CUIDADO COM ELA

Das lembranças da minha infância, poucas coisas trago comigo. Talvez isso ocorra porque os eventos que me marcaram naquela noite fatídica, noite que escapei do abraço gelado da morte, tenham nublado todos os episódios que antecederam e sucederam as horas terríveis de horror que marcariam minha vida para sempre.

Naquela época, eu vivia numa pequena cidade do interior, como tantas outras que se espalham pelo país. A noite do incidente começou extremamente escura, o firmamento se mostrava livre de quaisquer enfeites, indício inequívoco de que Ela estava prestes a vir, isso era tão certo quanto o nascer do sol de cada dia.

Usualmente, a visita mensal era encarada com temor e portas trancadas, no entanto, naquela oportunidade, uma incomum onda de destemor se espalhava pelos locais e, pela primeira vez, o povo da cidade estaria preparado para recebê-la, pelo menos era isso o que todos pensavam.

Eu, como toda criança do vilarejo, já tinha ouvido a sua história em muitas oportunidades, de diferentes maneiras, por isso não era difícil supor o que estava acontecendo naquele momento, enquanto cada membro da comunidade se movia em prol dos preparativos para enfrentar a temida visitante. Não havia dúvidas de que Ela se articulava para investir em busca do sustento para a sua existência, e eu sabia exatamente como.

Num recanto perdido da mata, em algum ponto no qual a memória era incapaz de rastrear, Ela estaria. Ao seu redor, as pedras lodosas e marcadas pelo tempo eram as únicas testemunhas de suas ações. A abertura no alto da gruta sugeria um olhar para o céu, além de uma passagem para o ar noturno. Diante da redoma de barro, a velha estaria ocupada com os insumos acrescidos à mistura gosmenta que borbulhava. Mas, na verdade, o conteúdo pouco importava, pois o que realmente diferenciava aquela amálgama era a essência maligna transferida, a perversidade das intenções, a ânsia por corromper e degenerar a ingenuidade e a inocência, a vontade de sugar até a última gota dos sonhos infantis.

No auge do ritual, sem quaisquer vestes a lhe cobrir o corpo, a velha experimentaria a textura do caldo fervente introduzindo o próprio braço no caldeirão, a ardência e a corrosão em sua pele seriam insuportáveis, mas a única resposta para o contato seria uma gargalhada estridente para a noite.

Em transe, despejaria o conteúdo caudaloso em todo o corpo, banhando-se em excitação e dor. Logo, placas duras e aguçadas irromperiam de seus poros, oferecendo um novo revestimento para a mesma superfície. Como uma legião romana em batalha, a couraça formaria uma proteção, um sinal de resistência e temor. Ela dançaria para a noite, sobre o tapete de ossos explorados ao extremo.

Os olhos revirados ansiavam por enxergar dentro de si uma alma que há muito não existia, enquanto o corpo em convulsão travaria uma busca por algo que pudesse expressar nesse plano o que apenas o submundo era capaz de suportar.

Em transformação, a coluna vertebral da mulher encontraria um novo significado para expansão e liberdade, ao passo que as unhas retorcidas encontrariam no maxilar um apoio, forçando-o num deslocamento da própria face e abrindo espaço para as protuberâncias afiadas que passariam a ocupar o espaço antes vazio na mandíbula alongada. E, num ato de autoflagelo, a criatura lançaria sua própria cabeça de encontro às rochas da caverna, manchando-as de escarlate vivo. Os ossos triturados seriam reagrupados num novo rosto, algo que nenhum ser temente a Deus deveria ver.

Enfim, o demônio estaria pronto! Com a chegada da hora mais escura da madrugada, nada o impediria de sair e colher a essência infantil capaz de lhe proporcionar o sustento necessário à sua existência, a seiva responsável por mantê-lo vivo ao longo de muitas eras. A partir daquele momento, nenhuma criança estaria a salvo de suas intenções, nenhuma delas seria poupada de sua fome de viver.

Cada membro de nossa diminuta sociedade sabia que era assim, que Ela chegaria, de um jeito ou de outro, Ela viria até nós. Vivíamos com o risco que nos visitava a cada mês. Mas, como disse anteriormente, dessa vez a comunidade estaria preparada para o perigo iminente, pois o primeiro passo deveria ser dado para evitar a matança. Ninguém desejava ser o próximo a ter o filho roubado para servir de combustível para o mal.

