Toda vez que Márcio passava em frente daquela velha capelinha, era o mesmo sentimento. Ele não sabia exprimi-lo, mas era como se sua mente fosse transportada para um passado muito distante da sua própria experiência de vida. Afinal, ele nascera em fins do século vinte, em plena revolução tecnológica, com os computadores dominando o mundo, a Internet substituindo todos os meios de comunicação, os celulares se tornando os maiores amigos do peito do homem, pois não havia ninguém que ele conhecesse que não carregasse no bolso uma daquelas caixinhas falantes que agora substituíam o telefone, a televisão, o telex, o correio, a máquina fotográfica, a filmadora e outras diversas funções que antes eram exercidas por outras máquinas. Além disso, pensava ele, o celular era agora o maior amigo do homem porque era com ele que as pessoas conversavam mais. A maior parte do dia as pessoas passavam conversando com o celular. Ninguém conseguia mais viver sem ele.
Agora, quanto aquele sentimento de desdobramento de espírito que ele sentia quando passava em frente á velha igrejinha de São Sebastião, isso era realmente um fato bastante pitoresco. Não que esse sentimento fosse desconhecido. Ele já o experimentara ao passar por outros lugares, como por exemplo, em frente ao prédio do velho cinema da cidade, que ele sabia ter fechado em fins dos anos setenta, bem antes de ele ter nascido. Mas ele sempre tinha um vago sentimento de já ter estado ali, assistindo a algum filme, embora nunca tivesse entrado naquele prédio, que agora era ocupado por uma igreja evangélica.
Havia outros lugares na cidade que despertavam nele semelhantes cinestesias. Ele achava que tudo decorria do fato de ele gostar de história e ter uma certa atração intelectual por prédios antigos, já que, sendo arquiteto e gostar principalmente da história da arte de construir, esses focos de interesse conduziam sua mente para esses estados interiores de sensibilidade. E então vinha aquela sensação de arrebatamento espiritual, como se ele já tivesse vivido, de fato, alguma experiência de corpo presente, relacionada com esses lugares e principalmente com esses edifícios.     
Quanto á capelinha de São Sebastião, ele sabia que ela tinha sido construída em fins do século XVIII por um fazendeiro que fora dono daquelas terras. Era uma grande fazenda que começara como engenho de produção de açúcar e depois, pela metade do século XIX passara a produzir café, e nos começos do século XX, quando a cidade, que na época não passava de uma pequena vila, começou a crescer e se urbanizar, foi loteada e se tornou um bairro da cidade.  A capela, dedicada a São Sebastião, era a capela da fazenda.

A fazenda pertencia a um senhor, que inclusive dava nome á rua onde ficava a capelinha. Era um certo Coronel A...., cujos registros nos antigos forais ainda conservados na biblioteca da cidade davam como um homem rude, arrogante e autoritário, que possuia muitos escravos, os quais tratava com muita crueldade.
Havia até uma lenda sobre um negro pertencente a esse coronel, que sobrevivera ao tempo e se tornara uma lenda urbana. E essa lenda estava conectada com essa igrejinha e aquele local.
A lenda dizia que o negro, que também se chamava Sebastião, era um crioulo sacudidão que trabalhava na fazenda do Coronel A. Como ele era forte e saudável, o Coronel o usava como macho reprodutor. Essa era uma função bastante comum nas fazendas da época. Muitas mocinhas negras, em idade de reprodução eram usadas como matrizes para produzir outros escravos. Isso quando o senhor da fazenda não as obrigava a constituir família para produzir mais mão de obra, ou quando ele mesmo, ou seus filhos, não escolhiam as negrinhas mais bonitas para seus próprios deleites. Daí o fato de haver tantos mulatos e filhos bastardos nas fazendas de antigamente, fato esse bastante explorado pelos escritores do século dezenove em suas novelas.
Agora, quanto ao negro Sebastião da lenda, conta-se que o crioulo tinha um físico tão atraente que até a filha do Coronel se engraçou com ele e acabou se embolando com ele no meio do cafezal. Em consequência ela engravidou.
Isso aconteceu por volta de 1830, segundo dizem alguns pesquisadores, ou 1860, dizem outros. O fato, esse comprovado, é que em frente á capelinha havia também um pelourinho. Nesse instrumento de suplício os negros cativos eram amarrados para sofrerem castigo público pelas faltas que seus donos lhes imputavam. Muitos escravos morreram de maus tratos naquele local. Alguns eram ali enforcados, pois o local também servia de patíbulo, onde uma forca era erguida e o povo podia presenciar a execução. Execuções públicas por enforcamento eram um espetáculo muito concorrido na época e atraiam grandes platéias.
Uma tradição muito divulgada na cidade diz que negro chamado Sebastião foi enforcado ali. Não se sabe se é do Sebastião que estamos falando, ou de outro negro com o mesmo nome, mas é fato que ele foi sido julgado e sentenciado por alguma coisa que efetivamente seus donos, e os juízes do Pretório julgaram ser digno de pena de morte.
