A VELHA DO LAMPIÃO
Eu estava terminando de lavar as louças para ir repousar quando Tarantino, meu querido cão de guarda, começou a latir desesperadamente. Olhei pela vidraça da janela da cozinha e vi uma velha senhora com um lampião na mão. Tarantino a acuava, mas não avançava contra a anciã. Não entendi de que se tratava. — Seria uma vizinha pedindo ajuda? Quem sabe um pouco de açúcar como é costume no interior? — pensei.
Peguei a espingarda que foi do meu avô e saí para encontrar com a velha. Quando estava a vinte metros, mais ou menos, ela se virou e começou a caminhar em direção ao pomar. Passava com certa agilidade para uma anciã entre as laranjeiras e atravessou a cerca tomando o pasto. Eu caminhava com grande esforço no seu encalço acompanhado de Tarantino que latia em direção à senhora e como quem dizendo para os demais animais: “estou na área”.
Bem próximo ao córrego que atravessa boa parte do sítio, a velha parou e se virou em minha direção. Mirou o foco da luz no chão e fez um sinal mostrando para baixo. Depois de soltar uma estrondosa gargalhada se desfez em dezenas de morcegos.
Caminhei até ao local que ela havia apontado com aquele dedo comprido e enrugado. Tarantino farejava e fungava sobre o chão. Realmente o terreno naquela parte estava diferente. Tirei as botinas e toquei com as plantas dos pés no solo. Estava mais fofo ali. Comecei a sentir uma força estranha me puxando para dentro da terra. Saí rapidamente e fui até à minha casa buscar ferramentas de cavar. O relógio marcava 23h32. Comecei cavando sem muito esforço, realmente a terra estava macia. Após cavar pouco mais de um metro, deparei com madeira forrando algo. Com o bico da pá consegui despregar a tampa da grande caixa que estava soterrada. Um cheiro fétido quase me fez desmaiar. O foco da lanterna foi me mostrando rostos horríveis, parcialmente decompostos. Havia sofrimento em cada face. Eram trinta e dois corpos guardados ali. Nas faces não havia mais lágrimas, mas o sulco que elas deixaram. Em alguns cadáveres restavam olhos, em outros não. Nos que restavam, dava para ver a tristeza compactada. Eles eram como monóculos a nos querer mostrar alguma fotografia do passado. Pus a mão no nariz e me aproximei de um deles. Lá dentro, mesmo com a lanterna em minha mão ainda estava escuro o ambiente, parecia haver um filme, cenas de uma carnificina. Saí de dentro da caixa e tampei com cuidado. — O que seria aquilo? Resultado de uma chacina? Só podia ser. Avisar a polícia local? A cidade fica a mais de sessenta quilômetros de chão batido. — passei a noite toda procurando explicação.
Durante o dia cuidei da construção do estábulo. Eu pretendia possuir algumas reses para a despesa. Saindo do fim de um relacionamento conturbado em Belo Horizonte, fugi para o interior, comprando um sítio em uma região bem afastada do progresso. Durante o dia não tive coragem de voltar ao local onde descobri os cadáveres. Tarantino também parecia incomodado com os fatos. Farejava e latia continuamente. Eu também fiquei atento a qualquer movimento. O vento nas folhas da figueira era o suficiente para ligar meu espírito de vigilância.
Quando a tarde desapareceu e a noite cobriu o vale, liguei minha motocicleta e parti em direção ao vilarejo mais próximo. Uma velha igreja no local mais elevado carecendo de reforma, algumas casas, uma escola mal cuidada e o bar ou qualquer coisa de que podemos chamar o lugar lúgubre, feio, exalando álcool a uma grande distância compunham a zona urbana. Entrei e pedi uma cerveja. Havia apenas quatro fregueses, cada um com um copo de alguma bebida etílica na mão. Perguntei ao dono do bar de quem era de fato o sítio que eu havia comprado por meio de um corretor e se algum crime tinha ocorrido nele. Ele olhou bem nos meus olhos, ergueu a cabeça e disse para os demais:
— O forasteiro quer saber quem era dono da terra que agora é dele. E mais, ele quer saber se houve algum crime em sua propriedade antes dele comprá-la.
Todos riram fogosamente. Entendi isso como “vê se não amola, dá o fora”. Um dos fregueses com barba grande e suja aproximou-se de mim e disse:
— Nanico, é o seguinte. Você é novato por aqui. Nunca tinha vindo por essas bandas antes. Está sozinho. Isto é muito perigoso. Vou te explicar uma coisa. Aqui a gente não faz perguntas. A gente fareja até encontrar resposta. Entendeu? — bateu nos meus ombros e voltou para o canto onde estava anteriormente. Outro freguês me perguntou:
— Você desenterrou alguma coisa no seu sítio? Algo como uma caixa grande cheia de cadáveres?