Enquanto a bruxa seguia seu destino, na praça da cidade o coreto servia de plano de fundo para uma grande festa. Uma imensa fogueira trepidava e todos celebravam a noite do revide com um banquete. Não. Todos não. Um infeliz, cujo crime correspondia ao roubo de um par de galinhas para saciar a fome da família, gritava amarrado a um poste de madeira defronte ao riacho que banhava a localidade. O condenado era meu pai. E, minha mãe e eu olhávamos para ele com a impotência em nossas mãos. A maldade da fera contaminara a alma de cada vivente a nossa volta, e, na ânsia de decretar o fim da criatura, eles tomavam emprestadas as práticas do demônio.

Cânticos eram entoados. O torpor etílico espalhava-se em todas as direções, assim como o fogo que surgira sem prévio anúncio. O homem amarrado, meu pai, debatia-se em desespero ao perceber a agitação nas águas a sua frente. Os caçadores também perceberam e começaram a disparar na direção do turbilhão que rumava para a margem. A boca escancarada alcançou o tronco de sua isca de modo tão depressa quanto eficiente. Mais disparos foram efetuados, a maioria atingindo as costas do meu pai.

A mandíbula do réptil trabalhava em conjunto dos movimentos em espiral que tratavam de afogar a vítima, aquilo era demais para meus olhos infantis. Eu agarrava a minha mãe e escondia meu rosto, lavando suas vestes com lágrimas que corriam fartas, como o leito do rio, que tingido com o líquido pecaminoso de dor e morte, seguia seu destino sem se importar com a maldade a ele atrelada.

A criatura, em busca de saciedade, deixava a proteção das águas rumo à praça, ela parecia enfeitiçada, como se os açoites do próprio cão dominassem seus atos.

Muitas pessoas corriam do fogo, enquanto outras tentavam escapar das investidas da fera. O caos instalava-se em meio a sangue, fumaça, gritos e morte. Por um instante, um momento que me pareceu uma eternidade, percebi que estava só naquele mar de sofrimento. Muitos rostos eu via, mas todos eles, mesmo conhecidos, ainda assim eram estranhos. O desespero, ingrediente fundamental no caldeirão da bruxa, me dominou. Sem minha mãe, ninguém poderia me proteger.

Naquele instante, eu me senti a mais frágil das criaturas, no entanto, eu não era. Ali, na minha frente, vi um rosto de fato familiar. Minha prima mais nova se destacava na turba. Em seu rosto percebi o mais legítimo dos sentimentos: o medo, outro elemento fundamental no caldo hediondo do demônio.

Um fio de coragem impulsionou minhas pernas e, decidido, corri em sua direção. Tendo-a em meus braços, eu tentava encontrar um porto seguro naquele inferno, o que seria improvável diante do incêndio que dominava o vilarejo.

Juro que pensei em desistir, em deixar que o calor das labaredas ou o frio dos dentes da besta chegassem até mim, entretanto, a pequena no meu colo contrariava os maus pensamentos e, como se a luz da esperança nos sinalizasse, encontrei o que buscava.

A cruz iluminada na noite escura nos indicava o caminho. Apertei a menina com toda a força dos braços e segui com a pressa a me guiar em direção à igreja. Percorri o caminho pedindo proteção aos céus, não ousei olhar para trás, pois temia que a demônio em forma de bicho estivesse em nosso encalço. Na verdade, esse temor era marcado pelo sentimento que preenchia meu coração. Assim como eu sabia o que a velha fazia naquela gruta pecaminosa, também entendia que por algum motivo alheio à minha percepção, a criatura acompanhava atentamente a nossa fuga, como de fato o fizera.

Eu desejava crer que o ambiente sagrado nos livrasse do mal em nosso encalço, mas parecia que nada de bom se fazia presente no vilarejo, o horror estendia seus braços em todas as direções, em cada recanto, até mesmo na igreja.

Resignado, acompanhei os passos marcados da criatura pelo salão principal. Nada poderia detê-la. Mas, senti o amargor da agonia cedendo lugar ao sabor adocicado da esperança quando vi, no pórtico de entrada, o capataz do coronel. Ele trazia nos braços um rifle de cano duplo e no semblante a expressão de plena convicção em eliminar aquele réptil maldito.

Os estampidos ribombaram pela nave, mas os projéteis pouco efeito produziram na carapaça do animal, o qual, com um movimento ardiloso, derrubou o homem por meio de um golpe certeiro com a cauda.

A valentia de qualquer mortal se esvairia naquela situação, portanto não foi vergonha para o infeliz gritar como uma criança acuada ao perceber a morte em forma de dentes pressionando a fragilidade de seu pescoço. A cabeça rolou pelo assoalho deixando um rastro vivo de sangue pelo caminho. Um grito mudo estampava a face sem vida do capataz.

Mais uma vez a urgência me impeliu. Eu tentava conter o choro da minha priminha enquanto corria, era senso comum o fato de que o medo atiçava os predadores. Mas era difícil obter sucesso quando eu também não conseguia me controlar e, há muito, já havia deixado um resquício de vergonha úmida escorrido pelas pernas.

