que dizer...
 - Não há nada a dizer, idiota.

- Ei, dobra a língua antes de falar comigo, pirralho. – Respondi em voz alta. Eu nunca tinha falado assim com ninguém.
Todos nós paramos por uns segundos. Pedro manteve seu cigarro no ar, me olhando impressionado e sorrindo forçadamente. Sarah me encarou com olhos de espanto. E como se tivéssemos combinado antes, caímos todos numa sonora gargalhada em conjunto, que durou alguns minutos e aliviou a tensão. No fundo continuávamos tensos. Aquele não era um tipo de segredo bom de se conviver. E pra mim era novo... Um grande arrependimento, algo que eu não queria ter feito acontecer. E para eles provavelmente era um nó na garganta que já durava tempo demais.

 
Outro ano depois... Passos no Andar de Cima...
 
- GOOL!! – Berrou Pedro.
Eu saí correndo da cozinha, vestindo um avental e com a mão suja de carne. Começaríamos um churrasco após o jogo do Brasil. Sarah estava sentada do outro lado da sala usando o computador, calada, porém sorrindo. Depois que descobrimos a gravidez, - ainda no segundo mês - ela vivia assim... meio isolada, 
calada, mas sempre sorrindo. Eu entendi aquilo comoum pouco introspectivo... o que era compreensível, já que futuramente teríamos poucas oportunidades para nos isolarmos. E Pedro... bem... ele continuava sendo o mesmo Pedro. O que mudou é que ele agora parecia gostar de mim.
O telefone tocou e era pra Sarah. Alguns minutos depois, despreocupadamente me disse que iria ao mercado e depois passaria na casa de uma amiga para conversar. Senti uma pontada de ciúmes. Ela não andava falando muito comigo... não como antigamente..., mas tudo o que eu oferecia era um sorriso largo e fingido. Talvez fosse isso que bons maridos tinham que fazer, a maior parte do tempo.
Quando ela saiu, Pedro – que usava o seu grandessíssimo poder de observação apenas para cutucar a ferida das pessoas – deu uma risadinha, me olhando. Eu o ofereci o dedo do meio e já ia me virando para buscar as carnes.

- Ei! – Ele me chamou. – Ah, cara! É assim mesmo... né?! Elas só querem saber de tagarelar umas com as outras. Nada de Novo no Front...
Era o velho Pedro quando tentava ser gentil. Era o máximo que ele podia fazer... e era até divertido vê-lo tentar ser um pouco mais humano. Eu dei de ombros como quem diz “Talvez você esteja certo... deixa pra lá, vamos comer carne! ”.  E corri até a cozinha. A alcatra, a picanha e as linguiças temperadas já estavam nos seus devidos espetos. Dei um sorriso largo quando olhei para elas, lembrando também dos refrigerantes gelados que nos aguardavam dentro do congelador. Talvez deixa-las conversando um pouco com as amigas enquanto a gente come carnes de frente à TV seja algo inevitável e nem tão mal assim.
Foi quando ouvi, lá de cima e pela primeira vez... passos firmes. Passos fortes que pareciam batidas de tambor. Meu coração congelou no mesmo minuto, primeiro com o susto, pois raramente eu me lembrava da existência da Dona Eva. Segundo porque desde que conheci Sarah eu nunca a ouvi fazer barulhos tão fortes. Tentei ignorar... talvez ela tivesse tropeçado. Segui para a sala...

 
Pedro não Estava Lá...
 
Deixei os espetos em cima de uma mesa e fui até a rua... tínhamos combinado que ele só podia fumar lá. Era algo que ele tinha que ir acostumando a fazer já que em breve teríamos um bebê em casa. Quando cheguei na varanda, olhando em volta - e nada vendo - me senti estranho. Na verdade, me senti péssimo... e sozinho... como se todas as pessoas do mundo tivessem se mudado para outro planeta. Andei devagar até o meio fio e ele também não estava lá. E não havia cheiro de cigarro, maconha ou de bebida... não existia lugar em que Pedro passasse que não deixasse esse rastro. Pela primeira vez em meses, olhei pra cima. Diretamente para a janela de Dona Eva. E desta vez ela estava lá.
A velha sorria. Ela era medonha, uma visão desprezível. Tinha sobrancelhas grossas e pretas, os cabelos de bruxa enormes, soltos e lisos. Eram também completamente brancos, escorridos pela sua cabeça e rosto, deixando-a ainda mais horrível. Seus olhos eram extremamente fundos e com o brilho ofuscante do sol sob os meus, eu não conseguia vê-los direito. Via apenas dois buracos escuros. Era um monstro cabeludo com olhos escuros e um riso maldoso e debochado... virado pra mim, como quem dizia:
 
“finalmente, hoje é o NOSSO dia! ”.
 
