1969 - O Julgamento de Saturno
Apenas a escuridão. É tudo o que o indígena enxerga.
Faz um mês agora que está emparedado recebendo por via intravenosa o mínimo de sangue possível para sobreviver.
Espera seu julgamento.
A acusação? Assassinato.
Matara seu criador quando era apenas um índio Guaianase e agora muitos querem sua cabeça, mas têm a estranha sensação de que encapará desta.
Espera estar certo.
Pode destroçar facilmente a parede a frente de onde está encerrado, porém sua dignidade o impede.
Uma fresta de luz aparece a sua frente. Será uma ilusão de ótica?
Uma alucinação, após tanto tempo preso na escuridão absoluta?
Não. A luz é real.
Está sendo libertado.
- Vamos saindo. – ordena secamente um de seus guardiões.
O indígena usa uma calça boca de sino vermelha com flores azuis pintadas à mão e um camisão indiano com detalhes bordados reminiscências de seus anos Hippie.
Agora está em uma época mais séria e mais cética. Corre o ano de 1968.
- Estou livre?
O guardião se espanta:
- Livre?! Você está enrascado isso sim!
Leva o jovem de longos cabelos negros até um quarto aquecido, e o deixa a sós.
Saturno sintoniza o rádio e põe numa relaxante música do Pink Floid.
Olha para sua calça de linho, toda mofada e amarrotada.
- Bárbaros. – pensa o imortal.
Toma um banho, dá um jeito nos cabelos e veste uma roupa decente.
Logo alguém virá buscá-lo para começar a audiência.
“Toc toc”
- Entra! – grita o índio.
Um homem de barba cheia e cabelo curto cacheado entra no aposento.
- Boa noite! Meu nome é Agamenon. Sou seu advogado.
O vampiro está sorridente.
Saturno olha para ele, muito espantado. Tira os óculos roxos e cai na risada.
Ri tanto que acaba sentado no chão.
- Ora, ora... O que temos aqui?
O sorriso do advogado murcha.
- Haha me desculpe haha! Eu não achei que ia ser um julgamento de verdade!
- “É” um julgamento. O “seu” julgamento. – o vampiro corpulento está muito sério.
Pouco a pouco o sorriso some do rosto indígena.
- E qual é a acusação?
Agamenon coça a cabeça.
- Assassinato. Matou seu criador...
Saturno estremece.
- Merda... – murmura ele.
O vampiro barbudo aponta uma cadeira.
- Sente-se garoto. Conte-me tudo desde o princípio.
O rapaz de longos cabelos negros conta sobre aquela noite quase quatrocentos anos antes.
Conta como caçava na floresta, como foi atacado e matou seu agressor.
E também como ficou a deriva por mais de um século, achando que era um espírito da floresta.
- Quanto tempo vai durar o julgamento?
- Meia hora. Por quê? – avisa seu advogado.
- Por nada... – responde o índio pensativamente.
Os dois levantam e o vampiro corpulento indica o caminho do tribunal para Saturno.
- Seu nome, Agamenon, parece latim? Você é romano?
- Não. Sou grego. Fui iniciado há dois mil anos.
- Nossa! Você é bem velho! – exclama o jovem imortal impressionado.
- Não garoto. Perto dos Arcanos sou até novo. O Ancião que será o juiz esta noite tem quatro mil e quinhentos anos e não é o mais velho dos Arcanos... Seu nome é Anak-Pteor.
Param em frente a uma porta imemorial, onde um dragão extremamente realista fora esculpido na madeira grossa.
De um olho do dragão escorre uma lágrima solitária.
- Lindo não? – pergunta o grego retoricamente.
- É... A Inglaterra toda é linda! Quando tudo isso acabar vou assistir a um show do Deep Purple! – Saturno está maravilhado.
- “Duvido muito” - pensa Agamenon.
As portas se abrem e o salão esculpido em pedra impressiona o olhar do brasileiro.
É a primeira vez que Saturno vê um ancião. Não parece tão velho como o índio imaginava.
É um porra de um Egípcio, magro e sorridente.
Quando ele olha para o índio sua satisfação fica evidente. Parece que muitos dos anciões gostam do fato dele ter matado Eurominous.
O rapaz de longos cabelos negros nem imagina o por que.
Há na sala cerca de trinta filhos da noite conversando discretamente.