Consta que quando o negro foi suspenso no ar, o laço da corda desfez-se sozinho. O carrasco fez outros nós e tentou suspendê-lo outras vezes. Mas toda vez que o corpo era lançado no alçapão o laço rompia-se e o negro caia no chão com o pescoço intacto. O carrasco tentou enforcá-lo repetidas vezes. Mas a cada tentativa o laço desmanchava-se sem qualquer razão plausível. Buscaram-se outras cordas, mas o fenômeno se repetiu em todas as tentativas. Então a turba que se concentrara para ver o ver o macabro espetáculo, vendo nisso uma espécie de manifestação divina como a comprovar a inocência do negro, começava já a gritar pela sua libertação.
O Coronel é que não se comoveu com essas manifestações e gritou em alto e bom som: “ Dou minha alma para o diabo e um conto de reis para quem conseguir levar esse negro para o inferno” disse ele.
E foi então surgiu da multidão um tropeiro, que por acaso passava por ali. O homem era perito em laços de vaqueiro. Fez um que não se desmanchou e o negro Sebastião acabou sendo finalmente enforcado. A lenda diz que o tropeiro exalava um cheiro insuportável de enxofre e seus olhos eram vermelhos como dois tições em brasa.
E não foram poucos os cidadãos que viram o negro Sebastião aparecer em frente á tal igrejinha, e dizem, ali se realizaram muitos milagres nos antigos tempos. Isso justicava a profusão de velas que se acendiam na porta da capelinha todas as sextas-feiras.
 
Era exatamente nessa lenda que Márcio estava pensando naquele momento, quando passava em frente á velha capela e contemplava aquele monte de velas acesas na porta dela. A praça do pelourinho não existia mais. No lugar dela havia agora um grande edifício que abrigava o quartel policial da cidade. Curiosa coincidência, pensou Márcio, um quartel de polícia exatamente no local onde criaturas humanas, a maioria certamente inocente, eram sentenciadas pela única razão de terem pele e cultura diferente das pessoas que mandavam. O que havia mudado daquele tempo para hoje? A forma de fazer as coisas talvez. Hoje quem manda usam os processos legais. Naqueles tempos era mais simples. Menos burocrático. Bastava olhar a cor da pele de quem acusava e de quem era acusado. Hoje é preciso mais que isso para prolatar as sentenças. A cor da pele ainda conta, mas é a conta bancária que decide.
Márcio parou em frente á capelinha e aquele arrebatamento de espírito que sempre o acometia quando passava por ali tomou conta de sua mente. Não gostou do sentimento e tentou lutar contra ele. Era forte. Pegou no bolso do paletó um cigarro e levou-o á boca. Procurou o isqueiro e não encontrou. Havia esquecido em casa. Fósforos também não tinha. Estava já devolvendo o cigarro para dentro do maço. A sensação de desdobramento espiritual não o abandonava. Pensou avistar o obelisco do pelourinho. As argolas de ferro onde os negros eram agrilhoados. Ao fundo um tablado onde sobressaia uma viga cruzada com uma corda em forma de laço, pendurada nela. Parecia até que um corpo pendia dela.
“ Quer fogo, moço?”
Márcio se virou para o lado que vinha a voz. Um soldado, vestido com a farda da Polícia Militar estava com um isqueiro na mão, aceso.  Márcio não estranhou. Afinal, ele estava em frente ao quartel da Polícia Militar. Mas ao olhar para o rosto do soldado que lhe oferecia fogo, para agradecer a gentileza, sentiu um golpe no peito como se um raio o tivesse atingido em cheio. Os olhos do soldado eram vermelhos como dois tições em brasa. E da sua boca saia um insuportável cheiro de enxofre e matérias pútridas que fazia lembrar um pântano fétido formado por organismos em decomposição.
E num átimo de segundo Márcio reviveu todas suas vidas passadas. Viu-se especialmente na vida do Coronel A.., ali mesmo naquele lugar, oferecendo um conto de reis para qualquer um que enforcasse aquele maldito negro que engravidara a sua filha.  E ao olhar para os olhos flamejantes do soldado reconheceu nele aquele mesmo tropeiro que o atendera naquele dia.
“ Vim buscar o que você me prometeu” disse o soldado com o seu hálito pestilento. “ Você pensou que eu havia esquecido, não é, Coronel? Mas eu nunca esqueço”, disse o soldado, com uma gargalhada apavorante, que ecoou no coração de Márcio como o golpe de um relâmpago que se abate sobre uma árvore.
O enfarto foi tão forte que não deu tempo para ninguém socorrer Márcio. O médico legista disse que ele morreu quase instantaneamente. A única coisa que causou espanto e arrepios nas pessoas que viram o corpo dele foi a expressão do rosto e dos olhos. No rosto distorcido, onde a alma parecia ter-lhe sido arrancada pela boca; e nos olhos, que pareciam ter contemplado o mais profundo dos horrores. E a história do Negro Sebastião, que já era uma lenda urbana bastante conhecida tornou-se também uma história de horror que hoje já virou um conhecido ditado popular: o diabo nunca esquece.