O despacho
Daniel Sotto não era nem um pouco religioso. Deus, Alá, Krishna, Buda, santos, orixás, espíritos malignos ou de luz, Satanás: Daniel não acreditava em nada, exceto no que a Ciência (como por exemplo: a Física, a Matemática e a Química) podia explicar e comprovar. Daniel é o que chamamos de cético científico, ou seja, aquele que só acredita na veracidade de alguma coisa após ela passar pelo crivo do método científico. (Método que consiste em testar hipóteses ou suposições fazendo uso de instrumentos como, por exemplo, a Matemática e a Estatística. Se as hipóteses forem comprovadas pelos testes elas deixam de ser hipóteses e se transformam em leis ou teorias que passam a ser universalmente aceitas, até por Daniel!)
Para Daniel Sotto as pessoas usam a religião como muletas, isto é, para conseguir alguma coisa que elas poderiam conseguir simplesmente agindo.
Para explicar os milagres, Daniel se valia muitas vezes da Teoria da Probabilidade, segundo a qual se há alguma possibilidade (ou probabilidade) de um evento (um acontecimento) ocorrer a sua probabilidade de ocorrência pode ser calculada. Logo, se há a possibilidade de uma pessoa ser curada de uma grave doença tal cura poderá acontecer não como resultado da fé dela, mas simplesmente como resultado de um cálculo probabilístico.
Para Daniel, “as curas milagrosas” deviam-se exclusivamente ao poder da sugestão. A sugestão podia ser um conselho, uma citação bíblica ou mesmo uma mentira. Não importava quem a fazia (podia ser um curandeiro, um religioso, um médico ou o próprio doente) desde que o doente (sugestionado) a aceitasse como verdade absoluta, ou seja: uma verdade na qual não há dúvida, como, por exemplo, uma verdade matemática. Uma vez aceita a sugestão na mente do doente, o organismo dessa pessoa reagiria ativando seu sistema imunológico de uma forma tal que desencadearia uma reação em cadeia irresistível, que levaria o sugestionado a uma cura tida como improvável ou “milagrosa”.
Não acreditar na religião dos outros não era o problema, o problema era que além de não acreditar, Daniel, que era engenheiro, também gostava de questionar e fazer pouco da religião dos crentes, que para ele não passavam de pobres crédulos.
Numa sexta-feira 13 de setembro, de manhã, Daniel Sotto estava passando por uma encruzilhada, perto de seu prédio, quando viu um despacho de macumba. Sob o olhar surpreso de alguns transeuntes o cético deu um pontapé na caçamba que continha um frango com farofa, pegou a garrafa de pinga da oferenda e a levou à boca bebendo vários goles de seu conteúdo.
Uma mulher que assistia a tudo, surpresa com a reação de Daniel, disse-lhe que ele não sabia o que estava fazendo e pediu a Deus que tivesse piedade de sua alma. O cético ouviu a mulher e às gargalhadas disse para ela não se preocupar, pois ele estava bem protegido pelo escudo da Ciência.
A mulher se benzeu e seguiu seu caminho.
Daniel Sotto foi para seu trabalho, na firma de engenharia, na qual era um dos sócios, e esqueceu completamente do episódio.
Após alguns dias, tudo transcorria às mil maravilhas para Daniel: sua mulher estava grávida de dois meses, sua empresa ia de vento em popa e sua vida ia muito bem obrigado.
Entretanto, exatamente na sexta-feira 13 que se seguiu à profanação do despacho por Daniel Sotto, a sorte dele começaria a mudar.
Neste dia, Daniel foi trabalhar como sempre o fazia. Após três horas de um trabalho exaustivo, mas prazeroso, recebeu a notícia que nenhum pai gostaria de ouvir: sua mulher teve um aborto espontâneo! Daniel Sotto ficou arrasado e, sem ânimo para trabalhar, foi para casa.
Quando faltavam poucas ruas para chegar em casa, seu carro foi engavetado por um corsa por trás e um mercedes pela frente. Como que
por um milagre Daniel escapara de uma morte terrível por esmagamento.
Daniel abandonou o carro e seguiu a pé até sua casa que não estava longe.
Ele passou pela encruzilhada, que tinha uma nova oferenda. Desta vez não profanou o despacho, como de hábito, mas, ao contrário, seguiu a passos rápidos para seu prédio para encontrar logo sua mulher que devia estar inconsolável.
Faltavam cerca de 100 metros para Daniel Sotto chegar a seu prédio, quando o céu ensolarado de repente escureceu. Começou, então, a cair uma tempestade e, quando faltavam poucos passos para o cético chegar à porta de seu prédio, o pior aconteceu: um raio fulminou Daniel Sotto que caiu morto na rua com o corpo completamente carbonizado.
A perda de seu filho, a batida de seu carro e o raio seriam apenas coincidências explicáveis pela Teoria da Probabilidade como acreditava Daniel? Seriam apenas azar? Ou não?
O raio, um fenômeno da natureza que selou seu fim, amplamente explicado pelas leis da Física e cuja possibilidade de ocorrência, em qualquer ponto do planeta, podia ser vista em qualquer revista científica especializada sendo, portanto, um evento completamente previsível e possível de ocorrer; seria, infelizmente, um triste golpe na sorte de Daniel Sotto explicável inteiramente pela Ciência na qual ele sempre acreditou? Ou, em vez disso, seria simplesmente a fúria do orixá, a quem era destinado o despacho que ele profanara, que agora se vingava, de forma definitiva, do homem cuja única fé estava nas leis, teorias e princípios científicos que não foram capazes de salvá-lo de seu triste destino?
“Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!”(“Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem!”)