Todos se calam à entrada de Saturno.
Alguns o olham com desprezo, mas no rosto da maioria há ódio.
Rapidamente ocupam seus lugares deixando dois assentos vazios ao centro.
As cadeiras estão dispostas em dois semicírculos de modo que todos possam ver o julgamento de qualquer lugar.
Uma cadeira de mogno laqueado em frente à outra idêntica onde ficam respectivamente o índio e Anak-Pteor.
Ao notar que todos estão devidamente acomodados o Ancião declara:
- Está aberto o julgamento de Saturno!
Há um pequeno murmúrio que logo para.
O advogado de acusação se levanta gritando em tom acusador:
- Meu nome é Alfonse. E digo a vocês, irmãos na escuridão, que esse chupador de sangue arcano merece uma punição justa!
Os vampiros se mexem nervosamente nas cadeiras de mogno sólido.
Como se fosse combinado ao sentar o advogado de acusação, Agamenon se levanta.
- Vocês não conhecem a história desse irmão! É extraordinária!
Logo ao sentar o Grego é puxado discretamente para junto do rapaz de longos cabelos negros.
- Caralho! Que raio de advogado é você? – sussurra ao ouvido do barbudo.
- Não sou advogado. Sou cientista. Chamaram-me por que ninguém quis lhe defender!
Agamenon está visivelmente magoado.
Saturno olha em volta. De trinta imortais que o observam atentamente apenas quatro não têm ódio na expressão.
Sem contar o Ancião egípcio que parece conversar sozinho.
- Putz! Tô ferrado!
Alfonse torna a se levantar.
- Ancião... Peço licença para chamar uma testemunha!
- Que entre Ivan! – ordena calmamente o velho.
Todos olham para a porta majestosa que se abre uma vez mais, e o Prussiano entra altivo e arrogante.
O louro toma a palavra:
- Estou aqui, meu Senhor, para desmascarar este vampiro! Assassino do próprio progenitor!
Um murmúrio nervoso toma conta da sala. Possivelmente rasgariam o pescoço de Saturno imediatamente caso o velho não tivesse levantado uma mão.
- Coloque todos a par de que o que você me contou, caro Ivan! – pede Alfonse.
Com um sorriso irônico Ivan toma a palavra:
- Este vampiro, Saturno, me contou com palavras de sua própria boca como degolou e bebeu do sangue de Euronimous usando uma faca benzida!
Ivan olha fixamente para o índio.
- Ei! Espera aí! Eu...
- Se quer dizer algo peça para seu advogado falar!
Anak-Pteor repele as palavras do réu.
- Esse cara não é advogado! Não de verdade!
No mesmo instante Agamenon se levanta. Seus olhos vermelhos cintilam.
Ele cerra as mãos com uma raiva contida a muito custo, como se fosse explodir.
Em seguida baixa a cabeça.
Ele fica alguns segundos em silêncio.
Levanta a cabeça e olha direto nos olhos do Ancião.
- Não quero mais defender este vampiro! Peço permissão para me retirar do recinto!
O velho egípcio com um gesto abre a imensa porta.
- Claro. É um direito seu.
O grego se despede respeitosamente dos presentes, vira as costas e sai fechando a porta com cuidado após sua passagem.
Se Saturno pudesse ficar mais pálido essa seria a ocasião.
Voltando-se, encara os presentes. Todos o observam com extremo ódio no semblante.
Até aqueles poucos imortais que alguns momentos antes pareciam ao seu favor.
O arcano tem as feições neutras, Ivan sorri maliciosamente. Conseguira seu intento com perfeição.
- Como podem ver esta é o maldito sugador que julgamos! – tripudia Alfonse.
O jovem índio de longos cabelos negros ia replicar, porém o Egípcio exigiu silêncio.
- Agora responda... Você assassinou ou não Euronimous, seu Progenitor?
O grito do advogado de acusação é estridente.
Lívido de terror o vampiro brasileiro, trêmulo, tenta se defender:
- Ei! Espere... Há mais coisas para se discutir do que...
- Responda a pergunta! – ordena o Ancião com semblante cheio de desprezo.
O índio abaixa a cabeça.
- Sim...
Todos os presentes começam a se mover e gritar palavras de vingança.
O vampiro francês, advogado de acusação toma a palavra:
- Aí está senhoras e senhores, um condenado, que finalmente fala a verdade!