Tive um impulso de coragem e respondi:
— Aqui a gente não pergunta, fareja.
Vi uma baba de ódio descendo pelos seus olhos. Saí depressa do estabelecimento e liguei a motocicleta, parti de volta para minha casa. O tempo fechou. Começou com uma chuva vagarosa e foi tomando proporções de uma tempestade. Fui cauteloso na estrada.
A lama começava a balançar minha condução.
Esse local está ficando cada vez mais tenebroso. Tarantino me esperava na porteira como quem quisesse me contar algo. Latia e fedia a cachorro molhado. Acompanhou-me até a porta da cozinha. Enquanto eu preparava algo quente para quebrar a friagem da chuva entranhada em meu tórax, vi novamente a velha do lampião fazendo um sinal conhecido com uma das mãos longas, chamando-me: “vem, vem, vem até aqui”.
Bebi rapidamente o chá de erva cidreira e fui acompanhando a velhinha na mesma direção da noite anterior. Tarantino seguia, dessa vez, calado. Quando estávamos próximo ao fosso maldito, ela se vira novamente em minha direção. Tirou de dentro da capa uma garrafa e deixou cair sobre a ponta de uma pedra. A garrafa se espatifou em mil pedaços, deixando um pequeno papel sob os pingos grossos da chuva. Então ela voltou a se desfazer e os morcegos foram para o alto do morro. Corri para pegar o papel antes que ele se desmanchasse na tempestade. Pude ler as palavras escritas com esferográfica Big azul, “você, ao abrir a caixa, liberou os espíritos daqueles que foram assassinados pela maldade desse lugar, para que se cumpra a vingança final”. Estremeci.
Coloquei o bilhete no bolso da surrada calça jeans e retornei para dentro da casa. Sentei na copa e comecei a achar que eu estava doente. Lembrei-me das orações ensinadas pela Igreja Católica e comecei a rezar. Lembrei-me da Salve Rainha e outras mais. Enquanto eu rezava, adormeci.
Uma pedra atirada contra a janela quebrou a vidraça e acertou o meu braço. Acordei um pouco atordoado. Lá fora uma pequena multidão com paus e ferramentas nas mãos esbravejava contra minha casa. Os latidos e as investidas de Tarantino não os amedrontavam.
— Maldito forasteiro, você liberou a maldição. — gritavam uns.
— Nanico duma merda. Que te deu na cabeça mexer no que estava enterrado. Você agora tem que morrer. — gritavam outros.
— Eu não sei do que vocês estão falando. — tentei disfarçar reconhecendo o ébrio que havia me perguntado sobre a caixa de cadáveres no bar do vilarejo.
Uma nova pedra foi atirada em minha direção. Recuei e peguei minha espingarda para me proteger. — Estou armado. Vão embora. — busquei amedronta-los.
— Vamos invadir e matar esse desgraçado. — ordenou uma mulher no meio da pequena turba. Todos começaram a se amontoarem e forçar a porta da sala. Nesse momento um estrondo forte fez todo o vale se estremecer. Dava para distinguir figuras sinistras na escuridão da noite. Uivados e gargalhadas estremeceram a pequena corja de camponeses acuados contra a parede. As figuras em formas de corpos humanos avançaram sobre aqueles pobres homens e mulheres. O que se seguiu foi uma carnificina indescritível. Gritos de desesperos eram abafados pelo negrume sobreposto e sangues começaram a escorrerem pelo piso do terreiro. Unhas enormes arranhavam rostos magros e rasgavam a pele como faca de açougueiro, mãos fortes apertavam gargantas secas e sacolejavam corpos com força, cabeças eram empurradas contra a parede da minha casa e cérebros vazavam pelas fraturas. Quanto mais os camponeses imploravam perdão, mais as criaturas sobrenaturais avançavam contra a massa humana, trucidando um a um. Na sequência, os espíritos fantasmagóricos puxaram os cadáveres desfalecidos e trucidados pelo pomar. Abri a porta e tive coragem de seguir a empreitada. Vi quando todos foram jogados no fundo da caixa que eu havia destampado na noite anterior. Voltei correndo. Ainda que a intuição dizia-me que aqueles espíritos haviam agido para vingar seus algozes e que eu nada tinha feito de mal para eles, não esperei para ver o próximo passo.
Ocupei o resto da noite, com o coração acelerado, fazendo minhas malas. Fiz por duas vezes mais o chá de erva cidreira para me acalmar.
Assim que o sol raiou, coloquei todos meus pertences sobre a picape Toyota, incluindo a motocicleta e Tarantino, meu inseparável amigo. Despedi da casa e tomei a estrada. Tive que descer para abrir a porteira da divisa. Ao passar por ela meu coração sentiu um misto de tristeza por deixar o que eu havia acabado de conquistar e alegria por ter sobrevivido duas noites de tormento. Acenei minha mão dando adeus ao lugar quando vi na curva a velha do lampião correspondendo o meu gesto.
