Desatinos do resplendor da existência

Pelos tênues luzeiros das trevas noturnas dois olhos cintilavam em medo. De forma débil cruzavam o futuro sem reconhecer a direção de seus passos. A sede de vida adormecia sombria sobre o cansaço. Mas a escuridão era ainda mais avassaladora em seu coração enfraquecido pelos erros e pelas mortes. A silhueta esguia surgia desforme tomando aspecto de um jovem rapaz, moreno, bolsas nos olhos e um aspecto desagradável em seu rosto. Um corpo sem destino cruzando o caminho além de qualquer esperança sentindo na pele o ar frio das montanhas que cresciam negras e absolutas ao seu redor. Parado de fronte para a entrada silenciosa e vazia, assim como as avenidas pungentes da madrugada, irrompia solitário. Caminhava a passos lerdos pelo muro baixo descascado, o portão de ferro retorcido, as correntes vencidas no chão. E na frágil torção incompreendida vagava entre as tumbas e mausoléus. Sentia o medo e a dor que precede o silêncio, ouvia cada sussurro mortal como se fossem súplicas, sentia a sede do abandono corroer vãs ideias hipócritas, previa a inevitável ausência como algoz contrastante da irrequieta vontade infinita de se eternizar no vácuo sem fim. Mitos e medos o aconselhavam a dormir.

O seu destino se aproximava do que mais temia e admirava. Caiu então por terra prostrando-se ao céu em prantos a acudir sua dor. Pois no amparo da conformidade não percebia a presença sútil da perda no escuro espreitando-o. Continuava seu intento subindo pelos degraus, pelas cruzes fincadas em porções de terras tomando quase todo espaço de passagem, pelos mausoléus de cores destorcidas, onde sentia o cheiro de morte exalando das flores murchas findadas e pairando no ar gélido das fotos de figuras abandonadas no esquecimento sua aura infantil era sondada e ferida. Superando todas as sensações sombrias que destoavam insistentemente sobre o seu olhar subia sem poder ao certo dizer o que procurava, entretanto seu espírito autômato escravizava seus passos e dominava os anseios do seu ser que pelas sombras se foi a um horizonte que lhe chamava, atrativo, deixando-se levar...

Arfando, despejando cansaço na morbidez crescente e solitária, chegou ao destino onde foi carregado. No fim das tumbas que se perdiam incontáveis vezes ele aquietou-se ante a cena surgindo voraz. O último mausoléu, escondido pelas neblinas em um aspecto pesado, nele assentava-se um imponente monumento de granito que se assemelhava a um pequeno castelo medieval, na fachada duas estátuas angelicais: o primeiro menino lambia o solo humilhado e o segundo prostrava-se com um sorriso sarcástico e um misterioso olhar, ao centro, onde se encontrava a tumba, um véu destacava-se como se em trono triunfal. Havia um ser que se agigantava, uma luz pendia de suas vestes brancas, não conseguia fitar sua face, pois a luz emitida cegou os seus olhos. Cobria-se de mistérios em uma capa branca segurando um menino em seus seios. O garoto nu parecia envolvido em um torpor propriamente seu. Receoso ele avançou alguns passos para contemplar a cena até ser intimado no romper do silêncio.

- Homem que teme a verdade, por que atravessastes ao abandono? - A criança o fitou na calada insólita, uma fita de saliva escorria de seus lábios que pendia rosado pelo ar se dissipando pela frente.

- O seu silêncio domina a gana de se saciar... - Continuou falando após o momento de silêncio seguido, manteve uma espécie de sorriso e buscava incessantemente o rosto do rapaz que parecia extasiado, tremendo ao olhar... - Onde pretendes chegar se enganando? - Seguiu dizendo esperando alguma reação.

- Perdão, mas o meu espírito rejeita a culpa e a morte, rejeita qualquer fim... - O rapaz derrubou as mãos sobre sua cabeça e atormentado fitava o chão tentando transbordar angustia de seus olhos, mas apesar de tentar jamais foi capaz de banhar-se nos lagos que a cada dia de seca se perdia na incapacidade de renascer.

- Mas sabes que a morte é o mais admirável silêncio - A criança esboçou um sorriso malicioso e arremessava flechas invisíveis sobre o coração do sofrido garoto. - Essa é a sua maior prisão, é o fato que um reles mortal deve encarar. Você irá morrer e não importa nada que você escolha, pois tudo no fim não será nada - E a criança começou a gargalhar incauta sedenta pelo sangue que corria nas veias de seu alvo oprimido.

- Nego! A morte é a falência do ser... Eu serei imortal quando me encontrar com o infinito - E correu para a direção primeira que achou, a criança seguia sua fuga... - No fim são mitologias, apenas fugas, apenas medo de se encontrar com seu vazio... Você é limitado - A criança permanecia a rir no colo do ser que ainda não se pronunciava... Caído ao chão ele apenas gritou no furor do seu ódio de orgulho rompido:

- CALE-SE!