No interior da sala, nos fundos da igreja, a escuridão era tão marcante quanto a noite lá fora. A fera continuava a nos perseguir. Era difícil perceber o contorno do que estava a nossa frente, a não ser a parede ornada por um vitral colorido com os traços de um arcanjo com as asas abertas. A peça insinuava uma luz própria, se é que isso era possível. Porém, o mais surpreendente não era a arte em vidro. Sob os pés do ser alado estava uma garotinha, cuja idade não deveria ser superior a da menina sob minha proteção.

Ela estava encolhida, abraçada aos próprios joelhos, choramingando sozinha. A responsabilidade sobre mim acabara de dobrar. Eu também não passava de uma criança, mas era meu dever cuidar das menores. Posicionei-as próximas uma da outra, enquanto tateava por algo para nos defender nos armários da sacristia.

Mas, em minha busca cega, cometi um erro crucial, afastei-me demasiadamente das meninas. A maldita criatura, com toda a sua sordidez, já estava postada entre nós. Um desespero que deveria ser proibido de alcançar uma criança apunhalou-me de maneira feroz. Corri até a fera, pois talvez, e apenas talvez, ela saciasse seu apetite apenas comigo, porém todo o esforço foi em vão. Rastejando com extrema destreza, e deixando uma mescla de sangue e lodo pelo caminho, aquele jacaré hediondo saltou com a boca escancarada sobre as pequenas, e nesse ínfimo espaço de tempo, tudo o que pude fazer foi fechar os olhos e gritar...

Eu tremia dos pés à cabeça, e a coragem me faltava para abrir os olhos. No entanto, o fato era que não daria para fugir do inevitável. Lentamente, ergui as pálpebras e ali, inerte diante de mim, jazia o demônio com uma lança transpassada pela garganta.

Foi então que me dei conta de que a menina não estava sozinha. Uma moça, cuja última mostra de coragem fora utilizada em seu ato, desmanchava-se em lágrimas enquanto abraçava a protegida.

Ela sabia que só teria uma chance, caso a criatura aparecesse onde estavam escondidas, como de fato ocorrera. Oculta pelas sombras do recinto, ela esperaria com a madeira aguçada nos braços e agiria no momento exato. O que ela ainda não sabia era que seus atos salvariam mais vidas do que imaginava. Com um abraço coletivo, e lavados por um choro mútuo e incontido, saímos daquele cenário de horror.

Na praça, a confusão e a desordem permaneciam. O fogo e a fumaça marcavam o território, porém nada daquilo tinha importância. Como mágica, meus olhos fitaram quem eu tanto buscava: minha mãe. Corri em sua direção e a enlacei com meus braços diminutos sentindo a proteção que só um abraço materno é capaz de proporcionar.

O torpor do momento nublou meu raciocínio, de modo que só algum tempo depois me dei conta de que minha priminha havia ficado para trás. Tentei me desvencilhar, mas minha mãe me apertava cada vez mais, como se nunca mais fosse me deixar sair, temendo que eu jamais retornasse. Busquei a pequena em meio à turba, e, ao longe, percebi a moça da igreja conduzindo as duas meninas pelas mãos.

Mesmo com o raciocínio infantil da época, não foi difícil imaginar a facilidade com a qual um incêndio pode ser produzido para provocar confusão e despiste, ou que um pobre animal pode ser levado a causar toda sorte de danos quando sua mente primitiva e instintiva é manipulada por um ser ardiloso e maligno, ou ainda que o povo, no alto de sua ignorância, não pararia para refletir que oferecer a carne de um adulto para o demônio da mata de nada adiantaria.

A bruxa não aceitava ser alimentada, tampouco fazia uso de corpos impuros para nutrir sua existência. Ela necessitava da ingenuidade infantil, da maciez da carne tenra para atravessar a rigidez do tempo.

Além disso, a beleza jovem da assistente social, só então a reconheci, também era uma das faces da criatura. Em suas visitas mensais, sob o pretexto de consolar as famílias durante os dias, fazia muito mais que isso durante a noite. Era motivo de temor e tema de cantigas de ninar.

Meu Deus! Ela já tinha feito a sua escolha, nós apenas facilitamos o seu trabalho. A moça, loira e suavemente esverdeada, me lançou um olhar amarelado e reptiliano E, antes de entrar no riacho com suas vítimas, postou o indicador nos lábios, num cínico pedido de silêncio. Nunca vou me perdoar por ter largado as mãos das meninas e corrido para a segurança sem elas, e o sorriso largo e afiado da bruxa jamais deixaria esquecer-me disso.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/08/2017
Código do texto: T6087997
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