Peguei a espingarda que foi do meu avô e saí para encontrar com a velha. Quando estava a vinte metros, mais ou menos, ela se virou e começou a caminhar em direção ao pomar. Passava com certa agilidade para uma anciã entre as laranjeiras e atravessou a cerca tomando o pasto. Eu caminhava com grande esforço no seu encalço acompanhado de Tarantino que latia em direção à senhora e como quem dizendo para os demais animais: “estou na área”.
Bem próximo ao córrego que atravessa boa parte do sítio, a velha parou e se virou em minha direção. Mirou o foco da luz no chão e fez um sinal mostrando para baixo. Depois de soltar uma estrondosa gargalhada se desfez em dezenas de morcegos.
Caminhei até ao local que ela havia apontado com aquele dedo comprido e enrugado. Tarantino farejava e fungava sobre o chão. Realmente o terreno naquela parte estava diferente. Tirei as botinas e toquei com as plantas dos pés no solo. Estava mais fofo ali. Comecei a sentir uma força estranha me puxando para dentro da terra. Saí rapidamente e fui até à minha casa buscar ferramentas de cavar. O relógio marcava 23h32. Comecei cavando sem muito esforço, realmente a terra estava macia. Após cavar pouco mais de um metro, deparei com madeira forrando algo. Com o bico da pá consegui despregar a tampa da grande caixa que estava soterrada. Um cheiro fétido quase me fez desmaiar. O foco da lanterna foi me mostrando rostos horríveis, parcialmente decompostos. Havia sofrimento em cada face. Eram trinta e dois corpos guardados ali. Nas faces não havia mais lágrimas, mas o sulco que elas deixaram. Em alguns cadáveres restavam olhos, em outros não. Nos que restavam, dava para ver a tristeza compactada. Eles eram como monóculos a nos querer mostrar alguma fotografia do passado. Pus a mão no nariz e me aproximei de um deles. Lá dentro, mesmo com a lanterna em minha mão ainda estava escuro o ambiente, parecia haver um filme, cenas de uma carnificina. Saí de dentro da caixa e tampei com cuidado. — O que seria aquilo? Resultado de uma chacina? Só podia ser. Avisar a polícia local? A cidade fica a mais de sessenta quilômetros de chão batido. — passei a noite toda procurando explicação.
Durante o dia cuidei da construção do estábulo. Eu pretendia possuir algumas reses para a despesa. Saindo do fim de um relacionamento conturbado em Belo Horizonte, fugi para o interior, comprando um sítio em uma região bem afastada do progresso. Durante o dia não tive coragem de voltar ao local onde descobri os cadáveres. Tarantino também parecia incomodado com os fatos. Farejava e latia continuamente. Eu também fiquei atento a qualquer movimento. O vento nas folhas da figueira era o suficiente para ligar meu espírito de vigilância.
Quando a tarde desapareceu e a noite cobriu o vale, liguei minha motocicleta e parti em direção ao vilarejo mais próximo. Uma velha igreja no local mais elevado carecendo de reforma, algumas casas, uma escola mal cuidada e o bar ou qualquer coisa de que podemos chamar o lugar lúgubre, feio, exalando álcool a uma grande distância compunham a zona urbana. Entrei e pedi uma cerveja. Havia apenas quatro fregueses, cada um com um copo de alguma bebida etílica na mão. Perguntei ao dono do bar de quem era de fato o sítio que eu havia comprado por meio de um corretor e se algum crime tinha ocorrido nele. Ele olhou bem nos meus olhos, ergueu a cabeça e disse para os demais:
— O forasteiro quer saber quem era dono da terra que agora é dele. E mais, ele quer saber se houve algum crime em sua propriedade antes dele comprá-la.
Todos riram fogosamente. Entendi isso como “vê se não amola, dá o fora”. Um dos fregueses com barba grande e suja aproximou-se de mim e disse:
— Nanico, é o seguinte. Você é novato por aqui. Nunca tinha vindo por essas bandas antes. Está sozinho. Isto é muito perigoso. Vou te explicar uma coisa. Aqui a gente não faz perguntas. A gente fareja até encontrar resposta. Entendeu? — bateu nos meus ombros e voltou para o canto onde estava anteriormente. Outro freguês me perguntou:
— Você desenterrou alguma coisa no seu sítio? Algo como uma caixa grande cheia de cadáveres?
Tive um impulso de coragem e respondi:
— Aqui a gente não pergunta, fareja.
