Um brinde a Edgar - DTRL 31
Edgar é um homem de qualidades excepcionais.
Todo dia, nas horas que antecedem o desabrochar da manhã, ele abre a janela de seu quarto e cumprimenta as nuvens, as árvores e as vinhas mais ao longe – e não é de se estranhar que elas o cumprimentem de volta, brandindo suas folhas ao vento.
Depois de escolher uma boa vestimenta em seu guarda-roupa, vai à cozinha e prepara um café da manhã de deixar qualquer chef sofisticado com inveja. Não é todo mundo que possui seus dotes culinários ou seus queijos e frutas frescas tiradas do pomar mais próximo, nada muito pesado, para não fugir de sua dieta rigorosa.
Com o paladar adocicado e satisfeito, ele está pronto para sua costumeira corrida matutina. Deixa a casa principal e se afasta pela estrada de suas terras, encontrando um ou outro trabalhador a caminho do vinhedo e fazendo-o abrir um sorriso depois de um generoso bom dia.
Como possui um condicionamento físico impecável, ele rapidamente chega à vila de trabalhadores de sua propriedade, todos imigrantes, desraigados de suas origens em busca de uma nova vida em outro lugar. É muita sorte terem alguém como Edgar e eles demonstram saber disso. Às portas da vila, já podiam ser vistas figuras ansiosas, aguardando a chegada do nobre homem.
Ele não se irrita por sua corrida ser interrompida. Pelo contrário: faz questão de falar com todos. Não despreza ninguém e nem se chateia quando os meninos jogam nele uma bola desajeitada. Edgar até brinca com os moleques, driblando entre eles e ensinando as meninas a pular amarelinho, só para ver os olhinhos brilhando.
Terminada a volta pelo vilarejo, ele nunca se esquece de passar pelas vinhas, vendo o cuidado com que as uvas são colhidas e verificando a alegria com que as melhores são esmagadas na adega, antes de começar o processo de fermentação e o líquido resultante ser enviado para descansar em sarcófagos em forma de barris.
Antes que o sol se afaste demais do horizonte e o incomode, Edgar volta para casa e toma um banho, já pensando no que preparará para o almoço. Indisposição e falta de apetite estão longe de serem termos viáveis para descrevê-lo.
Ele seleciona os ingredientes de sua dieta e varia nos pratos que seu gosto permite. Nos dias de maior empolgação, põe uma música e treina seus melhores passos. É o melhor jeito de esperar uma refeição.
Não há fetiche por um único estilo e todos os ritmos são bem-vindos, mas uma de suas canções favoritas é The Time of My Life, que sempre o anima a se remexer pela sala, sorrindo feito uma criança ao se requebrar melhor que Patrick Swayze em Dirty Dancing.
É admissível dizer que a dança ficaria melhor com uma parceira; todavia, encontrar uma à altura não é uma tarefa simples. Um dia, ele já acreditou ter uma companheira, até perceber que ela não compartilhava de sua ambição. Hoje, não lamenta ter deixado a garota. No vilarejo, não há mulher que não queira passar por sua cama em noites quentes. Também não há qualquer cobrança por nenhuma das partes, o que é melhor. Mulheres, meninas e até rapazes se sentem privilegiados por poderem ver de perto, bem de perto mesmo, todas as suas mais íntimas qualidades.
E pensar que no início houve quem não quisesse acompanhar sua nova visão de mundo! Sua família, por exemplo. Quando voltou de viagem mais entusiasmado, simpático e com um brotinho de videira na bagagem, seus pais começaram a lhe dirigir perguntas cada vez mais indiscretas, e tudo o que ele respondia era que sua jornada em busca de novas bebidas e sabores havia sido um sucesso, como é de se esperar do filho de um respeitável vinicultor. A resposta parecia ser insuficiente para arrefecer a desconfiança e a estranheza. Pelo menos Edgar teve tempo de ficar a sós e preparar um lugar reservado para cultivar sua nova plantinha.
A videira cresceu no quintal rapidamente, enroscando-se na estrutura de madeira feito uma serpente e como tal quase capturando um pardal travesso que havia pousado em um dos ramos. Animais não eram o ideal. Algo diferente era necessário para os frutos nascerem saborosos e fortes. Felizmente, Edgar sabia o que fazer.
Senhor e Senhora Pellegrino sentaram junto com a filha e admiraram a requintada mesa preparada pelo segundo herdeiro, que serviu um ótimo jantar e o melhor vinho tinto, a especialidade da casa. Quando adormeceram, após tomarem a bebida batizada, Edgar carregou um a um para seu lugar especial no quintal, onde a videira dominava uma galeria extensa, os ramos e folhas preenchendo o teto vazado da pérgula.
