A próxima curva é aqui - DTRL31

A rodovia estava deserta e Benjamin fazia o velho Corcel voar.

Deus do céu, como corria aquele carro. A lataria vermelha brilhava na noite como uma gota de sangue e o sertão passava em borrões pela janela.

Benjamin apertava o volante com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. O carro era velho e tinha cheiro de mofo. O estofado estava rasgado e as molas saltavam para fora. O rádio tocava uma canção antiga, alguma coisa sobre o mundo girar; girar e sempre acabar no mesmo ponto; e Benjamin pensou que isso não poderia ser mais verdadeiro.

O mundo gira e dá voltas e acaba sempre no mesmo maldito lugar. E era isso que o incomodava. Estava preso naquela vida miserável, com as bochechas quentes e as costelas doendo. O idiota do marido da sua mãe o chutara com força daquela vez e ele pensou que talvez pudesse ter quebrado um osso. Na verdade ele tinha certeza de que algum osso estava quebrado.

O garoto mantinha os olhos fixos na estrada. Já estivera ali antes. Estava exatamente igual. Era como se ele a tivesse visto no dia anterior. Vacas mugiram quando o Corcel passou e alguma coisa na forma como aqueles animais estúpidos se moviam fez Benjamin rir. Elas andavam em círculos como tudo na porra desse mundo. A lua cheia era um maldito círculo sobre a sua cabeça e durante o dia o sol fazia seus machucados arderem. A terra era redonda e nada mais doía do que um chute no meio das bolas.

Círculos, círculos, círculos...

E quando voltasse para casa tudo começaria de novo. Levaria uma surra daquelas e talvez tivesse de ficar alguns dias de cama. Ficaria preso sob um cobertor quente escutando a mãe gemer como uma cabra enquanto o padrasto lhe enfiava o maldito pênis. E depois quando estivesse bom o suficiente, seria mandado para a lavoura e trabalharia com uma enxada até as mãos racharem e o sangue escorrer como molho de tomate sobre as botas usadas e velhas.

Então ele ficaria de joelhos e cuspiria no chão, fazendo... Círculos... Círculos sobre a terra.

Ele abriu um sorriso largo. Não de felicidade, mas de deboche. Havia algo cômico no fato de que o idiota do padrasto estaria em casa, de frente para a televisão, girando a antena de um lado para o outro na tentativa patética de conseguir algum sinal. O que ele gostava de assistir? Claro... A Roda da Fortuna. Beberia até desmaiar e não acordaria para perceber que uma bala de calibre doze acabara de atravessar seu cérebro, explodindo massa encefálica e manchando a parede. Uma enorme e denegrida mancha preta... Circular. Porque, claro, o mundo é uma grande roda.

Em algum lugar um pássaro noturno levantou voo. No lado contrário da estrada as luzes (circulares) eram dois olhos emergindo na escuridão. O caminhão aproximava-se veloz, crescendo no campo de visão, a cabine enegrecida e a boleia assustadora ficando maiores. Havia sangue no radiador? Benjamin achava que sim.

O motorista buzinou.

Benjamin pisou com mais força no pedal.

O mundo girou.

O caminhão ficou para trás.

A rodovia estava deserta e Benjamin fazia o velho Corcel voar.

Deus do céu, como corria aquele carro.

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Tema escolhido: Fantasmas

Nota do autor: A sutileza é uma característica dos meus contos de terror. As vezes isso é uma qualidade e não raro é um defeito. Espero não ter sido sútil demais na minha proposta.

Obrigado por lerem.

Isaac Räja
Enviado por Isaac Räja em 25/08/2017
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