Desviei o olhar bruscamente, me agachando e pondo a cabeça entre os joelhos. Enquanto ouvia de lá de cima uma risada rouca... insana... seguida de uns soluços que vinham de dentro do quarto. Alguém chorava desesperadamente. ERA PEDRO!
Corri para dentro da casa. Percebi que estava gritando pra mim mesmo uma frase, repetidas vezes.
“Ele também nunca foi lá! Ele também nunca foi lá! Ele também nunca foi lá! Ele também nunca foi lá! ”, enquanto arrancava – sem pensar no que estava fazendo – um longo pedaço de alcatra do espeto, jogando-a no chão.
Alucinadamente corri pelas escadas subindo segurando o espeto. Acabei pisando em falso e caindo já nos últimos degraus... a escada era quase íngreme. Bati o tórax com força num degrau e por pouco não me machuquei seriamente com o espeto pertinho dos olhos. Quando levantei a cabeça vi dois pesinhos pequenos. Senti um cheiro ruim, um cheiro de...
“Urina? Ela estava em pé me olhando. Não estava sorrindo. Estava fazendo uma careta de escarnio. Mas não parecia ser uma ameaça física. Me levantei devagar, tentando não a olhar nos olhos. Tentei desvia-la com o corpo, numa tentativa inútil e meio inocente de “deixar as coisas como estão, pegar o Pedro e voltar lá pra baixo.”. Eu estava sendo ridículo. A velha agarrou o meu pulso, com muito mais força do que se podia imaginar que uma pessoa tão velha e trancafiada por tantos anos poderia ter. Acabei olhando-a nos olhos.
- Não há...! – Ela bradou, com o rosto pertíssimo do meu. O seu bafo era terrível.
Eu soltei o meu braço com violência, sempre tentando não a olhar nos olhos. Estava apavorado e minha calça jeans estava ensopada de xixi. Dona Eva olhou para baixo e fez um ruído, como um:
“RUM! ”... Mais uma vez demonstrando total escarnio por mim... ou talvez por qualquer ser humano.
- NÃO HÁÁÁÁÁÁÁ...!!! – Ela berrou em minha cara, com a boca totalmente aberta, sacudindo a cabeça como se tentasse me engolir.
Saí correndo e entrei cambaleando no quarto. Acabei escorregando e caindo de novo. Eu estava descalço e Sarah gostava de encerar o chão. Dessa vez eu caí com força, batendo o queixo no assoalho. Talvez tenha desmaiado por alguns segundos. Quando abri os olhos, reparei pela primeira vez o misterioso quarto de cima. Era enorme. E a pouca quantidade de móveis o fazia parecer ainda maior.
Eram apenas uma cama, minúscula... parecia ter sido a cama de uma criança. Uma cadeira de balanço com uma pequena (muito pequena) TV bem em frente, em cima de tijolos e no cantinho um guarda-roupa de duas portas.
“Pedro e Sarah poderiam trata-la um pouco melhor... não é à toa que ela está com raiva...”, eu pensei.
Encolhido ao lado do pequeno guarda-roupa estava Pedro. Ele estava ajoelhado em frente a parede. Ele fitava a parede como se estivesse vendo alguma coisa bizarra...

- Está vendo a própria morte... – Sussurrei desolado...
Seus lábios se mexiam como se estivesse rezando e seu corpo balançava pra frente e pra trás. Senti um frio na espinha e já sabia que Dona Eva estava atrás de mim. Ela ria baixinho no meu cangote. Segurei o espeto de churrasco que estava ao meu lado. Me levantei com a mão cobrindo os olhos. Até ouvi aquela maldita voz pela última vez.

- NÃO HÁÁÁÁÁ... Arbg!.. ahhhnn...arr... – Ela engastou de dor.
Segurei-a pelo pescoço e apertei com toda a minha força. Pude sentir sua pele suada e fina e velha em minha mão. Pensei na felicidade de Pedro... talvez ele estivesse além da salvação. Estávamos fazendo de tudo para que Pedro tivesse vontade de viver... um ano de esforços. Pensei em Sarah e em meu filho que iria nascer e soube que nunca estariam protegidos enquanto a megera da Dona Eva vivesse naquele quarto.
Sem dó, enfiei o espeto em sua barriga vagarosamente. E este foi o meu verdadeiro erro em toda essa história. Eu deveria ter matado Dona Eva ligeiramente. Provavelmente com um golpe na garganta, que a impedisse de falar. Pois enquanto o espeto entrava em seu ventre ela proferiu palavras numa língua que não posso reproduzir ou disseminar. Uma língua que hoje eu conheço perfeitamente. Pois naqueles minutos finais... Dona Eva passou a sua maldição para mim.
Apesar de tudo, o que mais me importa... ainda é a segurança das pessoas que eu amo.

“Não há... Não há felicidade
aos que tentarem viver
sob o mesmo teto
em que a morte morar... ”