Ele os amarrou nas colunas e filamentos começaram a se enrolar nos corpos, roçando-se na pele que encontrava entre as vestes e penetrando as gavinhas na carne. O líquido quente escoou junto com a seiva e foi para os frutos que brotaram instantaneamente ao longo da videira. Edgar os colheu e sentiu o sabor do sangue parental dar-lhe uma vivacidade singular. Não tinha como provar aquilo e continuar o mesmo, literal e metaforicamente.
Por outro lado, o banquete precisava ser interrompido. Os Pellegrino acordaram em suas respectivas camas, confusos, fracos e com aparentes picadas de mosquito pelo corpo. Atordoados, sequer deram importância aos olhares de Edgar, que os examinava a procura de uma solução para prolongar sua fonte de alimento. Não queria tornar descartável algo tão precioso.
Como era esperto e afeito a experiências, tratou de transformar parte das uvas de uma noite em vinho caseiro que serviu misturado com vinho normal. Assim, sua família teria alguma força da nova natureza para resistir mais às sessões de extração sem, no entanto, ficar como ele. Seria desanimador ter outros iguais para competir e que provavelmente iriam querer se sobrepor uns aos outros. Edgar não gostava de conflitos.
Os resultados foram melhores do que o esperado. Uma garrafa do coquetel fez seus familiares mergulharem em uma categoria distinta de embriaguez. Pai, mãe e irmã ficaram de olhos vidrados, as expressões inicialmente ilegíveis e a consciência em um estado enigmático. Pareciam bichinhos de racionalidade reduzida, a postos para seguir os comandos do alfa mais próximo.
Edgar sorriu com seus dentes muito brancos e alinhados, com exceção de duas saliências em cima e em baixo, e sua voz foi prontamente ouvida. A partir de então, a convivência com sua família se tornou bastante harmoniosa. Todos passaram a estar onde deveriam estar e a fazer o que deviam fazer, sem picuinha e com os melhores diálogos, o que, basicamente, se resumia a Edgar falar para os demais ouvirem com um sorriso congelado no rosto, sem reclamar de nada e acatando cada sugestão dada por ele, principalmente quando se tratava de ir para o quintal e se atar nos pilares da pérgula, os olhares para cima, exibindo os pescoços para os ramos da videira e fazendo os cachos aparecerem para o especial colhedor.
Era uma rotina tão saborosa que ele se sentiu mal por deixar que só seus familiares a experimentassem. Logo tratou de preparar uma festa. Era uma celebração das colheitas fartas e das coisas boas, que poderiam ser a maior parte da vida, se todos colaborassem.
Os trabalhadores da vinícola e seus parentes na vila receberam o convite e se alegraram com a expectativa de comida em fartura e bebidas por conta do patrão. Homens, mulheres e crianças puseram suas melhores roupas e saíram em procissão, tecendo pelo caminho os melhores elogios ao dono das terras.
Como o prometido, a comida era abundante e insistentes taças de vinho foram distribuídas entre os convidados. Absolutamente ninguém podia ser excluído. Edgar subiu em um palco e entreteve os presentes com sua voz firme e melodiosa, cantando seus desejos promissores. Ainda arranhar no idioma nativo não impediu os imigrantes de compreender o anfitrião. Ninguém era imune ao seu charme.
Desde aquela noite, a vida tem adquirido um gosto refinado, e existir somente uma cabeça pensante naquelas paragens extinguiu todos os dilemas daquele povo. Subtraindo-se a imaginação e as individualidades, o que sobra para ambição, ciúme ou, por conseguinte, desavenças? Aliás, não há surpresa em saber que agora nem o calor das colheitas diurnas tira a expressão contente dos rostos e o desejo ardente de ver o mestre e ouvir suas ordens para deixar tudo melhor.
As festas noturnas na casa principal são agora uma celebração da nova natureza das coisas e, em revezamentos, alguns eleitos são ingressados no reduto da videira, onde o sangue é colhido em forma de frutos.
Aos poucos, as mudanças fisiológicas de Edgar vão se tornando cada vez mais profundas e permanentes, e em breve não precisará mais da preciosa vinha para continuar sendo o que é, podendo, desse modo, retirar sua bebida predileta diretamente da fonte.
Mas não há nenhuma pressa ou preocupação. Isolado como deve ser, seu mundo está indo às mil maravilhas, e ele pode apreciar seus servos – cada dia mais fiéis e embevecidos – erguerem as taças e, com filetes de vinho misto escorrendo do canto da boca, saudarem a alegria que é pertencer a Edgar, porque ele é uma pessoa maravilhosa.
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Tema: Vampiros