Vi uma baba de ódio descendo pelos seus olhos. Saí depressa do estabelecimento e liguei a motocicleta, parti de volta para minha casa. O tempo fechou. Começou com uma chuva vagarosa e foi tomando proporções de uma tempestade. Fui cauteloso na estrada.
A lama começava a balançar minha condução.
Esse local está ficando cada vez mais tenebroso. Tarantino me esperava na porteira como quem quisesse me contar algo. Latia e fedia a cachorro molhado. Acompanhou-me até a porta da cozinha. Enquanto eu preparava algo quente para quebrar a friagem da chuva entranhada em meu tórax, vi novamente a velha do lampião fazendo um sinal conhecido com uma das mãos longas, chamando-me: “vem, vem, vem até aqui”.
Bebi rapidamente o chá de erva cidreira e fui acompanhando a velhinha na mesma direção da noite anterior. Tarantino seguia, dessa vez, calado. Quando estávamos próximo ao fosso maldito, ela se vira novamente em minha direção. Tirou de dentro da capa uma garrafa e deixou cair sobre a ponta de uma pedra. A garrafa se espatifou em mil pedaços, deixando um pequeno papel sob os pingos grossos da chuva. Então ela voltou a se desfazer e os morcegos foram para o alto do morro. Corri para pegar o papel antes que ele se desmanchasse na tempestade. Pude ler as palavras escritas com esferográfica Big azul, “você, ao abrir a caixa, liberou os espíritos daqueles que foram assassinados pela maldade desse lugar, para que se cumpra a vingança final”. Estremeci.
Coloquei o bilhete no bolso da surrada calça jeans e retornei para dentro da casa. Sentei na copa e comecei a achar que eu estava doente. Lembrei-me das orações ensinadas pela Igreja Católica e comecei a rezar. Lembrei-me da Salve Rainha e outras mais. Enquanto eu rezava, adormeci.
Uma pedra atirada contra a janela quebrou a vidraça e acertou o meu braço. Acordei um pouco atordoado. Lá fora uma pequena multidão com paus e ferramentas nas mãos esbravejava contra minha casa. Os latidos e as investidas de Tarantino não os amedrontavam.
— Maldito forasteiro, você liberou a maldição. — gritavam uns.
— Nanico duma merda. Que te deu na cabeça mexer no que estava enterrado. Você agora tem que morrer. — gritavam outros.
— Eu não sei do que vocês estão falando. — tentei disfarçar reconhecendo o ébrio que havia me perguntado sobre a caixa de cadáveres no bar do vilarejo.
Uma nova pedra foi atirada em minha direção. Recuei e peguei minha espingarda para me proteger. — Estou armado. Vão embora. — busquei amedronta-los.
— Vamos invadir e matar esse desgraçado. — ordenou uma mulher no meio da pequena turba. Todos começaram a se amontoarem e forçar a porta da sala. Nesse momento um estrondo forte fez todo o vale se estremecer. Dava para distinguir figuras sinistras na escuridão da noite. Uivados e gargalhadas estremeceram a pequena corja de camponeses acuados contra a parede. As figuras em formas de corpos humanos avançaram sobre aqueles pobres homens e mulheres. O que se seguiu foi uma carnificina indescritível. Gritos de desesperos eram abafados pelo negrume sobreposto e sangues começaram a escorrerem pelo piso do terreiro. Unhas enormes arranhavam rostos magros e rasgavam a pele como faca de açougueiro, mãos fortes apertavam gargantas secas e sacolejavam corpos com força, cabeças eram empurradas contra a parede da minha casa e cérebros vazavam pelas fraturas. Quanto mais os camponeses imploravam perdão, mais as criaturas sobrenaturais avançavam contra a massa humana, trucidando um a um. Na sequência, os espíritos fantasmagóricos puxaram os cadáveres desfalecidos e trucidados pelo pomar. Abri a porta e tive coragem de seguir a empreitada. Vi quando todos foram jogados no fundo da caixa que eu havia destampado na noite anterior. Voltei correndo. Ainda que a intuição dizia-me que aqueles espíritos haviam agido para vingar seus algozes e que eu nada tinha feito de mal para eles, não esperei para ver o próximo passo.
Ocupei o resto da noite, com o coração acelerado, fazendo minhas malas. Fiz por duas vezes mais o chá de erva cidreira para me acalmar.
Assim que o sol raiou, coloquei todos meus pertences sobre a picape Toyota, incluindo a motocicleta e Tarantino, meu inseparável amigo. Despedi da casa e tomei a estrada. Tive que descer para abrir a porteira da divisa. Ao passar por ela meu coração sentiu um misto de tristeza por deixar o que eu havia acabado de conquistar e alegria por ter sobrevivido duas noites de tormento. Acenei minha mão dando adeus ao lugar quando vi na curva a velha do lampião correspondendo o meu gesto.