Um guincho ressoou pela morbidez teatral, a criança berrava copiosamente, enquanto o homem enclausurado precipitava-se de seu altar para intentar contra o rapaz que escapava alucinado após insolentes desvios. Acordado de um rancor momentâneo buscava fugir de seu perseguidor que em um silêncio muito significativo permanecia a andar em passos copiados ao seu encontro. O som de suas pisadas quebrando os gravetos e esmagando as folhas perdidas no chão soavam como ogivas destoando muito mais nos seus ouvidos. Tentou arremessar pedras, entretanto atravessavam o corpo do ser desconhecido sem o acertar e ainda não podia ver sua face, mas a sensação de um vazio remetia as dores mais sombrias que buscou esconder. Todos os males abandonados para fora da porta de seu quarto, os males presentes na faculdade, no desemprego e nas mulheres de Icaraí voltavam impetuosamente a lhe perturbar... a ele que há anos já morrera. A criança permanecia chorosa e do seu pescoço pendia um colar de estrelas, o mesmo que ele sempre usava durante o tempo que existiu. Um tremor tomou conta de suas pernas que incapazes de sustentá-lo lançaram-no na alcova fria, assustado pela cena presumia que a alma da criança já estivesse a muito tempo entregue, a sua mente já entendia e se entregava a mais nova lição, porém ainda continuou a arrastar-se para além da criatura que surgia de forma gigantesca ao seu olhar. "Aceite sua sina" era o que eles disseram. Sombria morte, a mais impetuosa carcereira em seu leito me entreguei quando não tinha mais escolhas e nem fugas, perdoem-me se fui fraco, perdoem-me por não resistir ao frio que dominava meu corpo, a rochura que saltava sobre minha pele, ao enrijecer de meus dedos, ao olhar vazio e a secura de minha boca deixando de salivar, a dor profunda em meu peito... Sou fraco demais ante a morte, sou fraco ante a qualquer alteração, sou apenas um fraco na ilusão de grandeza, um filho do nada tentando ser tudo.

Despertou com a manhã invadindo os seus olhos marejados. O corpo insistia em permanecer em seu leito já que seu espírito transitava por outros horizontes. Quando acostumado aos luzeiros matinais tentou ensaiar uma recuperação a fim de libertar-se das correntes que ansiavam o deteriorar. Perseguia-o, ao sol nascer, as dores de uma existência sem propósito e monótona, arrastada em um limbo oco, onde se perdeu para sempre. As correntes seriam sempre fortes demais para a sua determinação. As tentativas de se levantar logo se exauriram ao ouvir os sons estrondosos partindo de sua janela e após breves segundos de um tempo não compreendido em sua porta. Estremeceu agarrado em seus lençóis tentando conter o grito que insuflava pela sua boca, porém a cada momento os golpes permaneciam mais impetuosos a ponto de ameaçar a porta. O rapaz recuava em seu silêncio e deixou escapar uma exclamação sutil que maldizia a sua vida e os males que a circundava, uma súplica que se arrastava através de sua bolha existencial. Um pedido de amparo pela solidão que o impedia de romper o silêncio... a voz perdida, o suor demasiado, a sensação de desmaio e as vozes das pessoas e seus olhares ecoando em tudo que via e ouvia. Um ecoar de vozes tomando o ambiente e invadindo sua instabilidade racional. "Venha conhecer a verdadeira prisão" em meio ao som das pancadas na madeira e das vozes atormentadoras foi o que foi levado a acreditar.

Nesse momento sente que seu corpo arrastava-se para frente como se estivesse sendo atraído para a porta, sem poder controlar-se era pouco a pouco sugado ao encontro de seu limite. Pendia no ar sem sustentação em apenas um ato foi levado de encontro à porta que se abriu bruscamente revelando um abismo sombrio. As vozes assomavam-se cada vez mais fortes fortalecendo seus temores e maiores dúvidas. O abismo estava surgindo e o chamando novamente, o abismo o atraia para dentro de sua culpa, foi-se perdendo através de sua força gravitacional.

Delírios de uma queda contínua ameaçavam o último suspiro de seu corpo semimorto que despencava na mais silenciosa escuridão. Aterrado encontrou-se caído em meio a Avenida Rio Branco namorando as estações das barcas de Niterói. Os automóveis pareciam alheios ao corpo que surgia inesperadamente apenas desviavam-se do contato. Quando recobrou os sentidos sentiu percorrer incessantemente as dores de uma jornada imposta por motivos alheios a sua compreensão. Levantou-se com extrema dificuldade, incomodado com o som de chorume das buzinas. Debilmente foi superando os males de um corpo destruído e um espírito já cansado da opressão. Dez passos pesados o levaram a calçada ao encontro do índio Arariboia que pendia ereto mirando a baia de Guanabara levantou um pouco sua fronte para poder situar onde estava. Faces múltiplas apenas passavam sem carregar qualquer expressão em seus olhares. Mirou o chão e caminhou.