Anak-Pteor se levanta e todos sem exceção se calam.
Houve alguns instantes de silêncio no imenso salão e então todos ouvem a voz forte do Arcano dentro de suas mentes:
- “Está decidido... Saturno, pelo crime de assassinar um igual está condenado ao mesmo fim. À morte!
A satisfação de Alfonse e Ivan é imensa. O primeiro pelo sentimento de justiça feita, pois acredita estar punindo um criminoso e o segundo por sua sede de vingança implacável pelo assassino de seu mestre.
- Ei! Ei! Espere... – o rapaz de longos cabelos negros também se levanta.
- Guardiões! Detenham-no!
Saturno está desarmado, visto que retiraram seu longo punhal. Antes que pudesse se mover mais de um passo, dois guardas estão ao seu lado.
Um deles sobe o machado e o outro ataca o tronco do indígena.
Este rapidamente se desvia e o guardião que visava seu tronco enterra a arma no quadril do companheiro,
O machado escapa da do atingido no momento do golpe e rodopiando pelo ar atravessa o salão cravando-se na parede com violência.
Ao lado da cabeça de Ivan.
Este não se move e sorri com desprezo incontido.
São necessários mais de dez imortais para conter a fúria de Saturno, visto que nenhum Arcano move um dedo para ajudá-los.
- Levem-no. – suspira Anak-Pteor com enfado.
Com esforço os guardiões e outros filhos da noite arrastam o índio para fora. Rumo a sua morte certa.
Dezenas de mãos tapam sua boca que nervosamente tenta gritar algo.
Impedido de gritar o rapaz de longos cabelos cor da noite usa sua telepatia.
- “Eu não era um vampiro quando matei Euronimous”! “Eu era humano”!
O Egípcio ouvindo a voz gutural em sua mente arregala os olhos, pois ele, o mais novo dos Anciões somente há poucos anos havia adquirido tal fluência mental.
O velho levanta as mãos.
- PAREM! Tragam-no aqui! JÁ!
Todos na sala se espantam, especialmente o Prussiano, cuja boca abria-se, mas de onde não saía uma única palavra.
- Larguem-no! Vamos! Soltem-no!
Anak-Pteor está impaciente.
Os guardiões se entreolham e o soltam sem entender absolutamente nada.
O ancião o chama calmamente com o dedo.
Saturno vai. A cabeça erguida.
Todos os outros o olham com extrema desconfiança.
Ivan aperta os braços da poltrona de madeira maciça com tanto ódio e com tal força que esta estrala a ponto de se quebrar.
Quando o índio se aproxima olha confiante nos olhos do Egípcio.
- Sim, senhor?
Um murro tão potente que lhe quebra todos os dentes da frente é o que ganha em resposta
Logo em seguida o Ancião explica o motivo do soco:
- Nunca mais entre em minha mente sem permissão! Agora se explique melhor!
Saturno se levanta, os dentes arrancados começam a se formar de novo.
- Desculpe por invadir sua mente assim. Eu estava desesperado!
O egípcio balança a cabeça impacientemente indicando seu perdão.
- A propósito, belo soco! – elogia o índio cuspindo na mão um punhado de dentes quebrados que guarda no bolso da camisa.
- Obrigado. Agora fale! Vamos!
- Eu não posso ser punido por matar outro vampiro! Eu ainda não tinha sido iniciado! Era apenas um humano!
O assombro é gigantesco. Todos os imortais na sala começam a falar ao mesmo tempo.
Nenhum acredita que aquilo pudesse ser possível.
- Um humano sozinho? Contra um Arcano de seis mil anos? Impossível!
Ivan está colérico.
- Ele está apenas tentando salvar a própria carcaça suja!
Todos o observam com desconfiança e descrença.
- Se está mentindo, nós os Antigos, descobriremos...
Os anciões no grande salão colocam as mãos sobre o vampiro brasileiro, viajando entre suas lembranças e pensamentos mais secretos.
É em uníssono que declaram:
- Não podemos condená-lo. Você carrega a verdade...
Uma mão veloz arranca o machado encravado na parede.
É Ivan que corre em direção a Saturno.
O louro salta sobre seu inimigo visando seu coração.
- Nãããão! Você matou meu mestre! Você vai morreeeer!
Os guardiões estáticos tentam se mover. Tarde demais.
