Até que a morte nos separe

Max colocou a última caixa da trabalhosa mudança no canto da casa, junto às outras. Sua esposa permanecia parada no centro da sala, observando a parede nua a sua frente. Ele se aproximou, permanecendo em silêncio por alguns instantes, tentando adivinhar no que ela estaria pensando.

- O que essa parede tem? – Perguntou ele.

- Nada, por enquanto. – Olhando-o com um pequeno sorriso.

- Então porque está olhando para ela a quase meia hora?

- Estava pensando.

- Posso saber no quê?

- Nos últimos cinco anos. – Voltando o olhar para a parede.

- Se arrependeu de ter se casado comigo?

- É claro que não. – Beijando-o rapidamente. – Pelo contrário, estava pensando em como sou sortuda por ter você.

Max abriu um enorme sorriso e fitou sua esposa se aproximando das caixas.

- Por onde quer começar? – Perguntou o marido, se aproximando.

- Que tal deixarmos isso para depois e aproveitarmos um pouco. – Com um sorriso atrevido.

- Seu desejo é uma ordem.

Ela o puxou pela mão em direção ao quarto do casal e a porta se fechou com um movimento silencioso.

Uma voz de criança ecoou pelo quarto “vamos jogar?” e Max despertou abruptamente. O quarto estava completamente escuro. Ligou o abajur sobre o criado mudo, no seu lado da cama, e olhou ao redor, intrigado. Sua esposa dormia de costas para ele, tranquilamente. Deu mais uma boa olhada ao redor e desligou o abajur, abraçando sua esposa pela cintura.

- Elisa, você ouviu vozes ontem no quarto? – Perguntou Max a esposa, enquanto almoçavam.

Ela lançou um olhar preocupado para o marido.

- Quando isso começou?

- Só ouvi ontem.

- Você está tomando os remédios?

- Sim, estou. Não estou tendo uma recaída.

- Tudo bem.

Ela voltou o olhar para o seu prato, parecia ter perdido a vontade de comer. Max a encarou por mais alguns instantes e eles permaneceram em completo silêncio.

“Ei, eu quero brincar com você”, disse novamente a voz de criança. Max acordou assustado e fixou o olhar cegamente no teto. “Não pode estar acontecendo de novo”, pensou temeroso. A voz ecoou novamente, mas dessa vez ele não deu atenção, se virou de lado e tentou dormir, no entanto a voz retornou, parecia ter sido sussurrada dentro de seu ouvido.

Ele se levantou com um pulo e acendeu o abajur. Caminhou até a porta e a abriu. Não havia nada.

- O que está acontecendo? – Perguntou Elisa, sonolenta.

- Não é nada, volte a dormir.

Max se sentou na beirada da cama e desligou o abajur, permanecendo imerso nas sombras por vários minutos, antes de voltar a dormir.

Na manhã seguinte o casal não trocou uma palavra além do estritamente necessário, e Elisa vasculhou os medicamentes do marido sem que ele soubesse. A voz continuou durante as quatro noites seguintes, sempre por volta da uma e meia às duas da manhã. Somente Max as conseguia ouvir e ele agora começava a pensar que seu tratamento estava regredindo.

- Nós vamos falar com o seu medico amanhã. – Avisou Elisa, olhando para a nuca do marido, sentado no sofá.

- Tudo bem. Acho que é mesmo necessário. – Entristecido.

Ele se levantou e voltou o olhar para o chão por um minuto, antes de olhar para sua esposa.

- Desculpe por estar fazendo-a passar por isso de novo.

- Eu já sabia o que poderia enfrentar quando decidi me casar com você. Tudo o que eu quero é que você se recupere.

Ela o abraçou com força.

- Eu também. – Disse ele, sentindo o medo crescer dentro de si.

Passava um pouco da uma e meia da manhã quando a voz voltou a assombrar o casal. “Eu só quero brincar”, mas dessa vez quem ouviu foi a esposa. Elisa se colocou em pé com um pulo, derrubando o abajur ao seu lado da cama. Max acordou assustado com o barulho, jogando o edredom para o lado e se colocando em pé com um único movimento.

Max acendeu o seu abajur, sua esposa estava petrificada ao lado da cama, com as mãos sobre a boca. O terror era evidente em seu semblante.

- Eu ouvi.

- Do que está falando?

- A voz. Eu ouvi.

Ele deu a volta ao redor da cama e a enlaçou em um abraço, tentando reconfortá-la.

- Me desculpe por ter duvidado de você.

- Tudo bem, querida. – Acariciando seus cabelos. – Nós vamos resolver isso, vai dar tudo certo.

“Eu quero brincar, será que vocês não entendem?” Ecoou a voz, incisiva.

Max girou sobre os tornozelos e engoliu em seco. Lágrimas começaram a escorrer sobre o rosto de sua esposa.

- Fique aqui, eu já volto.

Elisa concordou com um aceno e ele desapareceu pela porta, retornando poucos minutos depois com uma faca de cozinha em mãos.

- Fique atrás de mim e não saia em hipótese alguma.

- Tenha cuidado.

- Eu terei.

Eles caminharam com passos vagarosos para fora do quarto e seguiram até a sala. Não havia ninguém. Tudo estava como haviam deixado.

- O que está acontecendo aqui? – Perguntou a esposa.

Max não respondeu. Apertou o cabo da faca com ainda mais força e olhou ao seu redor, atentamente.

Um menino de não mais de seis anos apareceu no meio da sala, andando em uma motoca de plástico antiga. Ele olhou para o casal com um sorriso travesso. Sangue escorria de sua testa em direção ao queixo. Elisa abafou um grito com as mãos ao ver a criança.

- Hoje é quarta-feira, mamãe e papai sempre brincavam comigo antes do acidente. – Sua voz inocente se tornou ácida ao dizer a última palavra.

A criança se aproximou do casal e eles puderam sentir o forte odor de morte exalando.

- Vocês vão brincar comigo, não vão? – O sorriso travesso apareceu novamente.

As luzes de duas viaturas de polícia e de uma ambulância estavam acessas quando um carro escuro estacionou do outro lado da rua. O vidro do motorista foi aberto e um homem de meia idade e barba por fazer, encarou a casa.

- Você deveria ter dito a ele. – Voltando o olhar para a mulher de cabelos ruivos curtos ao seu lado.

- Se tivesse falado jamais fecharia a venda.

- Eles mereciam saber. – Baixando o olhar.

- Ted jogou essa bomba em minhas mãos esperando que eu fracassasse. Não vou dar esse gostinho a ele.

- Você jamais vai conseguir vender essa casa agora.

- Claro que vou. – Seus lábios se alongaram em um sorriso confiante.

- Duas mortes sem explicação no meio da madrugada não me parece um bom chamariz.

- E quem falou que as mortes não têm explicação? – Encarando-o. – O marido me ligou antes do que aconteceu. Eu entrei na casa e fiz tudo parecer um latrocínio.

- A polícia pode rastrear a ligação e chegar até você.

- Não se preocupe. Dei um número frio ao casal, ninguém pode me ligar ao que aconteceu.

- Você consegue ser pior do que o seu pai. – Franzindo o cenho, com um misto de medo e admiração.

- Está no sangue. – Indiferente.

O homem deu partida no veículo e a mulher ruiva olhou para a casa pela última vez, sem demonstrar qualquer remorso.

Alice Moraes
Enviado por Alice Moraes em 14/07/2017
Reeditado em 25/11/2017
Código do texto: T6054698
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