Os corpos zuniam ao seu lado e de quando o esbarravam produzindo uma sensação de medo intensa que percorria sua espinha e fazia morada nas memórias onde se via escondido. Os seres pouco a pouco foram desvanecendo-se em espectros, vultos sem definição, que cruzavam o amanhecer vendendo seus corpos e suas esperanças a um monstro que todos conhecem, mas não sabem definir. Caminhavam desconhecendo seus passos, maldizendo suas sinas, enquanto seus rostos desformes apilhavam-se deteriorados, babavam pelo canto da boca, os olhos pareciam saltar, a pele roxeava e sombrios arrastavam pesos de toneladas diferentes, todavia não deixavam de arrastar. Caminhavam rumo ao precipício que surgia diante de seus olhos na eterna prisão de conviver. Os homens presos a um amanhã que devem sempre percorrer. Homens que em sua sina o aterrorizavam, os que temem e matam.

Rejeitava a dor que severa o dominava com sentenças inglórias. Do seu precipício lançou-se nas águas impuras da Baia de Guanabara. Não calculou o que fizera, pois buscava apenas fugir de mais uma das prisões que faziam presentes ao seu olhar. O misto de sabores e o sal das águas agitadas criaram uma confusão intensa de gostos metálicos em sua boca. Submerso na insana loucura, que o mar lhe fazia lembrar, perdia aos poucos os sentidos sem poder soltar um grito esperançoso, tanto causado pelo furor que lhe comprimia, como pelo constante medo dos olhares efusivos opressores da qual buscou fugir. A forte pressão exercida sobre o seu nariz quebrantava a resistência perene que ousou intentar. As águas o empurravam para a fina compreensão de seu fim, não podia mais respirar, pendia inerte no oceano. Era um corpo e o mar, a imensidão do mar e uma pequena quantidade de sangue jorrando em um espaço qualquer.

O corpo doía, a sensação de enjoo era intensa. Nunca sentiu nada antes parecido. Estirado no chão da cozinha em meio a uma poça de vômito, muco e algumas gotas de sangue, derramou lágrimas de uma dor efusiva que voltava a lhe invadir. O copo de água estilhaçado em suas mãos apontava algumas horas, não se sabe ao certo, de seu abandono fatal. Suspirando entre as mais incompreensíveis dores físicas e psicológicas levantou-se tombando em si. As vozes novamente voltavam a dizer tudo o que antes foi negado. Caindo e tropeçando pelas paredes do corredor meteu-se no banheiro onde se refugiou em seu abismo para não mais divisar aquela porta.

"A solidão dos passos de uma estrada sombria, contemplação de sorrisos que jamais esboçou, o furor de uma juventude perdida em medos. Eu sou seu desespero desvendando seu quarto e tomando parte de suas fraquezas." Deixem-me vozes irritantes quero na indolência testar o meu ardor, deixe meu desespero construir minha fuga, deixe o meu conforto permanecer ser minha dor. As brancuras das paredes e do azulejo encaravam a solidão que se sobressaia do olhar perdido do garoto. Sem sonhos sonhava em perder-se para sempre na ausência, deixar de sentir, deixar de pensar, esquecer-se que existiu e apenas viver num grande torpor de nada. Resisto aos sonhos, feche as janelas, pois o destino me grita e aprisiona minha alma em uma culpa contínua, quero me calar e deitar para sempre... derramarei meu corpo cansado sobre a cama de ar da janela de meu apartamento e o vento será o lençol que irá me aconchegar nos sórdidos dias. Deixe-me, deixe-me destino, enfim me libertarei de todas essas prisões. De súbito rompeu a porta do banheiro e sobre uma nova perspectiva suas pernas ganharam forças vitais para continuar. "Deixar-se é só mais uma forma de prisão". Persistiu a correr pisando sobre os pacotes de biscoitos esparramados pelo chão. "A morte, o trabalho, a convivência nada será superado sem vencer o seu fim." Estava próximo a sacada do prédio. "Mas abandonar-se é apenas se resignar em ser cativo". Não mais ouvia nenhuma das vozes que em vão tentaram lhe parar novamente. Sobre a janela da transcendência irrompeu ao seu grito. O desespero é a forma mais sangria da liberdade.

Harry balançava uma moeda frente à sacada, ao longe um pôr-do-sol descia devagar, a estrada pouco movimentada completava a ausência perdida entre tantos prédios. Na moeda sobressaia a gravura de um centauro pressionando um muro. Em uma vaga distração a moeda fugiu de seus dedos rolando pelo o ar até atingir o rosto de um transeunte que vagava para um destino desconhecido. Ferido, gritou ao sentir seu rosto em sangue se desmanchar. De cima da sacada ele observava a cena sem expressão alguma em seu rosto além de um tímido sorriso de canto dos lábios. "Desperte!" O transeunte olhou para a sacada e já não mais tinha nada em seu rosto, nem olhos, nem boca e nem nariz. Surpreso, Harry observou sua mão, nela a gravura de um centauro derrubando um muro de concreto. Delineava-se no rosto do outro rapaz também uma gravura: um centauro caindo no abismo...

- Desculpe - Harry sussurrou:

- A premissa é correspondente - De voz grave partiu em silêncio o jovem desconhecido que despertou certo sentimento de pertencimento no coração daquele que cativo sempre se manteve, pois a existência, essa sim, é a maior das prisões.

Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 26/06/2017
Código do texto: T6037837
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