O indígena se desvia com velocidade assombrosa para um filho da noite de apenas trezentos e setenta anos, porém ainda assim é atingido.
O machado é enterrado com violência em seu ombro abrindo uma fenda que chega ao peito.
Com o braço livre, Saturno empurra Ivan com imensa força e tenta arrancar o machado do ombro.
O prussiano levanta. Pronto para atacar novamente, mas é detido por outros vampiros.
- Permita-me. – pede Anak-Pteor com suavidade.
Com um gesto simples retira o machado do ombro do brasileiro quebra o cabo de madeira em pedaços e entorta o metal entre os dedos, como se fosse uma lata de ferro.
- Soltem o Prussiano. – ordena secamente o magistrado.
Os guardiões e outros vampiros largam o trêmulo Ivan.
- Você agrediu um igual com intenção de morte. Ficará emparedado neste castelo por três anos.
- Mas ele matou meu mestre! – grita o louro inconformado.
- Sim. Matou. Mas Saturno, por mais inacreditável que isso possa ser, era um humano na época e seu mestre um poderoso irmão... Agora o levem.
- Ora seu... – ameaça o prussiano levantando as garras.
O Ancião responde com desprezo:
- Pense bem, Ivan, posso destroçá-lo com apenas um gesto.
As mãos do velho egípcio ao longo do corpo magro, sua voz calma o deixam com aparência pacífica e indefesa. Apenas o olhar feroz demonstra ser ele um potente vampiro.
Ivan foi abaixando as mãos e logo fica de joelhos em uma atitude servil.
Tenta beijar a mão do Ancião, porém este a puxa com nojo limpa nas vestes como se o contato com o louro tivesse lhe sujado.
- Ancião! Me perdoe! Foi um gesto descontrolado de um pupilo!
Aquele arrependimento fingido não convence Anak-Pteor.
- É claro que perdôo você! – avisa o Ancião sorrindo.
- É?
O prussiano está meio desconfiado da facilidade como consegue este perdão.
- Claro! Após você cumprir a pena que lhe dei!
Os guardiões começam a escoltar Ivan que pensa em como poderá fugir. Quando atravessam o limiar da imensa porta entalhada o Egípcio chama.
Os soldados todos olham para o magistrado.
- Quero que montem guarda vinte e quatro horas. Caso tente fugir... Estará condenado a morte!
Ivan é arrastado quase em pânico para fora da imensa sala de conferências.
Anak-Pteor pede que todos se retirem e é obedecido. Um a um os imortais o felicitam por sua sabedoria e discernimento.
Saturno também ia deixar o local quando foi chamado de volta.
Volta meio desconfiado. Medo de ser condenado por algo que não fez.
- Meu filho... Creio que erramos com você. Íamos julgá-lo sem ao menos investigar os fatos... O que posso fazer para que me perdoe?
O índio pensa por alguns momentos.
- Já sei! Qual o tipo de música que o senhor escuta?
O velho coça a cabeça calva. Não entende aonde ele quer chegar.
- Dispense o senhor, só ouço musica egípcia tradicional que meus servos tocam e um pouco de musica clássica. Sem exceção.
- Então você está intimado a ir comigo num show do Deep Purple! Esta é a sua punição!
Saturno ri.
O ancião fica escandalizado inicialmente, mas logo volta ao seu bom humor habitual.
- Isso não é punição! É tortura! Eu vou, mas tem uma condição: Caso não goste daqueles cabeludos barulhentos você vai ficar um ano ouvindo musica clássica!
Anak-Pteor ri também.
- É claro que você vai gostar! Você é como eu! Só está um pouco enferrujado pelo tempo! – brinca o indígena.
- Vampirinho abusado! Vamos logo para esta tortura então!
O dois vão ao Show do Deep Purple e com certeza quem encontrar o Ancião cinco anos depois não acreditará na mudança.
Ele deixa de lado, mas não totalmente, a musica clássica para se dedicar ao Rockn`n´roll.
Naquela noite no camarim da banda os dois se apresentam para Rod Evans o vocalista juntamente com Ritchie Blackmore na guitarra, Nick Simper no baixo, Ian Paice na bateria e Jon Lord no teclado.
Apresentaram-se como vampiros.
Os músicos riem e bebem Scotch com eles.
Autografam o egípcio na careca e dispensam os dois fãs malucos.
Fim.